Celebramos os 80 anos de um grande poeta, Leonardo Fróes, que é também um homem ímpar. Celebro além disso o amigo querido, & o autor dos versos que muito pessoalmente vêm vivos na minha estante, na minha mente & na minha vida desde o fim da minha adolescência, & que terão soprado um pouco de sua ciência na minha própria escrita.
Vida longa ao mestre. Viva Leonardo.
PETITERRA
Dirceu Villa
a Leonardo Fróes
se propomos a subida, deus era uma flor então,
ou o animal desconhecido : árvores falam, não
em segredo, mas aos seus olhos, com raízes.
alcançar o topo para a conversa fatal? ao invés,
o silêncio nos envolve, e a água para a descida,
mãe dos nossos poros, frescor de filosofia em
jorros, corredeiras, discreto veio de vida. o sim
às sombras, nas veias o vendaval e a neblina. o
homem e a casa acontecem, sólidos sob silvos de
floresta; a rainha de raios obscuros se ergue uma
vez mais das águas, dá à terra e ao ar seu conselho
de som, e incha o jambo, a beterraba, de vermelho.
Reuben
A poesia dos livros, a poesia de linguagem, é apenas um convite. Hoje todos já ouviram a história do poeta que deixou a vida que levava para buscar o silêncio que lhe era próprio. Houve um tempo, algumas vidas atrás, quando fui tocado de febre por ter lido o Sibilitz, do poeta Leonardo Fróes. Hoje entendo que a emoção entre nós dois, o livro e eu, deu-se por uma grande solidariedade — o livro sabia (eu ainda não) que ainda iria precisar queimar em fogo alto para merecer a mim mesmo. Um dia, munido de ingenuidade, entusiasmo e lirismo, ao avistar o poeta, caminhando sobre as pedras lisas da cidade de Tiradentes, sapequei-lhe um vigoroso abraço. Eis tudo. Longevidade e saúde são sinais de inteireza. Pode ser um mito distante ou uma realidade encarnada. Só não precisa ser a exceção.
*
A POESIA E A MATANÇA DO AEDES AEGYPT
Rodrigo Lobo Damasceno
Escrevo muito ao fim do dia,
depois da tempestade
que derruba
a energia
elétrica
e liberta
os mais jovens exemplares do Aedes Aegypti
na cidade – as cores todas se apagam
em São Paulo.
Os mosquitos zebrados
zumbem no meu ouvido – fazem zum zum
como as britadeiras que abriram o dia,
de manhã cedinho. A cada poema original
que escrevo, desfiro
uma série
de tapas na minha própria
orelha. Fico com sangue
nos dedos. Vladimir Nabokov, pelo que sei,
caçava borboletas. Nenhuma visita
em vista. Uma pessoa passa
lá embaixo, na rua, correndo da chuva
(que recomeça) com seu cão de raça.
Não tenho cachorro porque vivo num apartamento.
Eu acho isso muito chato porque fico tenso.
Às vezes penso que amanhã vou acordar com dengue.
*
li um poema de po chü-i
na língua do leonardo fróes
é um poema que eu adoro
“maluco cantando nas montanhas”
é o nome do poema
baseado em po chü-i
ele escreveu isso
entre parêntesis
no começo do poema
no final do poema
tem uma nota de rodapé
com uma indicação de um livro
em inglês one hundred and seventy
chinese poems org. por arthur waley
esse sinólogo inglês descobri depois
nascido no séc. xix tem várias
publicações interessantes
achei na internet o epub do livro
com a versão do poema em inglês
“madly singing in the mountains”
ainda não procurei em chinês
vão fazer uma homenagem
pro leonardo fróes agora em fevereiro
é seu aniversário
pediram pra enviarmos alguma coisa
até o dia quinze
resolvi fazer uma versão da versão
da versão da versão (imagino)
desse poema de que gosto
porque gosto do leonardo fróes
dos poemas do leonardo fróes
e desse poema em especial
pensei que ele poderia ficar feliz
com essa homenagem
homenagem feita em casa
e o po chü-i também
:
TEM SEMPRE ALGUÉM MAIS MALUCO AINDA
Érica Zíngano
quando nós pensamos que já vimos
de tudo nessa vida
tem sempre alguém mais maluco ainda
diante de uma mão cortando o tempo
contando os grãos de arroz
num formato de montanha crescendo
crescendo sobre a mesa poderia ainda
a poesia ser considerada uma fraqueza?
por mais lírico que tudo isso seja
mãos montanhas poesia — nosso ponto
fraco — sejamos francos: eram mais de
mil espectadores online assistindo
acompanhando a montanha crescer
crescer em movimento ascensional
até desaparecer a unidade menor
se tornando uma unidade maior
uma pequena pequena grande
montanha branca de arroz
de grãos de arroz empilhados
delicadamente um sobre o outro
o preço do arroz aumentou mais de
60% durante a pandemia
quem vai querer comprar?
quem vai poder?
eu quase nunca penso na paciência
mas tenho agora algumas moedas de troca
nas mãos essa montanha solitária como modelo
rodeada de milhares de testemunhas online
vigilantes quem vai?
a alegria é bem mais imprevisível
é tudo tão explosivo é bom poder encontrar
um cachorro vivo abanando o rabo
*
DENTRO DE UMA CASA EM CHAMAS: UM PERCURSO
João Gabriel Madeira Pontes
a Leornardo Fróes
a) “If prose is a house, poetry is a man on fire
running quite fast through it.” (Carson)
Dentro de uma casa em chamas, hipóteses
Dentro de uma casa em chamas, hereges
herdeiros, heróis – mas, sobretudo, hereges
Dentro de uma casa em chamas, linhas
mortas, línguas domesticadas pelo tempo
livros, tempos mortos, listas incompletas
b) “e eu mesmo sendo dissolvido também
nessa casa alagada, não me acho
enquanto solidez: vou flutuando
como onda inconstante na correnteza.” (Fróes)
Dentro de uma casa em chamas, bebe-se
à casa em chamas, às suas beiras, aos seus
becos, bebe-se a quem pôs fogo na casa
aos seus berros, bebe-se a quem ficou
Dentro de uma casa em chamas, bebemos
a casa, os seus bichos, as suas bifurcações
estes bocejos, estes boatos, aquela baía
Dentro de uma casa em chamas, bebemos
quem ficou, bebemos quem berrou primeiro
Dentro de uma casa em chamas, cevados
pelo silêncio, torcemos por algum milagre
Do lado de fora, o boi dá sentido à cerca
o céu legitima as nossas poucas certezas
mas, quando cresce a tarde, o céu dissolve
toda certeza, e o boi, enfim, rompe a cerca
c) “Water and fire succeed
The town, the pasture and the weed.” (Eliot)
Dentro de uma casa em chamas, não há
metrópole, norma, nome ou rua navegável
Suas janelas, suas portas e paredes nuas
negociam a chegada de novos janeiros
Insinua-se a casa em chamas, viva ainda
embora disposta a nos ensinar a morrer
(Pastos sem norte, noite sem eventos)
Dentro de uma casa em chamas, ouço
passos no corredor, oráculos, orgasmos
Dentro de uma casa em chamas, entre
ouriços-cacheiros e obituários, ouço-lhe
dizer que prefere um deus sem opiniões
um deus de ombros baixos, um deus-boi
de “olhar estúpido”, que possa ruminar
o orgulho: origem e ocaso de toda cidade
d) “Some say the world will end in fire,
Some say in ice.” (Frost)
Dentro de uma casa em chamas, fogo
mas também fome e fé: fome de figo
e febre para acreditar que não existe
no mundo inteiro fogo capaz de engolir
a figueira do quintal, a figueira que está
de pé desde antes do teu primeiro feito
da tua primeira febre, talvez desde antes
da descoberta do fogo, da fé, da fome
a figueira que dá figo com gosto de brasa
Dentro de uma casa em chamas, neve
[pelo chão
o vento invade as frestas
que nem a mata
invade a vista
e a ideia de deus suprime
o tempo descambado
noutras contemplações
(as pulgas mordem entre os pelos
e as patas se confundem
entre coceira e passo
donde a tenebra espessa
apressa o dia
que não vemos)
daí que a linha reta seja sempre
falsa medida
onde curar feridas e o sol
não nos contempla mais do que outra estrela
qualquer no breu das eras
estamos nós na escuridão
como um reflexo fraco
do cristalino opaco
na meia-noite
(mutucas comem carne
e traças pousam no papel
a luz é fraca e a cidade
estalará por fora
feito lonjura irremediável
por dentro feito uma fuga
no peito do concreto)
anote-se a deriva de um ruído
que da ruína dele nascerá
— feito berne na nuca feito
o nunca do tempo inventado
feito afeto invertido
a marcação do olvido numa bênção
que pulsa e estala e sulca a nossa pele
(batistérios do amor incógnito
ou salmodia das ranhuras
se caminhamos dispersivos
na bruma até brotar um olho-d’água)
O INCONTROLÁVEL CORAÇÃO DE LEONARDO FRÓES
Leonardo Marona
estou cansado e forte e penso no meu xará
com alma confuciana e canelas esdrúxulas,
um samurai, inclusive, com olhos puxados
e um milhão de anos na carcaça de um pã
que nunca, em tempo algum, pude encontrar,
enquanto anos a fio sonhei com a ideia
de ter qualquer espécie de sábio guru
sem breguice e que pudesse me dizer
leonardo faça isso, leonardo vá por aqui,
e que sobe em árvores crespas e explica
cada órgão de cada filho verde de deus
como, enfim, o sonho de uma criança
também de olhos puxados e aquariano,
também uma tentativa, com mais medo,
de entender maneira de frear o que é ruim
e amar os mais novos conforme a tartaruga
pode amar suas centenas de ovos, um a um,
e enfrentar a maior travessia da sua vida,
rumo a destino incerto, sinuoso desfecho,
um animal antigo que ama o suficiente
para fazer o que não é possível e por isso
completa a jornada como um pai, um filho,
como um ciclo vivo de carne e muito osso,
mandala refletida em dentes e compaixão,
um que sabe que nos sonhos não se dorme,
que o mal acontece e todos podemos ver,
mas dentro do órgão de cada fruta ele vem,
inquieto, uma criança de um milhão de anos,
com quem se aprender que quase sempre
a estrondosa derrota é verde como o perdão.
*
Frederico Klumb
para Leonardo Froés
Bastaria dizer que há no mundo
uma abelha chamada carpinteira azul.
Bastaria dizer seu nome vulgar –
ao alcance da ciência das mãos.
Dizer que ao olhar o maciço
de pedras naquela manhã
de janeiro, as nuvens cobriam
as copas das árvores
mais altas, e desenhavam assim
um cão gigante no céu.
Bastaria falar, talvez,
os nomes de tudo o que a vista
alcança, e encontrar neles
uma justificação do homem.
Mas o homem da montanha
procura a justificação
de Deus. Os sentimentos
atômicos, a partícula do vento,
da fala nas bocas humanas,
dos cascos dos burrinhos
subindo a ravina. “O passado –
que não existe – é talvez
minha única invenção gloriosa”.
Baudelaire dizia que os chineses
vêem as horas nos olhos dos gatos
E o homem da montanha,
nos olhos de um cão danado?
No corpo de um sapo achatado
sob o pneu do carro?
Esperamos sempre. Uma hora,
uma carta. Mas é quando não espero
que descubro isso que chamam
de alma, e posso oferecer
a alguém uma coisa.
Descobri a poesia do Leonardo Fróes por acaso, em uma postagem da Modo de Usar & Co. que apresentava brevemente a biografia do poeta seguida por uma seleção de poemas. Lembro até hoje do efeito que "Metafísica e biscoito" teve em mim. A sucessão de imagens insones, no ritmo angustiante de um eu consciente do espaço que o cerca, cortada pelo simples ato de comer um biscoito, beber um copo de leite e fumar, me acompanha desde a primeira leitura. Alguns poemas retornam na mente sem que haja esforço de memória, e esse é um deles. Muito do que Fróes desenvolve em sua poética está contido nesse jogo entre abstrato – às vezes surreal – e cotidiano. Gosto desse aspecto porque parece inaugurar um mundo, ou uma forma de ver as coisas, sensível ao imaginar possibilidades a partir do que é estabelecido. O eu nos poemas de Fróes está em sincronia perfeita com o natural, mas também entende que há uma atmosfera desconhecida presente em tudo o que vê. A trilha que se abre nos poemas – pra utilizar outra imagem importantíssima em sua poética – parece o esforço que faz em nos mostrar como percebe esse desconhecido. Esforço que reverbera, certamente, entre a melhor poesia escrita neste país.
nos primeiros lugares, não confundir galinhas com lagartas
deixar as baleias cruzarem os oceanos bem livres até
chegarem à nossa mesa
posta
às nossas xícaras
onde
se afogam
só assim se chega
aos segundos lugares
de onde a vista dá para um anu branco e nuvens carregadas ao fundo
aquele acaso em que o topete de ontem se lança
até alcançar sobrevida sem asas
no cinza de hoje
felizmente venta
e se chega aos terceiros lugares
agora sim podemos
olhar nossa perna direita
e ver a perna manchada
a perna de veias saltadas bambas
cicatrizes de moto contínuo
muitas picadas
contra o mato alto crescendo
nos quartos lugares é onde infinitamente se pensa
habitar uma casa é desalojar aranhas
a roupa é a casa do corpo
mancha é maquiagem do ido
casca é casa sapato planta
e lugares
infinitam
A FLOR NÃO SABE SE CONTER
Fabrício Corsaletti
para Leonardo Fróes
nasci numa terça de Carnaval
e o mundo como sempre estava em guerra
um dia juntei minhas tralhas
e fui conhecer as montanhas
que via da janela do carro
amei a poesia chinesa
sou amigo de Fagundes Varella
pertenço à Escola dos Poetas Andarilhos
depois que aprendi a usar a enxada
minhas frases ficaram mais simples
acredito que é possível rir um pouco
até mesmo das histórias infernais
FÔLEGO
Flávio Morgado
aos oitentas anos do poeta Leonardo Fróes
oitenta anos inflam
o pulmão do animal que observo;
a pedagogia das descidas
educa as pernas e o
animal ofega enquanto narra.
sísifo que aposta no delírio
diante da
queda
e nos entrega
a propriedade afetiva das coisas:
o coração das bananas
o seio das beterrabas
o caqui eleito
e formas
que se endireitam no ar
formigas escalam a leitura,
(Lawrence Ferlinghetti à luz de velas
traduz a utopia da renúncia
e um neto dá nome às pedras)
- entre figueiras,
o fôlego do poema
traga
um ato de concentração.
Traduzir um grande tradutor
Conheci Leonardo Fróes em 2017. Ele foi convidado para um festival cultural em Aldeburgh, na Inglaterra, e como sua obra ainda não havia sido traduzida para o inglês, ele precisava de um tradutor. Como já havia trabalhado na tradução de alguns poemas de Thiago Ponce de Moraes no ano anterior, foi o Thiago mesmo quem nos colocou em contato.
Quando se trabalha com uma tradução, há um momento de revelação, no qual você apresenta o texto em outra língua ao seu próprio autor. Dois chavões da tradução vêm à tona nesse instante: de um lado, o clichê inglês, lost in translation; de outro, o provérbio italiano, Traduttore, traditore. De fato, não existe tradução sem perdas e sem “traições”. Mas quando se trata de uma língua como a inglesa, que é razoavelmente conhecida para muitos, sempre receio que essas perdas inevitáveis sejam percebidas como traições imperdoáveis. E quando se trata de um poeta que também é um grande tradutor do inglês, como Leonardo, esse receio aumenta um tanto mais. Mas, ao longo do processo de tradução, senti-me tão à vontade no diálogo com o Leonardo, que todo e qualquer receio se desfez: Leonardo não é só um grande tradutor do inglês, ele também é uma das pessoas mais generosas que já conheci.
Por duas ocasiões, tive o prazer de visitar Leonardo, sua esposa Regina e família no sítio que fica na região serrana do Rio de Janeiro — um refúgio que cultivam desde os anos 1970, quando decidiram fugir do caos urbano. Foi lá, naquele lugar, que a minha experiência com a sua poesia adquiriu ainda mais profundidade. Ali revisamos algumas das traduções que fiz e fizemos também uma entrevista sobre a sua trajetória. Lembro-me que foi em meio a essa entrevista que ele, de repente, fez um gesto para uma das árvores e disse:
Eu tenho um poema, talvez seja dos mais conhecidos, que se chama O apanhador no campo e descreve uma cena acontecida aqui, a poucos metros, aliás, de onde estamos, naquele pé de caqui – que agora está decadente, mas isso há alguns anos.
Esse grande poema, cheio de felicidade e amor, descreve um caquizeiro também na sua plenitude. Na mesma conversa, Leonardo mencionou sua primeira roça de milho que deu origem a outro de seus poemas, Mulheres de milho. Como o caquizeiro que vai cumprindo seu turno, aquela roça também se cumpriu. O poeta observa as transformações da natureza são observadas pelo poeta no sítio todo: outrora um campo de capim, hoje com suas árvores decadentes que vêm sendo substituídas por outras, novas. É dali, é daquela natureza que o envolve, que Leonardo nos dita os seus poemas, vem da natureza sua linguagem própria: fugacíssima, em transformação constante. Toda essa dinâmica da vida — diga-se: da natureza — nos é traduzida por Leonardo em algo que, talvez, seja possível compreender: a poesia. É claro que, se por um lado, toda essa dicção tão própria não torna mais fácil o exercício da tradução de seus poemas para outras línguas, por outro, é bem verdade que o torna, sim, muito mais rico.
A celebração dos 80 anos de um poeta como Leonardo, em um momento em que temos sido levados a olhar com mais cuidado para tudo aquilo que diz respeito à natureza, é mesmo motivo de grande alegria. O que seus poemas nos transmitem é algo como uma escuta fina, uma visão acurada, um estado de atenção que se cultiva, também ali, na faina diária com a terra. Algo que evidentemente nos mostra como a poesia pode expandir a nossa noção da vida/natureza, mas, sobretudo, como essa vida/natureza pode também expandir a nossa noção de poesia.
The Observer Observed
When I lose myself in thought,
because I find, in the animal
I am watching intently, a more interesting
object of study, than me and my frailties
or my immoderate joys;
and leaving aside, in the process,
any and all vestige of who I am,
memories, duties or dates
or pains that still hurt;
when, stiff, still and alert,
so as not to frighten it,
I confuse myself with the animal,
already unsure which one of us
belongs to my consciousness of myself—
—something greater establishes itself
in this lack of distinction between us:
the glory, the beauty, the relief,
matter cohering impersonally, eternity.
LEONARDO FRÓES
Tradução ROB PACKER
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