Hanne Lippard é uma poeta trabalhando com o que poderia ser chamado de verbivocovisual, mas não como ele é compreendido no Brasil, pois em suas peças o vocal faz-se realmente presente e não apenas implícito, e o visual busca possibilidades para além da mera teatralização do signo. É poeta do que eu chamaria de "textualidade". Nasceu na Inglaterra, mas cresceu na Noruega. Vive em Berlim há alguns anos. Abaixo você pode assistir a uma de minhas peças favoritas da poeta, intitulada "Beige".
Você pode ver/ouvir outras peças da poeta, nascida em 1986, na página recentemente dedicada a seu trabalho em minha Hilda Magazine.
Livro de poeta brasileiro radicado na Alemanha
incita questionamentos sobre fronteiras entre
gêneros. Podemos ler poemas como romances?
por Schneider Carpeggiani, publicado no número de março de 2012 da revista Continente.
Ricardo Piglia nos fala sobre a
existência de uma fotografia em que
se vê Jorge Luis Borges tentando
decifrar as letras de um livro que segura
grudado ao rosto. Lê as páginas abertas
à sua frente como se estivesse diante
da tábua de revelação do mundo, ou
mesmo já prenunciando que aquelas
letras seriam as últimas que enxergaria.
Borges foi o “leitor-modelo” do
século 20, alguém que deixou como
ensinamento maior a perspectiva de
que a ficção não depende de quem a
constrói, mas de quem a lê. É possível
ler tudo como ficção. É também
possível ler tudo como verdade. O
leitor é um investigador que cria
suas suposições e trilhas a despeito
da sociedade, das convenções e do
criador original da obra. Leitura é
declaração de independência.
Ao publicar um livro com o título
Ciclo do amante substituível (frisando a
precisão “do” amante e não “de” um
amante), o poeta brasileiro, radicado
em Berlim, Ricardo Domeneck, deixa
uma trilha de biografemas para que
o leitor siga e, talvez, perca-se. Há
ainda a dedicatória “a Jannis Birsner”,
que nos leva a farejar outras conexões
possíveis. Seria Jannis o tal amante
substituível ou o arquétipo perfeito de
todos os amantes que já substituímos
e/ou substituiremos algum dia? Ou o
escritor estaria propondo um exercício
de exibicionismo público, despindo,
como um stripper, suas frustrações para
uma plateia de leitores?
Os questionamentos prosseguem: É
possível ler um livro de poemas como
um romance? Ou com os pressupostos
esperados de uma autobiografia
sensacionalista, menosprezando assim
a intrincada matemática exigida
por um verso? Borges, certamente,
abençoaria essas possibilidades e
transformaria a dedicatória para
Jannis em algo tão palpável e concreto
quanto o mundo de Tlön, que o escritor
argentino jurou ter encontrado num
verbete da Enciclopédia Britânica.
O poeta (como Domeneck gosta
de ser chamado) dá início ao seu livro
justamente com um texto em prosa
(o único em toda a obra), no qual lista
perdas e danos, como se necessitasse
de um prólogo (ou seja: uma desculpa,
um álibi) que sustentasse as palavras
a seguir e ampliasse nossa curiosidade
em torno de um Jannis feito de carne,
osso e abandono: “Seja para sair pela
porta da frente ou receber pelo correio
o convite para retirar-me, carrego as
próprias pernas com os dentes, cão
com o rabo entre as costelas fazendo
ligações a cobrar, tanto para o serviço
de atendimento ao perdedor como para
o que me derrota, o derrocado. Minhas
mandíbulas desacostumaram-se das
mordidas, culpa dos meses em que
ladrei apenas com legendas”.
Pelo restante do livro, o poeta
declara que toda Medeia pouca
é bobagem e se confessa uma
Medeia-Maysa. Parece saber – e
nos avisar – que toda desilusão
amorosa se equilibra entre a tragédia
grega e uma música popular.
Como estamos falando de uma obra
que tematiza ciclos, há um ponto que
antecede a irrevogável substituição do
amante. O instante zero de fascínio
amoroso. Jannis recebe a precisa
dedicatória do poema "Texto em que o
poeta celebra o amante de vinte e cinco anos",
que enaltece o êxtase e desconhece o
amargor de um samba-canção:
“Houve / guerras mais duradouras / que você. / Parabenizo-o pelo sucesso/ hoje/ de
sobreviver à expectativa/ de vida/ de
uma girafa ou morcego,/ vaca/ velha ou
jiboia-constritora,/ coruja./ Pinguins,
ao redor do mundo, e porcos,/ com
você concebidos, morrem./ Saturno,/
desde que se fechou seu óvulo,/ não/
circundou o Sol uma vez única”.
Jannis reaparece, ainda que desta
vez não evocado diretamente, como
a inspiração capaz de resgatar o
poeta de uma existência pregressa
de desilusões, fazendo-nos entrever
que nem sempre a crença num “ciclo
do amante substituível” foi uma
realidade irrevogável. Houve, sim, um
momento de suspensão, um “antes”
da máscara de Medeia-Maysa ser uma
fantasia pouco carnavalesca colada
à face: “nunca mais comensal de
farelos e migalhas/ de machos-alfa
ou godfathers,/ e doravante/ não mais
sofresse a dependência/ dos movimentos
voluntários/ alheios/ para exercitar
no amante meus cinco sentidos,/ ou
acabar, como sempre dantes, forçado,/
com minha própria mão febril/ sobre
minha própria testa,/ a constatar
e provar a mim mesmo a minha
febre,/ pois relegaria a você, moço,/
a regulação da nossa temperatura”.
Jannis é o amante, mas não o único
objeto de desejo, a trafegar diante
de um escritor carente por epifanias
(como costumam ser os escritores)
e por musos ocasionais. O poema "O
acordeonista da Catedral de Bruxelas" se ergue
num crescendo de erotismo, na visão
ideal que parece ser o desejo de todo
flâneur:
“De Bruxelas eu/ esperava tudo,
talvez (…)/ mas não/ este acordeonista/
loiro de 20 anos/ diante da Catedral,/
sim, a de Bruxelas,/ acordeonista loiro
e imberbe,/ alto e imundo,/ a quem
doei 2 euros/ num excitativo segundo
de tato/ entre sua mão e meus dedos
fechados/ abrindo-se em bojo sobre
sua palma/ após fazer com a visão/ o
rodízio contemplativo e luxurioso”.
O acordeonista permanece anônimo
até o fim do poema, como anônimas
costumam ser essas fantasias/visões,
a despeito da frustração do poeta
em travar alguma possível maior
intimidade: “e passarei a chamar de
Loïc/ ou quem sabe Guillaume/ pelo
resto dos meus dias/ após falhar em
criar os colhões/ de pedir seu nome”.
O acordeonista, um desconhecido,
assim como de certa forma acaba sendo
Jannis, esse alvo de uma dedicatória,
que acabamos conhecendo tanto e tão
pouco ao final do livro. É compreensível.
Afinal, Ciclo do amante substituível é uma
obra de ficção, embora sua narrativa
pareça devedora de pessoas e fatos reais,
negando qualquer mera coincidência. E é
justamente nessa fricção entre memória
e imaginação que uma obra literária faz
sentido e nos proporciona a liberdade
borgiana de interpretá-la à nossa
vontade. Somos nós que escolhemos
o ponto exato onde parar no ciclo dos
amantes; é nossa a escolha de substituir
ou não a figura de Jannis, ainda que
estejamos diante de uma roda-viva.
Escritor de obsessivo cuidado com a
escolha da palavra exata (para além de
biografemas e conjecturas que venham
a atropelar o leitor), Domeneck fez
da sua “teoria” sobre um possível (e
não o possível, para não sermos tão
deterministas quanto o poeta) ciclo do
amante substituível uma obra de pura
sedução estética.
Ao ler a poesia de Adrienne Rich pela primeira vez, no fim do século passado, ela não captou muito do meu interesse. À época eu estava preocupado e interessado demais em outros aspectos do fazer poético, pesquisando a instância experimental e particularmente antidiscursiva dos poetas norte-americanos, extremamente diversos entre si, ligados à Black Mountain College, como Charles Olson, Robert Creeley, John Cage ou Robert Duncan; os poetas da Escola de Nova Iorque, especialmente Frank O´Hara e John Ashbery, com sua poética pós-dadaísta; e, numa geração posterior, a pesquisa de autoras associadas à revista L=A=N=G=U=A=G=E, especialmente Lyn Hejinian, Rosmarie Waldrop e Susan Howe.
Voltei a ler o trabalho de Adrienne Rich por volta de 2006, ano em que dediquei muito do meu tempo à leitura de crítica, ao ler o livro Self and Sensibility in Contemporary American Poetry (1984), do crítico norte-americano Charles Altieri, no qual faz uma discussão longa e elaborada sobre os papeis socioculturais que a poesia lírica pode ainda assumir em nossa era. Nele, o crítico discute três poetas de forma mais detida: Robert Creeley, num capítulo intitulado "Robert Creeley´s poetics of conjecture: the pains and pleasures of staging a self at war with its own lyric desires"; John Ashbery, no capítulo "John Ashbery: discursive rhetoric within a poetics of thinking"; e nossa poeta em questão, no capítulo "Self-reflection as action: the recent work of Adrienne Rich". Charles Altieri aponta ali John Ashbery e Adrienne Rich como aqueles que melhor cumpriram algumas das funções ainda possíveis para o poeta comovoz comunitária no pós-guerra norte-americano. O livro, polêmico em suas asserções, afirmaria que a poesia de Robert Creeley seria falha neste aspecto. Como escrevi em minha pequena nota sobre Rich para a Modo de Usar & Co., não me subscrevo às opiniões do crítico, mas recomendo o livro como discussão bastante interessante e inteligente sobre os dilemas que poetas líricos enfrentam nos dias de hoje. Naquele momento, o que me interessava era a maneira como Ashbery, munido de uma poética muitas vezes tão antidiscursiva, podia assumir tais funções aos olhos do crítico.
Foi apenas mais recentemente, pesquisando sobre poetas que lidaram em sua poesia com a conturbada relação GENDER/GENRE, que retornei a Adrienne Rich. Vejamos um dos seus poemas mais famosos, o que dá título a seu primeiro livro importante, Diving into the wreck (1973):
Diving into the Wreck Adrienne Rich
First having read the book of myths, and loaded the camera, and checked the edge of the knife-blade, I put on the body-armor of black rubber the absurd flippers the grave and awkward mask. I am having to do this not like Cousteau with his assiduous team aboard the sun-flooded schooner but here alone.
There is a ladder. The ladder is always there hanging innocently close to the side of the schooner. We know what it is for, we who have used it. Otherwise it is a piece of maritime floss some sundry equipment.
I go down. Rung after rung and still the oxygen immerses me the blue light the clear atoms of our human air. I go down. My flippers cripple me, I crawl like an insect down the ladder and there is no one to tell me when the ocean will begin.
First the air is blue and then it is bluer and then green and then black I am blacking out and yet my mask is powerful it pumps my blood with power the sea is another story the sea is not a question of power I have to learn alone to turn my body without force in the deep element.
And now: it is easy to forget what I came for among so many who have always lived here swaying their crenellated fans between the reefs and besides you breathe differently down here.
I came to explore the wreck. The words are purposes. The words are maps. I came to see the damage that was done and the treasures that prevail. I stroke the beam of my lamp slowly along the flank of something more permanent than fish or weed
the thing I came for: the wreck and not the story of the wreck the thing itself and not the myth the drowned face always staring toward the sun the evidence of damage worn by salt and away into this threadbare beauty the ribs of the disaster curving their assertion among the tentative haunters.
This is the place. And I am here, the mermaid whose dark hair streams black, the merman in his armored body. We circle silently about the wreck we dive into the hold. I am she: I am he
whose drowned face sleeps with open eyes whose breasts still bear the stress whose silver, copper, vermeil cargo lies obscurely inside barrels half-wedged and left to rot we are the half-destroyed instruments that once held to a course the water-eaten log the fouled compass
We are, I am, you are by cowardice or courage the one who find our way back to this scene carrying a knife, a camera a book of myths in which our names do not appear.
A estratégia aqui, numa linguagem imagético-discursiva e extremamente direta, ainda que se entregue a certas circunvoluções metafóricas, é claramente formada por escolhas bastante distintas das de poetas que começaram a escrever à mesma época, como Lyn Hejinian e Rosmarie Waldrop. Vejamos dois textos destas últimas, especificamente de My Life (Hejinian) e Lawn of excluded middle (Waldrop):
The windows were open and the morning air was, by the smell of lilac and some darker flowering shrub, filled with the brown and chirping trills of birds. As they are if you could have nothing but quiet and shouting. Arts, also, are links. I picture an idea at the moment I come to it, our collision. Once for a time, anyone might have been luck's child. Even rain didn't spoil the barbecue, in the backyard behind a polished traffic, through a landscape, along a shore. Freedom then, liberation later. She came to babysit for us in those troubled years directly from the riots, and she said that she dreamed of the day when she would gun down everyone in the financial district. That single telephone is only one hair on the brontosaurus. The coffee drinkers answered ecstatically. If your dog stays out of the room, you get the fleas. In the lull, activity drops. I'm seldom in my dreams without my children. My daughter told me that at some time in school she had learned to think of a poet as a person seated on an iceberg and melting through it. It is a poetry of certainty. In the distance, down the street, the practicing soprano belts the breeze. As for we who "love to be astonished," money makes money, luck makes luck. Moves forward, drives on. Class background not landscape--still here and there in 1969 I could feel the scope of collectivity. It was the present time for a little while, and not so new as we thought then, the present always after war. Ever since it has been hard for me to share my time. yellow of that sad room was again the yellow of naps, where she waited, restless, faithless, for more days. They say that the alternative for the bourgeoisie was gullibility. Call it water and dogs. Reason looks for two, then arranges it from there. But can one imagine a madman in love. Goodbye; enough that was good. There was a pause, a rose, something on paper. I may balk but I won't recede. Because desire is always embarrassing. At the beach, with a fresh flush. The child looks out. The berries are kept in the brambles, on wires on reserve for the birds. At a distance, the sun is small. There was no proper Christmas after he died. That triumphant blizzard had brought the city to its knees. I am a stranger to the little girl I was, and more--more strange. But many facts about a life should be left out, they are easily replaced. One sits in a cloven space. Patterns promote an outward likeness, between little white silences. The big trees catch all the moisture from what seems like a dry night. Reflections don't make shade, but shadows are, and do. In order to understand the nature of the collision, one must know something of the nature of the motions involved--that is, a history. He looked at me and smiled and did not look away, and thus a friendship became erotic. Luck was rid of its clover.
My Life, Lyn Hejinian.
§
It’s a tall order that expects pain to crystallize into beauty. And we must close our eyes to conceive of heaven. The inside of the lid is fertile in images unprovoked by experience, or perhaps its pressure on the eyeball equals prayer in the same way that inference is a transition toward assertion, even observing rites of dawn against a dark and empty background. I have read that female prisoners to be hanged must wear rubber pants and a dress sewn shut around the knees because uterus and ovaries spill with the shock down the shaft.
Lawn of excluded middle, Rosmarie Waldrop.
Estou ciente de que os dois livros de Hejinian e Waldrop são posteriores (1984 e 1993, respectivamente) ao de Rich, mas as diferenças aqui vistas marcam o trabalho das poetas. A indeterminação, para usar expressão de uma crítica como Marjorie Perloff que já ironizou a poética imagético-discursiva de outras poetas como Adrienne Rich, é o que comanda a atenção composicional de Hejinian e Waldrop, buscando uma intervenção política mais na maneira como uma mulher usa a língua que naquilo que é dito ou na ironia contra a imagética geralmente usada para definir a sensibilidade feminina, esta última estratégia a que Adrienne Rich prefere. No trabalho de uma poeta como Bernadette Mayer, que já discuti algumas vezes aqui, talvez encontremos um ponto de equilíbro entre estas estratégias, como no grande poema "Eve of Easter", que Mayer lê no vídeo abaixo a 26 de abril de 1978:
No entanto, imagino que para uma poeta-ativista como Adrienne Rich, tais estratégias parecessem demasiado oblíquas. Basta lermos seu discurso ao aceitar o National Book Award de 1974, justamente pelo livro Diving into the wreck, escrito a seis mãos com Alice Walker e Audre Lorde, esta última ainda mais direta na batalha (peço aos homens brancos heterossexuais que pensem duas vezes antes de enviar mensagens ou comentários protestando - já que são sempre homens brancos heterossexuais que protestam nestes momentos):
Audre Lorde (1934 – 1992) , que também assinou o discurso/manifesto acima, teve um papel muito importante neste debate durante a segunda metade do século XX, denunciando o que a seu ver seria uma espécie de miopia racial dentro do discurso feminista, acusando feministas brancas de ignorarem diferenças entre as experiências de mulheres de grupos étnicos e sexuais distintos.
O poema de Adrienne Rich habilmente escolhido e traduzido por Ismar Tirelli Neto (leia-o ao final desta postagem), que publicamos esta semana na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., talvez seja um exemplo perfeito para demonstrar a qualidade do trabalho de Adrienne Rich a partir de suas escolhas de intervenção. Sua linguagem faz-me pensar no belo poema precursor de Mina Loy, "The Effectual Marriage or the Insipid Narrative of Gina and Miovanni":
The Effectual Marriage or the Insipid Narrative of Gina and Miovanni (excertos)
Mina Loy
(...)
In the evening they looked out of their two windows Miovanni out of his library window Gina from the kitchen window From among his pots and pans Where he so kindly kept her Where she so wisely busied herself Pots and Pans she cooked in them All sorts of sialagogues Some say that happy women are immaterial
So here we might dispense with her Gina being a female But she was more than that Being an incipience a correlative an instigation of the reaction of man From the palpable to the transcendent Mollescent irritant of his fantasy Gina had her use Being useful contentedly conscious She flowered in Empyrean From which no well-mated woman ever returns
(...)
While Miovanni thought alone in the dark Gina supposed that peeping she might see A round light shining where his mind was She never opened the door Fearing that this might blind her Or even That she should see Nothing at all So while he thought She hung out of the window Watching for falling stars And when a star fell She wished that still Miovanni would love her tomorrow And as Miovanni Never gave any heed to the matter He did
(...)
Os trabalhos de poetas como Mina Loy e Muriel Rukeyser têm sido aos poucos reivindicados como precursores de tantas destas intervenções, por críticas como Marjorie Perloff (que escreveu longamente sobre Loy) e por poetas como Rachel Blau DuPlessis ou a própria Adrienne Rich, que viria a escrever sobre a última: "Rukeyser was one of the great integrators, seeing the fragmentary world of modernity not as irretrievably broken, but in need of societal and emotional repair." Talvez como o de outros poetas da década de 30 norte-americana, geração tão politizada e ativista quanto a brasileira, britânica e alemã da mesma década, o trabalho de Rukeyser, como o de Rexroth e Patchen, por exemplo, parecem sofrer do mesmo silêncio que por anos caiu sobre George Oppen e Louis Zukofsky, até que os poetas do pós-guerra os reivindicaram como mestres.
Satirizando um dos clichês sobre mulheres, numa intervenção sutil na política dos gêneros como a que Clarice Lispector também faria, Muriel Rukeyser escreveu seu "St. Roach", ou "Sta. Barata":
St. Roach Muriel Rukeyser
For that I never knew you, I only learned to dread you, for that I never touched you, they told me you are filth, they showed me by every action to despise your kind; for that I saw my people making war on you, I could not tell you apart, one from another, for that in childhood I lived in places clear of you, for that all the people I knew met you by crushing you, stamping you to death, they poured boiling water on you, they flushed you down, for that I could not tell one from another only that you were dark, fast on your feet, and slender. Not like me. For that I did not know your poems And that I do not know any of your sayings And that I cannot speak or read your language And that I do not sing your songs And that I do not teach our children to eat your food or know your poems or sing your songs But that we say you are filthing our food But that we know you not at all.
Yesterday I looked at one of you for the first time. You were lighter that the others in color, that was neither good nor bad. I was really looking for the first time. You seemed troubled and witty.
Today I touched one of you for the first time. You were startled, you ran, you fled away Fast as a dancer, light, strange, and lovely to the touch. I reach, I touch, I begin to know you.
Adrienne Rich publicaria ainda os livros Twenty-one Love Poems (1976), The Dream of a Common Language (1978), A Wild Patience Has Taken Me this Far (1982), Sources (1983), Your Native Land, Your Life (1986), Time’s Power (1989), An Atlas of the Difficult World (1991), Dark Fields of the Republic (1995), Midnight Salvage (1999), Fox (2001), The School Among the Ruins (2004), Telephone Ringing in the Labyrinth (2007) e o último Tonight No Poetry Will Serve (2010). Adrienne Rich morreu a 27 de março de 2012, aos 82 anos, em Santa Cruz, Califórnia.
Encerro esta postagem com o EXCELENTE poema traduzido por Ismar Tirelli Neto e dois vídeos com a autora.
§
§
POEMA DE ADRIENNE RICH
Instantâneos de Uma Nora
1.
Você, uma vez a bela de Shreveport, cabelos tingidos de hena, a pele como pêssego, ainda manda fazer vestidos como os que se usavam então, e toca um prelúdio de Chopin chamado por Cortot: “Deliciosas reminiscências flutuam como perfume pela memória”.
Sua mente agora, mofando como bolo de casamento, pesada de experiências inúteis, pródiga em suspeitas, rumores, fantasias, desmoronando sob o fio do mero fato. Na primavera da vida.
Inquieta, o olhar faiscante, sua filha limpa as colheres de chá, cresce para outro lado.
2.
Dando com a cafeteira na pia ela escuta o reproche dos anjos, e fita o céu desgrenhado para além de jardins impecáveis. Não faz mais de uma semana desde que disseram: Não tenha paciência.
Da próxima foi: Seja insaciável. E depois: Salve-se. Aos demais, não poderá salvar. Por vezes tem deixado a água da torneira lhe escaldar o braço, um fósforo queimar-lhe a unha do dedão,
ou posto a mão sobre a chaleira bem na lã do vapor. São provavelmente anjos posto que já nada a magoa, excetuando a areia de cada manhã indo de encontro aos olhos.
3.
Uma mulher pensante dorme com monstros. O bico que a agarra, ela se torna. E a Natureza, este ainda cômodo, destampado baú cheio de tempora e mores enche-se de tudo: …………… as flores de laranjeira cobertas de orvalho, os contraceptivos, os terríveis seios de Boadiceia sob orquídeas e cabeças chatas de raposa.
Duas belas mulheres, trancadas em discussão, ambas orgulhosas, argutas, sutis, ouço que gritam por sobre a maiólica e os cacos de vidro como Fúrias encurraladas para longe de suas presas: A discussão ad feminam, todos os velhos punhais que enferrujaram em minhas costas, o seu adentro ma semblable, ma soeur!
IV.
Conhecendo-se bem demais uma na outra seus dons sem puro desfrute, mas espinhos a agulha afiada contra uma ponta de escárnio… Lendo enquanto espera aquecer o ferro, escrevendo, Minha vida – encostada pelos cantos naquela despensa em Amherst enquanto as geleias fervem e escumam, ou, com maior frequência, de olhos fitos e embicada e obstinada como uma ave, tirando poeira a todo o triquetraque da vida cotidiana.
5.
Dulce ridens, dulce loquens ela depila as pernas até brilharem como petrificadas presas de mamute.
6.
Quando canta Corina a seu alaúde não são dela nem letra nem música; somente os longos cabelos descaindo-se sobre a bochecha, somente a canção da seda contra os joelhos, e mesmo estes ajustam-se nos reflexos de um olho.
Empertigada, trêmula e insatisfeita, ante uma porta destrancada, a jaula das jaulas, diga-nos, sua ave, sua trágica máquina – será isto fertilisante douleur? Esmagada pelo amor, para ti a única reação natural, estarás acirrada a ponto de arrombar os segredos do cofre? a Natureza, nora, mostrou-te enfim os livros de contabilidade que seu próprio filho sempre ignorou?
7.
Ter neste incerto mundo alguma posição inabalável é da maior importância. …………………………………….Assim escreveu uma mulher, em parte boa e em parte audaz, que lutou com o que não compreendia de todo. Poucos homens a seu redor teriam feito mais, portanto a rotularam puta, megera, engodo.
8.
“Morreis todos aos quinze anos”, disse Diderot, mudando-se metade em lenda, metade em convenção. No entanto, olhos sonham equivocamente por detrás de janelas fechadas, empastadas de vapor. Deliciosamente, tudo o que poderíamos ter sido, tudo o que fomos – fogo, lágrimas, espírito, gosto, ambição martirizada – agita-se como a lembrança do adultério recusado o seio murcho e esvaziado de nossa “meia idade”.
9.
Não que se faça bem, mas que se faça e ponto? Pois bem, pense nas possibilidades! ou ignore-as para sempre. Estes luxos da criança precoce, a querida inválida do Tempo – abdicaríamos, minhas caras, se nos fosse dado? Nossa praga foi também nossa sinecura: mero talento nos bastava – brilho em rascunhos e fragmentos.
Não mais suspirem, minhas senhoras. ………………………………………………………..O tempo é macho e em suas taças bebe ao belo. Divertidas pelo galanteio, ouvimos enquanto nos louvam as mediocridades, indolência lida como abnegação, desleixo lido como intuição refinada, cada deslize perdoado, o único crime sendo estampar uma sombra demasiado notável ou sumariamente destruir o molde.
Para isso, a solitária, o gás lacrimogênio, os estilhaços. Poucas pleiteam este tipo de honra.
13.
……………………………………………………….Bom, ela posterga sua chegada, que lhe deve parecer tão pouco clemente quanto a própria história. A mente cheia ao vento, vejo-a mergulhar de seios e relanceando pelas correntezas, tomando a luz sobre si, pelo menos tão bela quanto qualquer menino ou helicóptero, …………………………………………..empertigada, chegando ainda, suas finas hélices fazendo o ar recuar mas sua carga já nenhuma promessa: entregue palpável nossa.
1958 – 1960
(tradução de Ismar Tirelli Neto)
§
Snapshots of a Daughter-in-Law
1.
You, once a belle in Shreveport, with henna-colored hair, skin like a peachbud, still have your dresses copied from that time, and plays a Chopin prelude called by Cortot: “Delicious recollections float like perfume through the memory”.
Your mind now, moldering like wedding-cake, heavy with useless experience, rich with suspicion, rumor, fantasy, crumbling to pieces under the knife-edge of mere fact. In the prime of your life.
Nervy, glowering, your daughter wipes the teaspoons, grows another way.
2.
Banging the coffee pot into the sink she hears the angels chiding, and looks out past the raked gardens to the sloppy sky. Only a week since They said: Have no patience.
The next time it was: Be insatiable. Then: Save yourself; others you cannot save. Sometimes she’s let the tapstream scald her arm, a match burn to her thumbnail,
or held her hand above the kettle’s snout right in the wooly steam. They are probably angels, since nothing hurts her anymore, except each morning’s grit blowing into her eyes. 3.
A thinking woman sleeps with monsters. The beak that grips her, she becomes. And Nature, that sprung-lidded, still commodious steamer-trunk of tempora and mores gets stuffed with it all: ………………….. the mildewed orange-flowers the female pills, the terrible breasts of Boadicea beneath flat foxes’ heads and orchids.
Two handsome women, gripped in argument, each proud, subtle, I hear scream across the cut glass and majolica like Furies cornered from their prey: The argument ad feminam, all the old knives that have rusted in my back, I drive in yours, ma semblable, ma soeur!
4.
Knowing themselves too well in one another: their gifts no pure fruition, but a thorn, the prick filed sharp against a hint of scorn… Reading while waiting for the iron to heat, writing, My life had stood – a Loaded Gun – in that Amherst pantry while the jellies boil and scum, or, more often, iron-eyed and beaked and purposed as a bird, dusting everything on the whatnot every day of life. 5.
Dulce ridens, dulce loquens she shaves her legs until they gleam like petrified mammoth-tusk.
6.
When to her lute Corinna sings neither words nor music are her own; only the long hair dipping over her cheek, only the song of silk against her knees and these adjusted in the reflection of an eye.
Poised, trembling and unsatisfied, before an unlocked door, that cage of cages, tell us, you bird, you tragical machine – is this fertilisante douleur? Pinned down by love, for you the only natural action, are you edged more keen to prise the secrets of the vault? has Nature shown her household books to you, daughter-in-law, that her son never saw? 7.
To have in this uncertain world some stay which cannot be undermined, is of the utmost consequence. ………………………………………………Thus wrote a woman, partly brave and partly good, who fought with what she partly understood. Few men about her would or could do more, hence she was labeled harpy, shrew and whore.
8.
“You all die at fifteen”, said Diderot, and turn part legend, part convention. Still, eyes inaccurately dream behind closed windows blankening with steam. Deliciously, all that we might have been, all that we were – fire, tears, wit, taste, martyred ambition – stirs like the memory of refused adultery the drained and flagging bosom of our middle years.
9.
Not that it is done well, but that it is done at all? Yes, think of the odds! or shrug them off forever. This luxury of the precocious child, Time’s precious chronic invalid, – would we, darlings, resign it if we could? Our blight has been our sinecure: mere talent was enough for us – glitter in fragments and rough drafts.
Sigh no more, ladies. ………………………………Time is male and in his cups drinks to the fair. Bemused by gallantry, we hear our mediocrities over-praised, indolence read as abnegation, slattern thought styled intuition, every lapse forgiven, our crime only to cast too bold a shadow or smash the mold straight off.
For that, solitary confinement, tear gas, attrition shelling. Few applications for that honor.
10.
……………………………………………………………..Well, she’s long about her coming, who must be more merciless to herself than history. Her mind full to the wind, I see her plunge breasted and glancing through the currents, taking the light upon her at least as beautiful as any boy or helicopter, …………………………………………………poised, still coming, her fine blades making the air wince but her cargo no promise then: delivered palpable ours.