A duas quadras de meu apartamento no Berlimbo, há uma videolocadora para a qual caminho quase todas as noites, por volta da uma da madrugada, horário em que os filmes custam apenas € 1,50, voltando para minha cama com o filme em que submergirei para sair do mundo da poesia e da literatura. "Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade." Uma das paredes da locadora, a que está logo à porta, era organizada como "Os cinquenta diretores do século", recentemente reestruturada para "Os cem diretores do século". Revolvendo as novas seções, meus olhos caíram no espaço exíguo dedicado ao americano Terrence Malick (n. 1943). Num primeiro momento, minha mente reconheceu o nome, mas não conseguia lembrar-me de onde. Tomando as quatro únicas caixas na seção, reconheci a que continha o filme The Thin Red Line, um filme de que gosto muitíssimo, um dos melhores filmes de guerra já feitos, por ser, talvez, filme de guerra nenhum, não da maneira como o é o perturbador Venha e veja (1985), do russo Elem Klimov (1933 - 2003), um épico devastador. The Thin Red Line (1998) é de uma delicadeza incrível.
Muito já se escreveu sobre a influência dos transcendentalistas americanos sobre o trabalho de Terrence Malick. Em The Thin Red Line, ele parece realmente dirigir sob a regência de Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau, Margaret Fuller. Em momentos de antiamericanismo acirrado, sempre procuro me lembrar deste país, o país de Thoreau, de Emerson, o mesmo país que geraria mais tarde John Cage, alguém que às vezes soa como outro "transcendentalista americano" tardio, ainda que Cage, o apaixonado por Thoreau, tenha substituído o cristianismo de seus antepassados pelo budismo.
Ontem à noite, adormeci após assistir ao segundo filme de Malick, chamado Days of heaven (1978), em que se encontra já a direção meditativa do americano.
Não é para todo estômago. Há quem considere seus filmes chatíssimos. A frequente narração em off, uma de suas marcas registradas, irrita muita gente. Os próprios transcendentalistas do século XIX receberam críticas duras. Edgar Allan Poe viria até mesmo a satirizá-los.
Eu gosto muito.
Seria interessante discutir se o "transcendentalismo" de Malick baseia-se mesmo na noção de transcendência como a conhecemos, em oposição à noção de imanência. Pois Malick parece crer na manifestação divina no mundo, ainda que o discurso de seus narradores e personagens indique o contrário.
Isso tudo sempre me pega pelo cérebro, pelo estômago, pelos pulmões. Talvez não seja à toa que meus mestres eleitos na poesia brasileira são Murilo Mendes e Hilda Hilst, e não João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, como ditou a moda e o modo de usar a tradição nos últimos 25 anos. Talvez por isso me apaixone tanto o simbolismo semiótico de Orides Fontela. É algo disso o que busco no conceito de figura, em minha pesquisa por uma poesia que se faz consciente de sua historicidade, mas talvez o conceito de figura (figura como conceito da teologia cristã, FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento que revelaria seus significados) denote mais uma crença na imanência divina, que em sua transcendência. No cinema, há algo disso em Andrei Tarkóvski, ou em russos contemporâneos nossos, como Aleksandar Sokúrov e Andrei Zvyagintsev.
O discurso figurativo de Terrence Malick, em The Thin Red Line, distancia-se muito, por exemplo, do discurso alegórico de Francis Ford Coppola em Apocalypse Now (1979). As referências literárias destes dois filmes, que tomam a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã como pano-de-fundo e Henry David Thoreau e Joseph Conrad como referências literárias, respectivamente, já demonstram as veredas distintas por que caminham. Em ambos, no entanto, a guerra é mais que um conflito histórico. Em Malick, pelo menos, a história não é paisagem, mas o véu que separa nossos olhos de uma paisagem outra.
Talvez assista esta semana ao primeiro filme de Malick, Badlands (1973), com a linda Sissy Spacek.
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Ou em vez de assistir a outros filmes de Terrence Malick, talvez eu vá seguir um pouco a carreira esparsa (como os filmes de Malick) da atriz Linda Manz (n. 1961), que tinha apenas 16 anos quando atuou em Days of heaven, com uma performance maravilhosa em sua delicadeza e naturalidade.
Ela viria a atuar ainda (como acabei de descobrir) em filmes como The wanderers (1979), de Philip Kaufman; Out of the blue (1980), de Dennis Hopper; assim como estava no ótimo Gummo (1997), de Harmony Korine.
(Linda Manz em Out of the blue, de Dennis Hopper)
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