Uma das figuras mais importantes da escrita queer nacional, a poeta e dramaturga Renata Pallottini completou 90 anos esta semana. Autora de peças como O crime da cabra (1965) e Pedro Pedreiro (1967) – que contou com canções de Chico Buarque de Holanda, a paulistana é também autora de belos poemas da lírica amorosa brasileira do pós-guerra.
POEMAS DE RENATA PALLOTTINI
NOITE AFORA
A quem devo dizer que em tua carne
se sobreleva o tempo e o duradouro,
mancha de óleo no azul, alaga e intensifica
o contratempo a que chamei amor?
A quem devo dizer dos meus perigos
quando, o corcel furioso, olhei ao longe
e não vi mais limites que o oceano
nem mais convites que o das ondas frias?
Como antepor o corte nas montanhas
— Liberdade — ao dever que a si mesma impõe a terra
de estender-se conforme o espaço havido?
Malícia do destino, ardil composto outrora...
Arde a grama da noite em que te vais embora,
e essa chama caminha, essa chama, essas vinhas,
essas uvas, cortadas noite afora.
*
PRIMEIRO FOI A NOITE
"No princípio criou Deus o céu e a terra.”
Gênesis, 1:1
Primeiro foi a noite. E a noite feita,
desta engendrou-se a luz, julgada boa.
Depois, fez-se o agudo desespero do céu.
E a terra. E as águas separadas.
E um mar se fez, da lúcida colheita
das águas inferiores. A coroa
tornou-se firmamento. "Haja luzeiros" —
ordenou-se às estrelas debulhadas.
Houve flores estáticas e flores
que procuravam flores; e houve a fome
de carne e amor e dessa fome as dores
e das dores o Homem. Deste, esquiva,
toda fome, sua fêmea, e no seu sexo,
mais uma vez a noite primitiva.
*
VESTIBULAR
De novo acomodo o corpo
(que de novo me incomoda)
na carteira de pau áspero;
de novo tomo a caneta.
De novo passo entre as filas
ponho a mão no ombro trêmulo
de alguma estudante tímida
(e agora sou professora).
De novo é aquela angústia,
não saber o que se sabe
ser de novo examinada
e de novo posta à prova.
De novo adivinho o amor,
olho-me e olho; já fui
o que hoje sou. Já sofri
o que sofro. E vem de novo
esse temor, como novo.
Ensino, ou sou ensinada?
Estou acima, ou me afogo?
De novo perco o respiro
ou já domino a questão?
De novo sofro e transpiro
porque hoje sou a mestra
tão escassa como sempre
e como sempre carente.
Olho-me quieta de novo
e vejo toda essa gente.
Passas de novo a meu lado
e me pões a mão no ombro
e me marcas com teu sopro
e me deixas tua sombra.
*
OLHA, QUE NO VERÃO
Olha, que no verão a lua nasce
vermelha dentro d'água
nesta praia.
Acendamos o fogo para vê-la
e para ver-nos. Já é quase noite
o mar só faz de conta com sua água múltipla
breve virá o rastro de ouro e sangue.
A lua sempre comoveu mulheres
seus ciclos, suas datas,
seus períodos
a lua sempre motivou os gatos
maré de bons resquícios
sexo e fluido;
gemendo nos amamos
e gemendo explodimos nos sismos do parto.
As mulheres são fossos onde a lua dorme
e desperta furiosa
a cada quatro casas.
Nada mais do que sou
me basta
neste instante;
o que fui já passou há muito tempo;
não devemos voltar nem pra recolher os destroços
fossem de ouro os restos
não voltemos;
deixa na praia os pedaços de troncos
ou joga-os na fogueira
de areia e ossos.
Pode tardar a lua; a hora não importa
à senhora dos sulcos e das lavras do mar.
Ela tem o seu tempo, o tempo das crateras
o lívido da pele do seu centro
o ouro do seu carmim
no nascimento.
Pode tardar a lua
Vem
O fogo
é dentro
*
SALVO
Salvo
a falácia da queda e o seu após
nada tenho a constatar
do que caiu sobre nós.
Digo-te qual suponho:
o que passou, passou.
Não ponho sobre ti o peso do meu sonho,
nem do que velo, nem do que findou.
Salvo a falácia do erro
tudo o mais fui eu:
quem nasceu e se pôs de pé,
quem cresceu e não cresceu,
quem humilhou e perdoou,
quem finalmente morreu
e hoje chora ao pé da cova
pelo dorido do que aconteceu.
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