sábado, 21 de novembro de 2015

Performance hoje à noite em Bamberg

Faço uma performance hoje à noite em Bamberg, na Bavária, ao lado de Nora Gomringer e dos grupos PLOT e subtext. Vai dedicada ao poeta palestino Ashraf Fayadh, condenado à morte na Arábia Saudita,  aliada dos Estados Unidos, por acusação de apostasia e renunciar ao Islã. Prova: boatos e poemas seus. Vai também ser dedicada à criatura que me mandou uma mensagem anônima há três noites em um destes aplicativos de trepadas, dizendo "deixe nosso país." Como ele não especificou se eu deveria deixar a Bavária, a Alemanha, a Europa ou o Ocidente, vou ficando por aqui.

 

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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Um poema de Warsan Shire



o que eles fizeram ontem à tarde

atearam fogo à casa de minha tia
chorei à maneira das mulheres na tv
dobrando-me ao meio
como uma nota de cinco libras.
liguei para o menino que costumava me amar
tentei "endireitar" minha voz
eu disse alô
ele disse warsan, o que foi, o que houve?

tenho rezado
e é assim que soam minhas rezas;
querido deus
eu venho de dois países
um tem sede
o outro arde
ambos precisam de água

mais tarde naquela noite
eu pus um atlas no colo
passei os dedos ao longo do mundo
e perguntei
onde dói?

ele respondeu
por toda parte
por toda parte
por toda parte

(tradução de Ricardo Domeneck)

:

what they did yesterday afternoon
Warsan Shire

they set my aunts house on fire
i cried the way women on tv do
folding at the middle
like a five pound note.
i called the boy who use to love me 
tried to ‘okay’ my voice
i said hello
he said warsan, what’s wrong, what’s happened?

i’ve been praying,
and these are what my prayers look like;
dear god
i come from two countries
one is thirsty
the other is on fire
both need water.

later that night
i held an atlas in my lap
ran my fingers across the whole world
and whispered
where does it hurt?

it answered 
everywhere
everywhere
everywhere.

§

Warsan Shire é uma poeta nascida no Quênia de pais refugiados da Somália, em 1988, que emigrou ainda criança com a família para a Inglaterra, ainda na condição de refugiados. Em 2011, publicou a plaquete Teaching My Mother How To Give Birth.

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quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Próximo lançamento musical do nosso selo Gully Havoc :::: CROOKED WAVES

Nelson Bell / Crooked Waves

Gully Havoc é o selo musical e editora que Black Cracker e eu fundamos em Berlim. Já lançamos o álbum de Black Cracker, Pos-Ter Boy, e no mês que vem sairá a antologia de escritores internacionais residentes em Berlim, que editei, intitulada Your + 1: some Berlin-based international writing (Berlin: Gully Havoc, 2015).

Nosso próximo lançamento musical será o primeiro EP do produtor alemão Nelson Bell, que assina Crooked Waves. Acabamos de lançar sua página no FB, apoie o jovem produtor curtindo a página, e ouça esta faixa que ele liberou para celebrar a coisa toda. O EP sai em abril 2016.

 
Nelson Bell a.k.a. Crooked Waves - "Dreamer" featuring Teema E
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terça-feira, 10 de novembro de 2015

luzia do brasil


O crânio de "Luzia"


luzia do brasil
algo, um resto,
uma sobra,
luzia da terra,
luzia enterrada
essa migalha,
se do passado
ou futuro
não
se sabe,
mas segue-se
dando nomes
luminosos
a façanhas
e ossadas
dessa terra,
a brasa
na lama,
a luz
no fundo
da terra,
cava-se
até não
sobrar,
arranca-se
até não
restar,
e eis
que aqui
jaz
luzia, osso
ou caroço,
resíduo
ou semente,
não
se sabe,
será cálcio
ou caule
num sulco
ou túmulo,
mas ainda
luzia, luzia,
a primeira,
a primeira
que restou,
a última
que sobrou,
seus restos
os primeiros,
os últimos
do solo
que se faz
território
a que um dia
dariam outro
nome luzidio,
brasil, e luzia
que certo
não
sonharia
essa noção
de trapos
e bagaço
e lama
e detritos
e pó
que se
chamou
colônia,
império,
república,
estado
-nação,
não,
luzia
não
sonhou
brasil
nenhum,
quiçá
brasil
seja tão

o pesadelo
repetindo-se
no vão
do tempo
dentro
do crânio
de luzia

§

Texto da série "As enterradas vivas", alguns dos quais foram publicados no meu novo livro, Medir com as próprias mãos a febre (Rio de Janeiro / Lisboa: 7Letras / Mariposa Azual, 2015). Este é inédito.

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quarta-feira, 4 de novembro de 2015

"Erguer-se" :: faixa de Sandra X :: sobre texto meu :: vídeo de Papá Fraga

"Erguer-se" :: faixa de Sandra X 
:: texto de Ricardo Domeneck :: vídeo de Papá Fraga :: performance do Coletivo Dodecafônico
(São Paulo)


Pequena história sobre este vídeo, acima: eu conheci Sandra Ximenez em 2001, quando ambos fazíamos parte de um grupo em torno de Lu Carion, trabalhando sobre as técnicas do coreógrafo mineiro Klauss Vianna (1928-1992). Sim, eu tenho um pé na dança. No ano seguinte, eu deixaria o Brasil e o grupo, que viria a se transformar no Grupo de Teatro Obara (Lu Carion, Verônica Veloso e Paulina Caon), baseando seu primeiro espetáculo, Fragmentos de uma carta aos anfíbios, em poemas do meu primeiro livro (Carta aos anfíbios, 2005).

Hoje, Verônica Veloso dirige o premiado grupo Coletivo Dodecafônico, seguindo o trabalho de percepção do espaço e do corpo e do corpo-no-espaço e do espaço-no-corpo, com quem tanto aprendi, e Sandra Ximenez, agora Sandra X, retorna a um poema do meu primeiro livro para esta faixa, "Erguer-se", que conta com o Coletivo Dodecafônico no vídeo oficial de Papá Fraga. O livro foi publicado em 2005. São dez anos. Mais, se pensarmos naquele ano fulcral de 2001, em que eu nem sabia que estava escrevendo meu primeiro livro enquanto reaprendia, com Lu Carion e as técnicas de Klauss Vianna, como se articulavam as articulações. Ver este vídeo é como assistir a um círculo que se fecha. Como nossa pele é um órgão-em-círculo.

Amanhã, quinta-feira dia 5 de novembro, em São Paulo, Sandra X lança este trabalho todo na Red Bull Station às 19:30. Obrigado, Sandra. Bom estar na sua voz. Devo muito a Klauss Vianna e a estas mulheres maravilhosas, Sandra, Verônica, Lu, Paulina.


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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Caríssimo Pier Paolo: uma carta ao vaga-lume no quadragésimo aniversário do seu assassinato






                  Caríssimo Pier Paolo,

faz hoje quarenta anos que massacraram o seu corpo naquela praia de Óstia, que visitei no ano passado, caminhando entre as ervas-daninhas que crescem no local onde ergueram um monumento feio. Teria sido mais bonito ver vaga-lumes sobrevoando o ponto onde seu corpo caiu e foi então pisoteado por um carro, tal como um elefante, automóvel que assim se fez ainda mais forte símbolo da industrialização e do capitalismo insanos que destruíram o seu país e vêm levando os vaga-lumes à extinção. Esta manhã, reli o seu texto “A desaparição dos vaga-lumes”, no qual você nos deu outro daqueles diagnóticos e prognósticos lúcidos de um processo que se havia iniciado em suas décadas de vida e vem se completando nas décadas da minha. Nem por um segundo compartilhamos o oxigênio do século, mas compartilhamos sim a falta de oxigênio que vem mirrando os cérebros dos seus conterrâneos e dos meus.

Ao ler seu texto sobre a degradação espiritual da Itália, como não pensar na degradação espiritual do Brasil, aonde tantos conterrâneos seus emigraram, entre eles a família de minha avó materna, italianos ruivos de Campobasso, no Molise? E a cada instância de “democratas cristãos” a comparecer em seu texto, como não pensar no governo dos democratas cristãos alemães que vem desgovernando e destruindo a tessitura humana do continente europeu? Ou nesta tentativa de transformar o Brasil também em uma democracia cristã ainda mais fajuta, apoiada no desconhecimento massivo das massas de racistas e militaristas que vivem no país, sem saber sequer o que “democracia” ou “cristandade” deveriam e poderiam realmente significar?

Os vácuos humanos do seu tempo chamavam-se Aldo Moro, Giovanni Leone e Giulio Andreotti, entre outros. O que você teria dito de um vácuo humano como Silvio Berlusconi? Você teria se interessado por vácuos humanos como Dilma Rousseff, Renan Calheiros e Eduardo Cunha, ou aquele que sequer consegue erguer-se a vácuo, sendo já uma subcategoria qualquer, candidato a vácuo, chamado Aécio Neves? Quando você foi morto em 1975, muitos eram também mortos e desaparecidos no Brasil por um vácuo humano como aquele Ernesto Geisel (doce como um pastor alemão policial), que sucedera o vácuo humano de nome auspiciosamente italiano, Emílio Garrastazu Médici, doce, enfim, como um Médici. E, de um Médici, saberia você o que esperar. E o que dizer deste pseudo-galã da política brasileira hodierna, também de sobrenome Moro?

Mas o vocabulário do meu tempo não mudou muito em relação ao seu, Pier Paolo. Ainda gritam “comunista!” a quem quer que deseje simplesmente que esta guerra de todos contra todos acabe. Gritam “obsceno!” a qualquer um que decida apoderar-se do próprio corpo. Em meu país, o vocabulário parece ter voltado no tempo, para os idos de 1964. Muitos entenderão esta carta, mas não há o que dizer aos outros, talvez poucos ou muitos, que gritarão “comunista!” e “esquerdista!”, com suas gargantas que não parecem mais ter qualquer ligação com o cérebro. Ou, na sua gritaria sempre dualista, a sensação de que o lado direito e esquerdo de seus cérebros tampouco se comunicam. Haverá talvez ainda aqueles, pseudo-eruditos, que falarão em “civilização grego-romana-cristã” e outros disparates, sem entender que vivemos ainda sob a violência de religiões de Estado impostas a uma população plural, que adora deuses e deusas distintas, quando talvez devessem todos retornar à deusa da fertilidade, a Mãe-Terra, Gaia, a mãe de todos os vaga-lumes.

E seguem impondo leis injustas e desrespeitando as passagens justas de Constituições, dos dois lados do Atlântico, como no seu tempo. Seguem massacrando corpos como o seu, destroçando homossexuais, mulheres, negros, índios. São perigosos os vácuos humanos, os que estão no poder e os que os apóiam com seus gritos roucos, saídos de suas gargantas acéfalas. Para eles, democracia é veramente “a ditadura da maioria”, não o sistema que nos iludimos em crer que poderia ter sido o que salvaguardaria os direitos de todos. Seguem eles, Pier Paolo, querendo controlar os corpos de mulheres e homossexuais como se eles próprios não tivessem corpos. Não os ocupa, seus corpos? Quanto tempo dedicado a controlar as mucosas alheias, chamando os outros de obscenos, quando obscenos são eles, homens como Eduardo Cunha, hoje no Congresso do meu país. Obscenos são estes vácuos humanos.

Foram trinta e três os processos por obscenidade contra você. E você respondia sempre que obsceno é o poder, e obsceno segue sendo, moribundamente obsceno o poder dos mortos-vivos que nos governam, dos que gritam em seu apoio, e também dos que apenas querem ter no poder os mortos-vivos de suas preferências. E pouquíssimos são os que compreendem o que poderia ser a democracia ou o que poderia ser a cristandade, como você as compreendeu, respectivamente, em poemas como “O PCI aos jovens” e em filmes como O Evangelho segundo Mateus.

Não foi à toa que seu último filme baseou-se no Marquês de Sade. Salò. Salò ontem e Salò hoje. Você sabia que a obscenidade do poder-consumo já havia cegado e lobotomizado a grande maioria. Mas que palavra bonita, lucciola, Pier Paolo! Procurei-a hoje em várias línguas e é sempre linda: em Portugal dizem pirilampo, no Japão, hotaru; na Jamaica, dizem blinkie, e na Espanha, luciérnaga; no País Basco, dizem ipurtargi, e na Malásia, kunang-kunang; em uma das línguas da Índia, dizem minnaminungu, e, em afrikaans, vuurvliegie; os finlandeses a chamam de tulikärpänen, e os índios da Nação Pottawatomi a chamam de wau-wau-too-sa. Na Alemanha, onde vivo, chamam-na sempre no diminutivo, Glühwürmchen, como uma minhoquinha que brilha. Estarão brilhando ainda no subterrâneo, é isso que insinuam os alemães? No Brasil dos falsos democratas e falsos cristãos, a chamamos de vaga-lume. Quero acreditar que estão vagando, e voltarão.


seu Ricardo, 2 de novembro de 2015,
escrevendo da Alemanha dos Democratas Cristãos, 
na língua do país dominado por aqueles que não são nem democratas nem cristãos.

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