sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Cummings fala sobre Pound e sobre os seres humanos verazes



Estive lendo nos últimos dias uma das coisas mais vívidas despertas jubilosas que já li: as despalestras de e.e. cummings na Universidade de Harvard, em 1952 e 1953, mais tarde reunidas no volume i: six nonlectures (Cambridge: Harvard University Press, 1953).

Há uma passagem, na quarta nonlecture, em que Cummings inclui um excerto de artigo dedicado à figura e trabalho de Ezra Pound. Mostro aqui uma tentativa de tradução, e recomendo muito a leitura do trabalho todo, especialmente para os que amam Edward Estlin Cummings, ou, como o conhecemos, o maiúsculo e.e. cummings.


§ - da nonlecture 4


"Re: Ezra Pound - acontece que a poesia é uma arte; e acontece que artistas são seres humanos.

Um artista não vive em alguma abstração geográfica, sobreposta a uma parte desta linda terra pela desimaginação de inanimais e dedicada à proposição de que o massacre é uma virtude social porque o homicídio é um vício individual. Nem vive o artista em algum
soi-disant mundo,nem vive ele em algum tal de universo, nem vive em um número x de "mundos" ou em qualquer número x de "universos". Quanto a algumas fantasias pífias como "passado" e "presente" e "futuro" da abraspas humanidade fechaspas, elas podem ser grandes bastante para um par de bilhões de subidiotas supermecanizados mas elas são pequenas demais para um ser humano.

O país estritamente ilimitado de todo artista é ele mesmo.

Um artista que falseie este país comete suicídio; e mesmo um bom advogado não pode matar os mortos. Mas um ser humano veraz consigo mesmo – quem quer que seja este si-mesmo – é imortal; e todos as bombas atômicas de todos os antiartistas no espaçotempo jamais civilizarão a imortalidade."



(tradução de Ricardo Domeneck, excerto da nonlecture de número 4)


§


Outro trecho da mesma despalestra:


§ - da nonlecture 4


"Pessoas simples,pessoas que não existem,preferem coisas que não existem,coisas simples. `Bom´ e `mau´ são coisas simples. Você me bombardeia = `mau´. Eu bombardeio você = `bom´. Pessoas simples(que, a propósito, mandam neste tal de mundo)sabem disso(eles sabem tudo)enquanto que pessoas complexas – pessoas que têm sentimentos – são muito, muito ignorantes e verdadeiramente nada sabem.

Nada, para pessoas simples cultas, é mais perigoso que a ignorância. Por quê?

Porque sentir é estar vivo.

...

Por pura sorte para você e para mim,o sol nada civilizado misteriosamente brilha tanto sobre os `bons´ como sobre os `maus´. Ele é um artista.

A arte é um mistério."




§ - da nonlecture 2

--- sobre a oposição entre ser e fazer ---


"Eu estou perfeitamente consciente de que, onde quer que nossa tal de civilização tenha escorregado e caído, há todo tido de prêmio e punição nenhuma a quem quer não-ser. Mas se a poesia é seu objetivo, você tem que esquecer tudo sobre punições e tudo sobre prêmios e tudo sobre autoestilizadas obrigações e deveres e responsabilidades etc ad infinitum e lembrar-se de uma só coisa: que é você - ninguém mais - quem determina e decide seu destino. Ninguém mais pode estar vivo por você; nem você pode estar vivo por outra pessoa. Joãos podem ser Josés e Josés podem ser Joãos, mas nenhum deles jamais poderá ser você. Aí está a responsabilidade do artista; e a mais terrível responsabilidade sobre a terra. Se você acha que aguenta, aguente e seja. Se não, anime-se e vá cuidar da vida dos outros; e faça (ou desfaça) até cair."


§ - ainda da nonlecture 2

(proferida em 1952, parece escrita para tempos de redes sociais no século XXI)


"Vocês não têm a menor ou mais vaga concepção do que é serestar aqui, e agora, e a sós, e ensimesmos. Por que (vocês perguntam) alguém deveria querer estar aqui, quando (com o simples apertar dum botão) qualquer um pode estar em cinquenta lugares ao mesmo tempo? Por que alguém deveria querer ser agora, quando qualquer um pode ir quandando por toda a criação num girar de manivela? O que poderia induzir alguém a desejar sozinhez, quando bilhões de soi-disant dólares são misericordiamente desperdiçados por um bom e grande governo para evitar que qualquer onde quer que jamais esteja um instante qualquer só? Quanto a ser você mesmo - por que diabos ser você mesmo; quando em vez de ser você mesmo você pode ser centenas, ou milhares, ou centenas de milhares de outras pessoas? A simples ideia de ser-se a si mesmo em uma época de eus intercambiáveis deve parecer supremamente ridícula.

Muito que bem: mas, no que diz respeito a mim mesmo, poesia e qualquer outra arte foram e são e sempre serão estritamente e claramente uma questão de individualidade."


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9 comentários:

marcelo sahea disse...

D, que beleza! Que beleza! Muitíssimo obrigado e um abraço maiúsculo!

Ricardo Domeneck disse...

É lindo, né, Sahea? O livro me deixou num estado de euforia estes últimos dias. Abração.

mauricio miele disse...

obrigado

Angélica Freitas disse...

muito obrigada, ric.

Bruno Brum disse...

Ótimos textos, bela capa.

juliana amato disse...

postageis para pessoas frágens. demais de ler. beijo!

juliana amato disse...

na verdade fiquei em dúvida se frágeis é a palavra. é que eu que, rs.

Alvaro Andrade disse...

ô, ricardo, não pensou em propor a alguma editora traduzir o livro todo?
seria um favorzão à poesia brasileira.
em todo caso, muito grato pelo excerto.
um abraço.

Anônimo disse...

powerful. maravilhoso. bálsamo.

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