segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Um par de coisas ao redor de Ederval Fernandes

Ederval Fernandes (retrato por Igor Fernandes)


Em 2014 estive pela segunda vez na vida em Salvador, ministrando uma oficina de escrita na Fundação Cultural do Estado da Bahia. Foi uma viagem importante para mim como crítico e como poeta por ter me colocado em contato com algumas das figuras que vêm trabalhando na cidade, como Milena Britto e Sarah Rebecca Kersley – que viriam a fundar a Livraria Boto Cor-de-Rosa e a editora Paralelo 13S mais tarde – assim como Alex Simões e James Martins. Fiz uma pequena homenagem aos poetas do estado naquela semana, com uma seleção na postagem Alguns poetas baianos.

Foi nessa oficina também que conheci o jovem poeta Ederval Fernandes, ainda inédito à época. Como viria a escrever mais tarde neste espaço na postagem "Dois poemas recentes de Ederval Fernandes":

          "Ederval Fernandes é crítico e poeta de mão firme, especialmente quando usa o corte ágil. Tem, além disso, um dos trabalhos mais interessantes, que li nos últimos tempos, na pesquisa dialetal e de léxico local, como no poema 'O cobrador da van disse' e, de outra maneira, em outro poema seu recente, 'A cabeça do preto', publicado por ele nas redes sociais, poema também de força política diante de nosso racismo sistêmico. "


Já comentei o poema dialetal de Ederval Fernandes em algumas postagens. Foi o poema que me levou a querer prestar atenção ao desenvolvimento de sua poesia.


O cobrador da van disse
Ederval Fernandes

oxeee, mô fio,
é ba-rril.
nego pagou foi pau.
né, moral,
tu num viu?
tu vai pá rua,
pacêro?
simbora, qui é passe.
dinhêro né mato,
que nasce à toa.
amanhã é dumingo,
viu, coroa?,
e cabucives é sagrado...
sem baratino,
no barro, só de boa.
e é isso meismo.
mar menino.
se alterar o plantão,
tu já num sabe?
é daquele jeito,
mô fio.
é dá um mole,
o pipoco vem.
vai, sá-cana -
é-só-o-barril.

(Fernandes, Ederval. Novas propostas de emprego para Ederval Fernandes. Salvador. Paralelo 13S. 2018.)


Naquele momento, quando o ouvi da própria boca do poeta em 2014,  ele vinha ao encontro de certas preocupações minhas, pois havia também começado a trabalhar com alguns textos dialetais a partir da linguagem interiorana de minha avó, como em "Texto em que o poeta apaixonado pensa n'O Moço e regride até na linguagem", de 2013. Lembro-me de termos conversado sobre isso à época.

O Brasil gerou certos experimentos com a poesia dialetal. No modernismo do Sudeste, com Mário de Andrade, Antônio de Alcântara Machado e – talvez o caso mais notório – Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, melhor conhecido por todos como Juó Bananère. No Nordeste, poderíamos pensar nessas escolhas linguísticas no trabalho de Catulo da Paixão Cearense, Solano Trindade ou num poema tão belo de Humberto Teixeira como é "Assum preto", imortalizado pela voz e sanfona de Luiz Gonzaga. Há no Sul ainda o caso excepcional e tão pouco conhecido da poesia cantada de Jayme Caetano Braun (1924—1999). Na poesia contemporânea, eu diria que o caso mais paradigmático seria o de Douglas Diegues. Na língua alemã, foi um aspecto forte na poesia do Grupo de Viena, especialmente na de H. C. Artmann (1921-2000).

O que rege e nubla nossa recepção destes trabalhos está além dos problemas de hegemonia do eixo Rio-São Paulo, ainda que nossa miopia seja muito agravada por ela. Eu creio que o problema seja ainda o de hegemonia da cultura urbana e das capitais sobre o rural e o interiorano. O asfalto é imperialista. O supostamente culto em nossa terra de bacharéis. E isso acaba gerando entre eixos de pixe a nossa historiografia literária com suas escolas e agrupamentos questionáveis e com conceitos, entre outros, que mais atrapalham do que ajudam. Como o Regionalismo que, se faz justiça aos grandes romancistas da década de 1930 no Nordeste, por vezes esconde sulistas como o gaúcho Simões Lopes Neto (1865-1916), nortistas como o paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979) ou até mesmo um paulista como Valdomiro Silveira (1873-1941). Estes autores, junto de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rêgo fazem parte da ala de nossa Modernidade que se desdobra sob o influxo do realismo de Machado de Assis.

§

Mas o dialetal talvez seja apenas incidental à poesia de Ederval Fernandes. O que a rege é principalmente o minimalismo que guia muito da nossa poesia contemporânea a partir dos trabalhos de João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, assim como na influência do norte-americano Robert Creeley entre nós na década de 1990.



Para a orelha para seu segundo livro, Novas propostas de emprego para Ederval Fernandes (Salvador: Paralelo 13S, 2018), eu tentaria exprimir isso da seguinte forma, dizendo que o poema:

"concentra em si o movimento interessante na poesia de Ederval Fernandes entre uma textualidade centrípeta e centrífuga. Explico-me: se em grande parte da poesia lírica acredita-se que o movimento da voz é sempre o pessoal que se expande para o público, do centro do eu para as margens da comunidade, aqui é o público que se concentra em pessoal. O comum que retorna ao seio individual do poeta. O externo que se internaliza para novamente externalizar-se. É poesia conceitual, que tem sua raiz nos desvios contextuais dos textos de um poeta como Oswald de Andrade, ao mesmo tempo que honra a atenção ao particular. Conceitual e dialetal. Ideia e carne. Lírico e político. Outro lado desta moeda encontra-se em [poema que dá título ao título ao livro] 'Novas ofertas de emprego para Ederval Fernandes', formado pela justaposição e colagem de trechos extraídos de um caderno de classificados. Os usos do corpo no corpo político. Estes dois textos são como as faces da mesma moeda. Além das moedas que nos compram e vendem, nas várias imagens de caráter econômico que perpassam o livro. Se vemos neste livro o minimalismo  que caracterizou uma porção da boa poesia brasileira a partir do final da década de 1990, em especial sob o influxo de João Cabral de Melo Neto e Robert Creeley, o que diferencia o trabalho de Ederval Fernandes está na subordinação do imagético ao sonoro, ligando seu trabalho ao de mestres vivos como Augusto de Campos e Ricardo Aleixo. É o minimalismo de uma voz que diz e mostra o mínimo múltiplo comum das experiências, muitas vezes traumáticas, do nosso próprio corpo ao contato de outro corpo, e em negociação com todos os corpos da comunidade. Os vivos. Os mortos. As vozes deles todos."

– Ricardo Domeneck, Texto de orelha para a primeira edição de Novas propostas de emprego para Ederval Fernandes (Salvador: Paralelo 13S, 2018).

§

Novas ofertas de emprego para Ederval Fernandes

Precisa-se de trolha com experiência
para França.
Pintor à pistola em Viana
do Castelo.
Ajudante familiar
em regime interno
na zona das estrelas, em Lisboa.
Gestor de Stocks; Business
Analyst; Comprador.
Pasteleiro e ajudante
de pasteleiro – URGENTE! –
em Ponte de Lima.
Procura-se ajudante familiar
cuja carta de condução
leve-a até Bruxelas.
Externa, de segunda à sexta,
das 9:30 às 20:00, Carnaxide.
Care Assistant (UK).
Precisa-se de serralheiro.
Administrador Share Point.
Procura-se advogado
para o Timor Leste. Account
Manager.
Técnico de controlo de qualidade
de indústria de detergência.
Precisa-se de cabeleireiro
em Paços de Ferreira.
Account New Business, LX;
Stylist Assistant;
Pai Natal (em São João
da Madeira).
Professores de Português em Oeiras.


É difícil saber o que leva alguns poetas a serem primordialmente imagéticos, outros a terem ouvido atento aos aspectos sonoros. A preocupação de Ederval Fernandes com a importância da oralidade em nossa cultura talvez fique clara ainda mais em seu trabalho crítico, como no importante ciclo de ensaios sobre o rap brasileiro que preparou para a revista Modo de Usar & Co., com ensaios sobre Nega Gizza, Sabotage, Mano Brown e outros.

Em sua própria poesia, isso se demonstra em textos diversos, como "Magia" e "A voz":

Magia
Ederval Fernandes

TEU poder
vem do som

SIETE actos
exactos

JUEGO de los
signos altos

AND it comes
from your eyes

BULLET sound e mais
o teu chamado

MA non
puedo explicar
o que já foi explicado

MÁS
eres blanco impuro
umbigo obscuro

ERES um feixe
um furo
a fish
on a clear water
sem muro

TEU poder
vem do sol
do som

LIKE desert
profundo

E me saravá
dos pecados
DEL mondo

§


A voz
Ederval Fernandes

verde, ser
de
sopro.
vento lento,
mundo
oco.
se tudo É
como É?
o vento, o sopro
o tempo morto
e o engodo...

águia voa febril
no branco, comigo.
à sorte,
amigo. a morte
é o lance tardio.

o jogo É
assim.
se isto É
tudo (o fim),

meu espelho
conservo
convexo neste
verso.

dentro,
dentro
do mistério,
escrevo.
escravo,
escavo o minério:

gravo a voz
em vós.

Feira de Santana, Bahia, cidade natal de Ederval Fernandes, aí nascido em 1985.

Certamente, o que aprecio no minimalismo de Ederval Fernandes – como em outro baiano de sua geração, Rodrigo Lobo Damasceno – é que ele jamais se torna desculpa para esterilidade emocional. É a melhor lição que deveríamos ter tomado de Robert Creeley naqueles idos de transição dos milênios, lição que já aparecia em poemas de Ferreira Gullar, Mário Chamie, Augusto de Campos, Adão Ventura e Paulo Colina.


No bolso as moedas
Ederval Fernandes

perder o amor
não é perder o lápis
o relógio
de preguiça perder o poema
ou o comboio o elétrico 15E
sentido algés
por 6 minutos
a mais na cama
nas contas a serem
pagas nas culpas
nunca suturadas
perder o calor
do café
o amor perdê-lo não é
como precisar ir
mas ficar
andar e não correr
atrás disso
que fácil e lento passa
em frente à porta (ouvir
Dylan para entender
o uso deste sample)
perdê-lo o amor não é
como ir à praia sem querer
ir embora
e descobrir depois:
o melhor era ficar
perdê-lo o amor
é impossível
no bolso as moedas
se escondem
mas não
desaparecem


Por estes motivos, sigo querendo acompanhar o trabalho de Ederval Fernandes, hoje amigo e colega em correspondência constante sobre poesia, a nossa e a de outros. E é por isso que encerro com este poema meu, incluído na edição especial e limitada de Doze cartas, lançada juntamente com meu último livro, Odes a Maximin (Rio de Janeiro: Garupa, 2018).


Texto em que o poeta medita sobre fronteiras como cercas e pontes ao lado de Ederval Fernandes em Lisboa
Ricardo Domeneck

Na manhã em que acordei de um pesadelo
comprido e detalhado, hollywoodiano,
de grande produção e parco elenco,
no qual meus irmãos tentavam roubar
a herança que não tenho
e enquanto seguia entretido
com o apocalipse que denuncia
em mim o terror velho
de me saber menos
Jacó do que Esaú,
sob esse teto em Portugal
beberico café importado do Brasil.
A carne, moída
de um sono suado
e sem reabastecimentos.

Pela janela, vê-se a Torre
de Belém e não a de Babel,
uma espécie de árvore
de natal sólida, permanente,
ou versão da Árvore do Bem
e do Mal, suas mais de cinquenta
cruzes dela pendem
como se pejada de frutos,
e ela finca suas raízes
nas águas do Tejo.
Em algum ponto, sua foz
desagua no Atlântico,
onde nossa desgraça desemboca.

Na cafeteria, olho o rosto mestiço
de Ederval Fernandes, vejo
minha mão mestiça
tomar a xícara donde o vapor
sobe dessa bebida inexistente
nestas plagas
antes do descobrimento da catástrofe,
aquela que no entanto fez possíveis
o rosto mestiço de Ederval Fernandes
e as mesmas mãos mestiças minhas.

Cá estamos, baiano e paulista,
enquanto nossos compatriotas
digladiam-se
pelos espólios dos portugueses
do outro lado do Atlântico,
baiano também estrangeiro para o paulista,
paulista também estrangeiro para o baiano,
ambos estrangeiros para os portugueses
que nos cercam, e bebemos todos
nossos cafés, calados.

Enquanto isso, as águas do Tejo e do Atlântico
deslizam indiferentes às dores e às delícias
de sermos portugueses, baianos ou paulistas.

Não há volta no tempo, não há conserto,
mas esperamos, balbuciando
nessa língua comum, familiar e estrangeira,
que se torne viável
algum concerto. Alguma concórdia.


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