domingo, 3 de abril de 2011

Desarquivando o Brasil: pela abertura dos arquivos secretos da ditadura militar

Ocorreu este fim de semana a terceira edição da blogagem coletiva pela abertura dos arquivos secretos da ditadura militar, iniciativa da jornalista Niara de Oliveira.

A situação de nossa memória histórica em relação à última ditadura parece ser uma das mais lacunares dentre os países latino-americanos que padeceram da mesma catástrofe histórica.

Dos poetas e escritores que produziram sob o regime de Getúlio Vargas, alguns deixaram-nos documentos est-É-ticos de tirar o fôlego, seja na prosa de Graciliano Ramos, primordialmente no póstumo Memórias do Cárcere (1953) mas também de forma difusa na obra-prima que é Angústia (1936), ou na poesia de Carlos Drummond de Andrade em Sentimento do mundo (1942) e A Rosa do Povo (1945). Poderíamos ainda pensar em trabalhos de Dyonélio Machado e Patrícia Galvão.

E quanto à literatura brasileira produzida sob Costa e Silva, Médici e Geisel, para citar os três mais truculentos e sob os quais cometeu-se a grandíssima parte dos Crimes de Terror do Estado? Na poesia, a catástrofe histórica que engoliu nossos pais e nosso futuro naquele momento talvez tenha encontrado algumas de suas gargantas mais potentes em poetas como Wally Salomão e Torquato Neto.

Literato cantabile
Torquato Neto

Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:


Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.


Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:


só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:


não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento



O primeiro estudo que li sobre a literatura e poesia produzidas no período da ditadura militar foi publicado por Flora Süssekind pela primeira vez em 1985 e chama-se Literatura e Vida Literária: Polêmicas, Diários e Retratos. Creio que o li aos 20 anos na biblioteca de uma amiga, em meados de 1998. Sempre me lembro do livro, pelo ineditismo que aquela discussão tinha na minha vida e também por me apresentar a poetas e escritores que desconhecia (cito Ronaldo Brito como exemplo).

Já o último livro no qual tenho pesquisado o assunto eu descobri apenas no ano passado e chama-se Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina, publicado por Idelber Avelar pela primeira vez no Brasil em 2000. Nele, Avelar discute as estratégias memorialistas de luto de alguns dos mais importantes romancistas latino-americanos a lidarem com a catástrofe, discutindo entre eles livros brasileiros que já coloquei na lista de leituras urgentes, como Em Liberdade (1981), de Silviano Santiago, e Bandoleiros (1985), de João Gilberto Noll.

Em seu blogue, o poeta Pádua Fernandes participou desta blogagem coletiva publicando alguns textos em que discute a situação deste debate no Brasil, comentando alguns documentos ligados à ditadura militar, e ainda uma entrevista com o poeta Julián Axat, filho de cidadãos argentinos assassinados pelo Regime militar, um dos membros fundadores do grupo H.I.J.O.S. (Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio) e também editor da coleção Los Detectives Salvages, que se dedica a resgatar o trabalho dos poetas assassinados pela ditadura antes que pudessem publicar seus poemas. Graças à coleção, descobri, por exemplo, o belo trabalho do poeta Carlos Aiub, nascido em 1952 e sequestrado pelo Regime em 1977 - nunca mais foi visto.

Nestas duas últimas semanas estive relendo o que alguns poetas que admiro produziram sob regimes totalitários. Andei com o segundo e o terceiro volumes da poesia completa (Gesammelte Gedichte) de Bertolt Brecht no bornal, que cobrem os anos 1933 - 1941 e 1941 - 1947, respectivamente. Os poemas escritos durante o regime de Hitler. Voltei também a ler o que Carlos Drummond de Andrade escreveu sob o regime de Vargas, sem me esquecer que o nosso grande poeta anarquista-burocrata trabalhou com Gustavo Capanema no governo daquele a partir de 1934. Em minha viagem à Espanha na semana passada reconectei-me com a poesia de Gabriel Celaya, que manteria um trabalho de resistência durante o regime de Franco, assim como Blas de Otero e Carlos Álvarez.

Neles reencontro a maravilhosa flexibilidade da historicidade presente na grande poesia. Aquela que nos transporta a um momento histórico e local específicos, ao mesmo tempo que abre nossos olhos para o nosso momento histórico e local. Poesia que nos permite viajar no tempo e saber como era Roma sob César ou o Rio de Janeiro sob Vargas, e ainda fazer do seu autor, seja Catulo ou Drummond, nosso contemporâneo. Isso, no entanto, nada tem a ver com o que certa crítica (neofriedrichiana e neogreenberguiana) gosta de chamar de "trans-historicidade", conceito criado para justamente poderem ignorar com consciência acrítica tranquila esta incrível flexibilidade histórica da poesia.

Meu interesse é compreender de que maneira estes poemas logram sobreviver ao naufrágio de seus contextos históricos, já que tantos deles sobrevivem com uma youthfulness exemplar. Talvez parte das respostas esteja em um poema de Brecht que traduzi na semana passada. Chama-se "As novas eras", escrito em plena Segunda Guerra Mundial.

As novas eras

As novas eras não começam de uma vez.
Meu avô viveu já nos novos tempos
Meu neto com certeza ainda viverá nos velhos.

A carne nova será comida com o velho garfo.

Não foram os veículos motorizados
Nem os tanques
Não foram os aviões sobre nossos tetos
Nem os bombardeiros.

Das novas antenas vieram as velhas bobagens.
A sabedoria distribuíu-se de boca em boca.


(Bertolt Brecht, tradução de Ricardo Domeneck)


Die neuen Zeitalter: Die neuen Zeitalter beginnen nicht auf einmal. / Mein Großvater lebte schon in der neuen Zeit. / Mein Enkel wird wohl noch in der alten leben. // Das neue Fleisch wird mit den alten Gabeln gegessen. // Die selbstfahrenden Fahrzeuge waren es nicht / Noch die Tanks. / Die Flugzeuge über unseren Dächern waren es nicht. / Noch die Bomber. // Von den neuen Antennen kamen die alten Dummheiten. / Die Weisheit wurde von Mund zu Mund weitergegeben.


É necessário alertar que eu NÃO estou defendendo "poesia engajada" e NÃO estou querendo impor a outros escritores com o que devem se preocupar. NÃO se trata de tomar partido ou afiliar-se a um. O poeta paulistano Dirceu Villa escreveu um artigo inteligente (como sempre) a respeito disso na semana passada. Ainda que discorde de alguns pontos, está muito bem exposto ali o perigo do engagée. Basta lermos alguns dos poemas de Brecht publicados no volume do qual retirei o lindo texto acima, ou outros de Vladimir Maiakóvski, Pablo Neruda ou Muriel Rukeyser.

No entanto, serão realmente as únicas opções do poeta o engajamento ou o absenteísmo? Pessoalmente, tudo o que busco é que minha poesia esteja DESPERTA, ACORDADA. Que eu esteja desperto, acordado.

Volto a alguns dos mais vivos poemas de Brecht, Drummond, Oppen, Celaya. Escritos em circunstâncias históricas tão específicas, transportam-nos estes poemas às trevas de datas muito bem marcadas no calendário. Ao mesmo tempo, quem em sã consciência dirá que a obra-prima abaixo envelheceu ou não nos diz mais respeito?



Nosso Tempo
Carlos Drummond de Andrade

I

Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II

Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

III

E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da
costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes...
E muitos de vós nunca se abriram.

IV

É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

V

Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI

Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.

VII

Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco ? no público ? nas poltronas ?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.



in A Rosa do Povo (1945)

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Um comentário:

Anônimo disse...

Ótimo post, d. Tô trabalhando com tema em minha dissertação sobre o Torquato. Aliás, a bibliografia sobre a ditadura no Brasil está crescendo - muitos livros ótimos. Um abraço, Calixto

"quem teve a mão decepada
levante o dedo"
N. Behr

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