João Apolinário foi um poeta português, nascido a 18 de janeiro de 1924 em Sintra. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra e Lisboa e trabalhou também como jornalista, indo com 21 anos para Paris como correspondente da Agência Logos, permanecendo na França durante a Segunda Guerra. Estreou em livro como poeta com o volume Morse de Sangue (1955), composto na prisão por sua resistência antifascista ao regime de António Salazar. Em 1963, exilou-se no Brasil, vivendo e trabalhando em São Paulo, onde escreveu para o jornal Última Hora e fundou, com outros jornalistas, a APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Publicou ainda os livros Primavera de Estrelas, Apátridas, AmorfazerAmor, Poemas Cívicos e Eco Humus Homem Lógico, entre outros. Retornou a Portugal em 1975, após a Revolução dos Cravos. João Apolinário morreu a 22 de outubro de 1988, na pequena vila portuguesa de Marvão.
Sua posição na poesia lusófona do pós-guerra é curiosa. Talvez esteja entre os mais desconhecidos poetas da língua, e, ao mesmo tempo, alguns de seus poemas estão entre os mais famosos das últimas décadas, graças ao trabalho musical de seu filho, o cantor e compositor João Ricardo, que musicou vários dos poemas do pai, primeiro com o grupo Secos e Molhados (1973 - 1974) e depois em sua carreira solo. Seria interessante partir de seu trabalho para discutir as diferenças entre as mentalidades críticas que regem a tradição da poesia oral e da poesia escrita. Na tradição oral, o poema pertence tanto a quem o escreve como a quem o vocaliza, a partir da tradição do jongleur provençal ou do imbongi africano, tradição dos intérpretes, aquela que Paul Zumthor discute em sua Introdução à Poesia Oral (1983), livro fundamental para quem queira discutir as relações entre poesia escrita e oral.
Um dos poemas de João Apolinário musicados por João Ricardo demonstra o talento poético do português e está entre meus favoritos. Formado por dois quartetos, o poema "Primavera nos dentes" oscila entre o trobar leu e a sofisticação da wit de um poeta metafísico inglês do século XVII.
Primavera nos dentes
João Apolinário
Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera
Se os versos iniciais beiram o vaticínio, são seguidos por imagens poderosas, como os magistrais "E no centro da própria engrenagem / Inventa a contra-mola que resiste", expondo toda uma possibilidade de resistência est-É-tica em meio ao sistema capitalista, sem mencionar a força expressionista dos versos "E envolto em tempestade decepado / Entre os dentes segura a primavera." Apoderados pela vocalidade de Ney Matogrosso em uma das canções mais fortes do grupo, este poema atinge toda a sua poeticidade:
O poema sustenta-se em sua própria materialidade sígnica, em minha opinião, mas assume poderes novos ao habitar a sua vocalidade implícita. Um texto como "Primavera nos dentes" conecta João Apolinário à tradição dos Poetas Goliardos, ou de germânicos como Heinrich Heine (1197 - 1856) e Hans Arp (1886 - 1966), sem falar nas maravilhosas colaborações de Bertolt Brecht e Kurt Weill.
Em outros poemas, João Apolinário esposa uma poética minimalista que o aproxima de forma surpreendente de seu contemporâneo quase exato Robert Creeley (1926 - 2005), levando em conta que o americano viveu duas décadas mais. Mesmo a imagética dos dois aproxima-se, com a palavra flor e o número zero, por exemplo, palavras favoritas de Creeley, tornando-se metáforas analíticas para a poesia e outras dores também em Apolinário. É o que sentimos nos poemas abaixo, extraídos de Eco Humus Homem Lógico. Em outros poemas, sentimos uma relação subterrânea entre João Apolinário e Paulo Leminski, talvez marcada pela influência da música popular e da oralidade na obra de ambos.
Tentamos com esta postagem contribuir para que a poesia ainda não musicada de João Apolinário receba no Brasil a atenção que merece, para o nosso próprio bem.
--- Ricardo Domeneck
§
POEMAS DE JOÃO APOLINÁRIO
da escrita
Da poesia
faço
uma raiz
que gera
a haste
oculta
da palavra
em flor
____
Abro as portas
desta melancolia
fechada no poema
por nascer
e sinto essa magia
suprema
de o escrever
§
os zeros relativos
Reduzo
o espaço
ao limite
do zero
nasce
o mundo
___
Não se pede à alma
que anteceda o corpo
se o nada só existe
depois de ser
concreto
____
Só das coisas reais
tenho o sentido
da transcendência
Não sei do homem mais
do que a essência
de ter vivido
____
Uma única
pétala
gera
um universo
de formas
em órbita
____
Tomo o ar
que respiro
e dou vida
aos deuses
invento a sombra
____
Do mar
faço a planície
para as estrelas
fecundarem a noite
os dinossauros
cantam
____
E da vida
faço este delírio
de batráquios
em fuga
roendo horizontes
____
Só na morte
ponho o zero
à esquerda
do zero
outro zero
começa
____
Depois
do ouro
velho
queremos
o vermelho
§
ecologia lírica
A incógnita
acontece
na cor
que nasce
e reverdece
na flor
até ao limite
de olhá-la
como ela
é
____
O que é que cicia
o mistério (a essência)
desta atmosfera
de sol do meio dia
cuja transparência
parece que gera
o que a terra cria
____
Todos os mitos
imortais
cabem
subitamente
nos alicerces
originais
da semente
____
A pétala sabe
o destino oculto
de todas as coisas
onde o sol começa
____
Criar primeiro o ovo
para a raiz
do pássaro que voa
aquém da casca
Mudar depois as asas
da natureza
sem deixar de ser ave
e ser flor
gerar o movimento
assim eterno
da origem de ser
o que já é
____
O orvalho
respira
a solidão
da noite
na boca
da manhã
____
Um sopro
de luz
abre
no espaço
uma fenda
clara
para o dia
que nasce
§
os infinitos íntimos
Não me cinjas
a voz
não me limites
não me queiras
assim
antecipado
Eu não existo
onde me pensas
Eu estou aqui
agora
é tudo
____
Esta causa
Que me retoma
Em cada dia
Age na esperança
Em que respira
Esta necessidade
De estar vivo
____
No círculo
em que se fecha
o que em mim
respira
há um suicídio
de memórias
que não cabem
no que em mim
existe
____
Já fui longe demais
matando-me nas pedras
que atiro contra mim
sentindo o que não sei
____
Há por aí alguém
que queira vir comigo
atrás do que seremos
quando tivermos sido?
____
O que resta de nós
Dorme a noite invisível
Que ainda nos sobra
____
O que me cansa
é o diabo da esperança
____
O que ficará de mim
nos restos digitais
do tempo
quando chegar
o fim
de que me ausento
§
"É preciso avisar..."
É preciso avisar toda a gente
dar notícia informar prevenir
que por cada flor estrangulada
há milhões de sementes a florir
–
É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
engrossando a verdade corrente
duma força que nada detenha
–
É preciso avisar toda a gente
que há fogo no meio da floresta
e que os mortos apontam em frente
o caminho da esperança que resta
–
É preciso avisar toda a gente
transmitindo este morse de dores
É preciso imperioso e urgente
mais flores mais flores mais flores
§
"A pressa de chegar..."
A pressa de chegar
correr correr
sem poder esperar
Chegar para morrer
–
A pressa de chegar
O desvario obtuso
O medo de parar
gasto pelo uso
de estar
–
A pressa de chegar
A pressa a louca pressa
de poder encontrar
aquilo que me esqueça
de levar
–
A pressa de chegar
correr correr
sem poder esperar
Chegar para morrer
.
.
.
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5 comentários:
Maravilha de blog.
Ricardo, você é um vulcão em constante erupção. É sempre bom aprender e descobrir coisas sempre novas (velhas) contigo..
Abç
Márcio...
Obrigado, Diego.
abraço
Ricardo Domeneck
Márcio, é muito bom poder compartilhar estas descobertas com amigos. Bom ter você como leitor.
abraço
R.
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