terça-feira, 10 de abril de 2012

Alguns poemas brasileiros: "- você falou honey bunny, não falou?", de Érica Zíngano

Érica Zíngano

Encerro hoje a série de pequenas postagens sobre os poetas brasileiros convidados por minha curadoria para o Festival de Poesia de Berlim. Postei aqui poemas de Horácio Costa, Jussara Salazar, Ricardo Aleixo, Marcos Siscar e Dirceu Villa. Nesta postagem, um belo poema de Érica Zíngano, "- você falou honey bunny, não falou?", publicado originalmente no terceiro número impresso da Modo de Usar & Co. (Rio de Janeiro: Berinjela, 2011).

Érica Zíngano nasceu em Fortaleza, no Ceará, em 1980. Publicou com as poetas Roberta Ferraz e Renata Huber a coletânea de autoria coletiva Fio, Fenda, Falésia (São Paulo, 2010). A autora vive hoje em Lisboa, onde desenvolve tese sobre a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931 - 2008) na Universidade Nova de Lisboa.

A parceira germânica de Érica Zíngano no Festival será a poeta Ann Cotten, nascida nos Estados Unidos em 1982, tendo crescido em Viena, na Áustria, onde desenvolveu trabalho acadêmico sobre o Grupo de Viena, e vivendo em Berlim desde 2006. Em 2007, a editora Suhrkamp publicou seu livro de estreia, Fremdwörterbuchsonette (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007), cuja recepção entusiástica pela crítica transformou-a numa das estrelas da jovem poesia em alemão.

A poesia lírica de Érica Zíngano me interessa muito, por vários aspectos. Por exemplo, seu trabalho com a colagem e apropriação de material alheio e muitas vezes "antilírico", como no texto "teoria dos gêneros" que pode ser lido na página dedicada a seu trabalho na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., no qual transforma a descrição de uma bula de remédio, o Lyrika®, por suas implicações, em abordagem às possibilidades do trabalho lírico hoje. Ou em "problemas metafísicos", que apesar do título grandioso parte de um comercial de ovos para satirizar certas veleidades filosóficas na poesia. É trabalho que a une tanto aos poetas ligados à revista DADA como às técnicas da Internacional Situacionista no pós-guerra.

No entanto, no poema abaixo, Zíngano recorre ao verso curto e rápido para um texto conversacional de grande carga emotiva, usando um minimalismo que busca menos a concisão que a incisão. Lirismo com os pés no chão, o que me faz pensar em certa estrofe de Hadewijch de Antuérpia (1190 - 1240), cujo trabalho me foi generosamente apresentado por Zíngano em uma conversa em Lisboa – aqui em tradução de João Barrento: "Às vezes indulgentes e às vezes rudes, / às vezes tenebrosos e às vezes brilhantes: / ao liberar consolo, no medo coercitivo, / no aceitar e no dar, / devem aqueles que são / cavaleiros errantes no Amor / viver sempre aqui embaixo."



Érica Zíngano lê excertos do poema "- Você falou honey bunny, não falou?" na cidade do Porto, em vídeo de Patrícia Lino.

§

- você falou honey bunny, não falou?
Érica Zíngano

i.

repito comigo
como se fosse jovem
o menino
mas sua ranhura de dentes
de tripas e rins
ideias constantes
de fazer crescer hera
aos ouvidos
enquanto pergunto
quantas vezes
te tropeças os pés
ossos mal-equilibrados
ao fazer o caminho
entre o almoço
e a siesta
variamos as línguas
na cumplicidade de sermos
entendidos
ao repetir a palavra
amor
aquela velha casa
onde vinhas me visitar
antes mesmo de me conhecer
quando tentava
inutilmente
gravar 10 variações
por segundo de um sorriso meu
arrastando a impressão
de um cinema mudo
em cada expressão
espontânea
tínhamos o mesmo retrato
num fuso horário diferente
água e greenwich
atravessado
por leves movimentos
de bater de dedos
(armações possíveis
para driblar o coração
sempre em segredo)
e de novo insistes
na palavra
amor
sem significado
quando pronuncio
numa língua
estranha
Înainte de a te cunoaşte
veneam şi te sărutam la tine acasă

um pouco mais pra direita
de onde estás
essa imprecisão
de lugares
ao dizer glicério
ao invés de glicínias
azaléias
ou papoulas
bem abertas
como os olhos
que não chegam
a perceber
toda a umidade guardada
de onde escreves
dublando-te a ti mesmo
para tentar recuperar
aquela luz antiga
que dizias haver
entre nós

ii.

se insisto nisto -
pau de sebo
graxa pegada
nos dedos
subtração
em degredo
a saber quantos
anos se passaram
depois de duvidares
meu nome
uma oscilação
de zéfiros
a percorrer teus pensamentos
entre uma coca-cola
e um cigarro
é porque
meu bem
não há como explicar
o exato momento
em que soletramos
arpões
no lugar de harpias
esse mistério
das sincronias
que fazem com que
tua imagem se reflita
por sobre meu rosto
desfocado
cruzando em arco
a cidade

iii.

não posso
(e abre os olhos
interrompendo)
a palavra não pronuncia
e a boca ainda aberta
congelada
na duração do movimento
uma língua a querer
fazer graça
desmanchar depois
o que não consegue dizer
e ainda assim
sem saber
o quanto poderia esconder
em peixe, cicuta ou verniz
insiste
mais uma vez
por displicência
ou desejo
- levanta e volta
continua em treino
não aceita ser lesada
pela língua
mais de uma vez

iv.

não podemos ficar andando em círculos
quando temos um mapa na mão
para o carro e olha
em volta
essas linhas
que desenham sobrancelhas
nariz e boca - respiração
não podemos ficar andando em círculos
quando temos um mapa na mão
para o carro e olha
em volta
essas linhas
que desenham extremidades
e novos continentes
tudo reconhecido a olho nu
à primeira vista babe
como se não se tratasse mesmo
de uma língua-madre
irmão

v.

arranja os livros
em lugares
por cores
cheiros
e pensamentos
abstratos
quer dizer
não se limita
a nomes ou números
também tem o estranho hábito
de procurar ligações
internas
entre as páginas
- por isso -
toma café abrindo
mais de três edições
ao mesmo tempo
sempre a página cinquenta
e sete porque desacredita
das verdades absolutas
que podem ser reveladas
por detalhes mínimos
mas repete os mesmos versos
há anos, como se nisso
houvesse
alguma garantia
anda distante de objetos
cortantes
por sentir choque
uma espécie que irrita
os mais próximos
mas mesmo assim
não desiste
cria gatos
porque não saberia viver
sem nada que lhe tirasse
a atenção
onde menos se espera
é como toda a gente
alegre-triste
ao mesmo tempo
mas só lava os cabelos
uma vez por semana
por hábito
de não ser contrariado


(publicado originalmente no terceiro número impresso da Modo de Usar & Co.)

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