quarta-feira, 9 de abril de 2014

"Texto em que o poeta escandaliza-se com as implicações do fato de que as estátuas gregas eram na verdade a cores enquanto pensa em sua vida amorosa"

Durante as férias, o relógio
foi ignorado, mas não
pausou. Não é necessário
proteger as estátuas
da chuva e basta
para negar que a alegria
sobrevive a meio inverno
saber que a cura
a todas as tuas alergias
e urticárias será o inferno.
Na mesma Berlim
em que alguns foram escritos
mas não na mesma Berlim,
os Selected Poems de Tsvetáieva
fazem de suas enxaquecas
aspirinas às minhas.
E imaginamos que a casa
que se reduziu a cinzas
queima ainda
na memória, membrana
com membrana ainda se tocam
e nossas glândulas em uníssono
todavia celebram um sim dito
em conjunto, que aquela cama
estará sempre desfeita
à espera de mãos úmidas de leite
e colos cobertos com as migalhas
do pão partido naquele último
café-da-manhã juntos.
Se o mesmo
sol brilha, o calendário
é para esta lembrança
a tradução de um original
a que não se tem mais acesso
e o citamos de memória.
A trama desta história
imbricou-se por atalhos
ou contornos demais.
Eu perco a meada
do fio. Confundo Gogol
e Gorky, gargalo
e gogó, sei que Nezahualcóyotl
talvez não entenderia a sina
de Nabucodonozor ou Napoléon
e se de repente um leão
pudesse falar nossa língua,
nós mesmo assim correríamos
de sua abordagem.
Pessoalmente,
sigo imputando a culpa de tudo
ao fato de na infância
terem me ensinado
que Frankenstein
era a criatura, não
o criador.
Se eu o invocasse numa língua-fetiche
e o chamasse de Baba ou Abba,
em suaíle ou aramaico, então iídiche,
e o sentisse crescer feito baobá
a desarvorar desaforo, oba-oba, índice,
pois sei mortas todas as línguas
até que o lambam,
lama sabachthani,
sou lesma de sábado, tanning
ao sol que também o cobre
e cobreia, sou aquele cofre
cujo segredo é tão-somente
o número do meu telefone.
Esta é uma guerra em que, ao fim,
o lado perdedor é o que exige
reparações e o direito ao motim,
e apenas não se chora o leite
que se derrama pelos cantos
dos lábios se parte desce
pelo canal do esôfago
e a poça
no chão encontra-se
ainda ao alcance da boca.


§


Ricardo Domeneck, publicado originalmente no quarto número impresso da Modo de Usar & Co.

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