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terça-feira, 12 de abril de 2011

Alguns poemas memoráveis da última década: "Limite", de Juliana Krapp

Sigo aqui com minha série de artigos sobre alguns poemas publicados na década passada, aqueles que me pareceram mais memoráveis dentre os que tive a sorte e alegria de ler. Após escrever sobre os poemas "sereia a sério", de Angélica Freitas (Pelotas, 1973), e "Miscasting", de Hilda Machado (1952 - 2007), dedico a postagem de hoje ao poema "Limite", de Juliana Krapp (Rio de Janeiro, 1980), seguido de alguns outros de sua autoria.


Alguns poemas memoráveis da última década: "Limite", de Juliana Krapp
ou Fenomenologia das transações entre indivíduo e mundo através da pele e língua


Dentre os poetas surgidos na década passada, a carioca Juliana Krapp sem dúvida produziu alguns dos textos que mais permaneceram em minha memória, gerando prazer e tensões. O que mais se pode pedir de um contemporâneo? Seus poemas, além do simples contentamento feliz da beleza que possuem, parecem-me textos tesos e cheios de implicações frutíferas. Vale dizer também que, especialmente dentre nós poetas sempre tão apressados em lançar ao mundo nossas palavras, a discrição da poeta carioca tem sido algo com que aprender. Nascida em 1980, Juliana Krapp publicou até o momento pouco mais de uma dezena de poemas, espalhados em revistas como Inimigo Rumor (a primeira a presentear-nos com eles) e Poesia Sempre. Em 2007, tivemos o prazer de contar com alguns inéditos seus no primeiro número impresso da Modo de Usar & Co. e, em 2008, alguns destes poemas foram traduzidos para o castelhano por Cristian De Nápoli e publicados no dossiê de poesia contemporânea brasileira do importante Diário de Poesía, editado em Buenos Aires e Rosário, Argentina. Em 2009, muitos deles foram mais uma vez traduzidos ao castelhano, desta vez por Teresa Arijón, e incluídos na antologia espanhola Otra línea de fuego. Quince poetas brasileñas ultracontemporáneas, com organização de Heloísa Buarque de Hollanda, reunindo quatorze autoras produzindo hoje no País, além da decisão, que a mim parece estranhíssima ainda que previsível, de incluir na antologia textos de Ana Cristina Cesar.

No Brasil, seu trabalho ainda não foi reunido em livro, para ansiedade de alguns de seus leitores, dos quais estou certo de não ser o único. Imagino ser uma decisão por sua já mencionada discrição, sei que há editores entre seus leitores, também de olhos arregalados como nós. Talvez seja o respeito a algum prazo ditado por sua integridade artística, falta de pressa, pressa, afinal de contas, para chegar aonde? Enquanto esperamos que seu livro de estreia saia, contamos na Rede com alguns de seus textos bonitos, dentre eles este com o qual gostaria de começar este artigo dedicado a seu trabalho.

O poema foi publicado pela primeira vez em 2006, texto com que Carlito Azevedo abriu a seção dedicada a Juliana Krapp em seu "Dossiê: 15 Novos Poetas", do número 18 da revista Inimigo Rumor.


Limite
Juliana Krapp

Sebe é um acúmulo de varas entretecidas
cerceando
por vezes sim por vezes não

eu sei
do esforço para persuadir
naturezas terríveis

simultaneamente
à graça dos perímetros
que permanecem estanques

(a dor de coabitar
tanto as frinchas quanto os
confinamentos)

Quando rarefeitos, os movimentos
aguardam mais do que a conclusão, preferem
o desdém e o resguardo
ou mesmo esse estalido
(um arquejo)
embalado
pelo embaraço hipnótico
das pequenas sombras

Somente as ventanias são de fato enamoradas
e apenas nelas alijam-se
as imundícias mais profundas

como somente os ramos
estraçalham-se e engravidam-se
num único carretel de músculos em escombros

(um aparelho de tensões
alimentado pelo ritmo
dos sumidouros)




Não é trabalho de fácil entrega, aproximar-se de um texto como este de Juliana Krapp requer toda a atenção est-É-tica que possuímos, não por qualquer hermetismo, mas porque sua poesia parece tão clara naquilo que Jacques Roubaud definiria como o "não-parafraseável". Minha primeira vontade de exegese para um poema como este é simplesmente relê-lo, repeti-lo, reproduzi-lo, uma vez mais e outra, dizer: "caro leitor, a exegese deste poema é o próprio poema". Parece-me bastante preciso em sua textualidade, mas aqui não compete falar tanto em concretude ou materialidade, pois não há qualquer mera teatralização visual da linguagem. O que há é uma clareza textual lúcida em sua opacidade, equilibrada entre transparência e não-transparência do signo - não creio que encontraria descrição mais concisa para o que tento chamar aqui de textualidade.

Não temos como saber em que momento Juliana Krapp escolheu o título do poema: se com ele começou, ou se ele pareceu-lhe o mais apropriado ao terminar sua escrita. Não importa muito: como leitores, ao iniciarmos nossa experiência do poema, é como se o texto a seguir fosse uma espécie de desdobramento semântico do seu título, limite, que passa a ser muito menos rótulo ou bula que embrião. Após terminar a leitura do poema, não se consegue imaginá-lo com outro título, uma instância de sua precisão.

A poeta passa então a uma definição própria de "sebe". Em alguns dicionários nos quais busquei a palavra, encontrei entradas muito parecidas: "1. Tapume vegetal para impedir a entrada em terras cultivadas. 2. Tabique; taipa. 3. Tapume de varas delgadas com que se cerca o tabuleiro do carro e se ampara a carga". A elas, Juliana Krapp introduz desde o princípio uma incerteza deste cercear, uma indeterminação: "Sebe é um acúmulo de varas entretecidas / cerceando / por vezes sim por vezes não". Alguém com a mentalidade crítico-poética presa no tempo, lá pelos idos de 1922, poderia protestar e dizer: "mas sebe não é o mesmo que cerca? Por que usar então sebe?". Ora, meu caro, a única resposta educada seria: porque não são exatamente a mesma coisa. Trata-se de um detalhe de precisão. Não é o preciosismo que se vê por aí, nem exotismo. É precisão que vê elementos importantes na palavra "sebe", ligados intrinsecamente ao campo semântico do poema: seu entretecer-se e entrelaçar-se são essenciais aqui. Além disso e talvez mais importante, um dos dicionários nos lembra que sebe é uma cerca viva, que pode ser um "renque cerrado de árvores ou arbustos". Esse aspecto é importante para todo o poema, que poderia mostrar-se como uma fenomenologia das transações entre indivíduo e mundo através da pele e através da língua. Um processo de individuação como experiência do limite.

Em seu estudo Eros The Bittersweet (1986), a poeta canadense Anne Carson (n. 1950) descreve como esta experiência do limite é essencial para a compreensão da experiência lírica, ligada a Eros: a experiência do limite que individualiza uma palavra em meio ao fluxo sonoro da fala, que individualiza o ser humano em meio ao contato com os outros, que individualiza, até mesmo, a vogal de sua consoante, naquilo que Carson argumenta ser o gênio da revolução cultural representada pelo alfabeto grego. Limites sonoros e visuais que nos dão as letras do alfabeto, as palavras específicas em uma sentença. Também a nossa pele mostrando-nos onde começamos e nos encerramos, nossa fronteira que é contacto com o mundo. É como se o poema "Limite", de Juliana Krapp, reencenasse este drama da experiência dos limites e fronteiras, e, assim, também do que separa o eu do outro, o que faz de nossa consciência algo a não se esparramar pelo ar do mundo, experiência pessoal contida pela própria pele. O poema de Krapp é, em minha opinião, tanto erotizado quanto angustiante, neste sentido, em suas atas de sedução. Ao escrever "eu sei / do esforço para persuadir / naturezas terríveis", não sabemos se a poeta refere-se à experiência da aprendizagem pessoal ou da sedução do outro. Se a poeta aqui fala de si ou de outrem. Há um fluxo entre concreção e abstração admirável no poema, como na sequência "simultaneamente / à graça dos perímetros / que permanecem estanques", que é então justaposta a "(a dor de coabitar / tanto as frinchas quanto os / confinamentos)". Nada é acidental aqui: a escolha de um advérbio como "simultaneamente" está ligada a toda esta experiência do ser como uma cidade sitiada, de ser, ao mesmo tempo, o que protege e o que constringe. Frinchas para o escape do confinamento e para a própria formação do confinamento, frincha pela qual se escapa, frincha que aperta - na qual se coabita. Aqui, mais uma vez, a precisão, a lucidez da poeta na escolha do prefixo.

A imagem do vento como uma moção erotizada é muito feliz, sendo uma das poucas manifestações do não-estanque no poema, dando-nos o que cobre distâncias, une separações, atravessa limites: "Somente as ventanias são de fato enamoradas", pois realizam o movimento de suprir faltas entre espaços abertos. "Limite" reencena, parece-me, o que Carlos Drummond de Andrade chamou de "a falta que ama".

As justaposições são importantes, pois há um trabalho sintático intrigante no poema. Sem ser exatamente (ou talvez devesse dizer "sem ser exageradamente") paratática, na sintaxe dos textos de Juliana Krapp há um fluxo de interrupções, de silêncios e espaços, sem no entanto destruir a organicidade do texto. São elipses que não rendem desconjuntado o poema, pois há na autora clareza de pensamento e apresentação. O uso da elipse não se faz presente apenas pelo carnaval bobo do antidiscursivo que mal consegue terminar um pensamento.

A sonoridade do texto é também interessante: Juliana Krapp não usa qualquer técnica obviamente cantável - não há rima, não há assonância ou aliteração marcadas. Mas isso não é descuido com este aspecto da composição. O leitor (pelo menos é o meu caso) sente o texto mesmo assim como composição tesa. Isso me intrigou, e, ao pensar sobre este aspecto do poema, pareceu-me como se a poeta praticasse uma espécie de atonalidade em escrita. Como se o equilíbrio e harmonia se dessem justamente pela não-repetição, por uma variegação de sons.

O texto recorre basicamente à metonímia e haveria quase uma desmetaforização se não fosse por um verso como "num único carretel de músculos em escombros", que mesmo assim parece equilibrar-se na corda bamba mas tesa entre metafórico e metonímico. No entanto, nada há de prosaísmo no texto.

Também não são como os "sintagmas que se escandem completos" de Murilo Mendes nas palavras de Haroldo de Campos, mas não apenas pelo uso inteligente que Juliana Krapp faz do enjambement. A surpresa que ela doa ao leitor que segue seu pensamento vem pela clareza, ainda que elíptica, de suas observações, de seu pensamento. Em minha opinião, ainda que se possa reclamar o texto para a estirpe dos poetas que dançam entre pensamentos, os da logopeia, parece-me haver um equilíbrio entre imagem, som e pensamento.

Sua poesia também me parece admirável na maneira como objetividade e subjetividade se entrelaçam. Mas, para comentar isso, gostaria de chamar a atenção do leitor para outro poema de Juliana Krapp, intitulado "Av. Brasil" e publicado originalmente no número 20 da revista Poesia Sempre.


av. brasil

o que se salva aqui são apenas
os elementos construtivos:
condutores singelos
traço um para três
cornija

uma secura de mão doente
essa carne nunca sabe
o que é degradado e o que é
desterro
mas impenitentes as platibandas
arregaçam
o que reluz: intempéries
tomadas de assalto
pela ferocidade branca
de um clique




Em outros poetas dos últimos 25 anos, ligados à busca da objetividade apregoada por ótimos poetas como João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, teríamos uma descrição desapaixonada do ambiente urbano da Avenida Brasil no Rio de Janeiro, feita por um eu escondido. Mas em poemas de Juliana Krapp é difícil falar sobre objetividade ou subjetividade, porque nos poemas dela eles se confundem. Há uma espécie de mundeulinguagem, se me permitem o neologismo para expressar como sinto sua junção expressiva do indivíduo apreendendo a urbe por sua língua. Um poema como "av. brasil" não é mera descrição da paisagem. Ali, a paisagem, a linguagem e a percepção da poeta são uma coisa só. Gosto de observar como seus poemas poderiam dar-nos bons exemplos para a investigação sobre o que acontece entre as palavras, desposando para isso tanto semântica como sintaxe.

Outro poema seu que parte de um topônimo:


ladeira da glória
Juliana Krapp


ele se erige como um pergaminho
em aliciante embaçamento
fazendo supor
que toda água já nasce escaldante
e, ainda assim, vibra,
a marteladas

hoje acordei
embalada por imperativos. mas foi ele quem inventou
esse cansaço labiríntico

e me trouxe aqui, com
a boca inflamada pela pressa
nos dentes, uma certa apreensão
— não por mordidas, mas por hálitos
categóricos

nele a ossatura se escancara a ponto de romper
com um estrondo a própria voz
e seu olhar apenas lembra
dobradiças, rosetas
cremones
e toda a sorte
de ferragens maliciosas

mas
entre nós estariam encerrados os dilemas
e as alíquotas
caso não houvesse
no trajeto do plano-
elevado que leva a essa igreja
imaculada de tão breve (pavimentos tristes,
vidros urgentes)
um esgotamento
ávido por pontas
desenraizado de cálculos
fortuitamente lançado sobre a baía



O vocabulário da poeta é sofisticado e foge com frequência do prosaico, mas nada tem a ver com o decadentismo exotizante típico de fim-de-século de certos poetas que se entregam a preciosismos ou uma poética randômica, misturando polissílabos exóticos caçados ao dicionário para soarem "poéticos", ou para insistir em exilar as funções poética e referencial da linguagem, como se estas fossem estanques e inconciliáveis. A diferença aqui reside entre o preciso e o precioso. O vocabulário de Juliana Krapp parece-me ditado simplesmente pela precisão de sua observação. Mimetiza e transfigura, como a poesia fez desde Safo, sem temer a realidade ou criar uma oposição entre esta e sua linguagem. Mas a precisão de linguagem, quando falamos sobre o trabalho poético, obviamente não é a que esperamos de um manual de instruções. Na poesia, a precisão da linguagem é algo inquinada.

Sim, sua poesia me parece sofisticada, mas não se trata de qualquer linguagem hermética ou aristocrática. Sua poesia requer atenção, sua leveza é tesa, densa. A alguns poderá parecer tentador ligá-la à poética pura dos neosimbolistas brasileiros. Se este for o caso, sua linguagem a conecta com poetas como Henriqueta Lisboa, mas não a mística dos livros da década de 40 e sim a autora que se agitava entre símbolo e signo num livro como Além da imagem (1963), ou a Orides Fontela dos eucaliptos "elásticos e elípticos", simbólicos e semióticos.

Em minha leitura muito pessoal da poesia contemporânea, que a alguns parecerá demasiado idiossincrática, sua poesia é uma instância do que venho chamando de "lírica analítica", de um eu extremamente desperto e consciente, com uma linguagem que não confia mais na mera naturalidade da voz própria, mas que se mostra sábia de seus artifícios. Creio reconhecer isso em poetas como Marcos Siscar (n. 1964), em Marília Garcia (n. 1979), em alguns outros.

Sobre o natural, eis o que a poeta pareceria ter a dizer:


in natura
Juliana Krapp


chegou a hora da prestação de contas:
às apalpadelas, de cor, ligeiro
gomo de amianto um tigre
dentro de um quadrado

à discreta contração de lábios não temos
sequer lastro de linguagem sequer
réplica e sua pouca carniça
— ao fundo só o desejo de orquidários
e uma perturbação de pernas

traiçoeira: uma única versão
que não fareje em seu reverso um último
recurso para a assepsia
mortal — rente aos pés a fabriqueta
formula estilhaços de atalhos presa
escandinava os olhos torpes e somente
o veludo cinza adentro do rasgo
do nome — esse




Com Juliana Krapp, aprendo sobre a discrição do que se constrói em silêncio e calma. Sobre como não parece ser saudável querer separar mundo e linguagem dentro de nós mesmos. Autora de poemas memoráveis, é minha sorte e alegria ser seu contemporâneo, como de alguns outros poetas hoje em atividade no país, sobre os quais em breve seguirei escrevendo. Espero que alguns de vocês assim o vejam também.



POEMAS DE JULIANA KRAPP

a estrutura íntima das horas


Acontece apenas no mar
de concreto protendido à beira
da estrada e apenas quando a estrada
tem algo de fogo
ensurdecedor:

um lagarto, osso
de candura, rompe
a respiração da tarde, penetra
em todas as substâncias — as rochosas
e as celestes, os líquidos escuros e
sua pantomima de espelhos

Enquanto tudo ao seu redor é ênfase
(profusão de tecidos
lancinantes),
o seu avesso
é puro vidro
ardoroso: quer partir
entreabrir-se em sulcos
lentos, desdobráveis

Você, ao volante, não percebe
mas isso tudo é como nós dois,
na Cinelândia, às cinco horas
de uma tarde de verão, com uma
caixa de alfajores e vontade de café, quando
há no ar algo de concha,
estiramento, zona cega: a experiência
do precipício


§

enseada

o ipê é como um ferro ele disse
as unhas pensas
no ardume da anunciação

sobre o rochedo
as têmporas afogueadas e o flagrante
da mandíbula irreparável do fim
da tarde (hóstia
em terracota)

nessa praia
as ondas enevoadas arrebentam o branco
........................os barcos
desabotoam a precisão das linhas
............e as ilhotas, desgrenhadas
............atracam visgos de luz

.......aqui, onde

a barbárie já nasce seca
................em seus olhos



§


Pretexto

o olho da rua é seco, sarcástico
do mesmo gênero das abotoaduras
e toucadores

de tudo resta sempre o seu mistério virgem
a beleza de íris os ares encardidos a córnea
tal qual um diadema espavorido
sobre nossas cabeças

então ele cruzou a pista sem qualquer melancolia
e travou o zíper sobre a pele



§


Punção

campanários. isso sim é uma casa
não aqui
onde os objetos sequer conspiram
onde a pele não se reconhece pele
e não se engendra cápsula de outra cápsula
posse de um único mistério
com seu agravo inabalável. uma casa

requer formas como dormideiras
que se recolham à carícia quando todas as carícias
são íntimas é tão surrado reconhecer
nas paredes que a única propriedade possível
é a fuga e mais ainda o sono profundo e
que sobretudo os mais elaborados sinais de chuva
não passam de sentinelas
resfolegando seu passo de partida

esta casa
não é minha: não se alcança daqui o brejo
afetuoso ao fundo de todas as coisas
não se vê o fosso
translúcido extorquindo das frestas
as esquadrias

tampouco há cantigas
emudecedoras
quando as horas se constrangem ao toque
ou ao contato do antebraço
com o repuxo invisível do acrílico

nesta casa
(assim como em todas as outras)
só resiste a ânsia de um veneno
afogado
em seu desleixo por lãs e puxadores
um veneno tão debilitado e circunstante
inabitável
quanto a certeza de que há ainda
no mundo tanto tremor
por tão pouca terra



§


propriedade

como artifícios temos apenas as asperezas
a corpulência cabível em pavios desfigurados
ou os 28 dias necessários
para que se cure
o concreto

carregamos
nas extremidades fissuras
irreparáveis
e, nos olhos,
a cor mirabolante dos abatedouros

mesmo assim

as corredeiras
as sirenes os personagens
estão ao seu dispor

e ainda esse aguaceiro

onde o entreaberto é uma doçura
de tão fundo



§


reta

um carro de praça como uma jaula
água
da qual preciso
para partir. vê-lo — homem
........................embalsamável —
.......encouraçado pelas grades em flor
faro
na alameda escura
a dizer: aqui jaz
um coração abominável um
álibi amantíssimo
para essas dores
do desejo
........................partir
.....exige animais vivos (o sangue
................secreto
.........de uma ave noturna)
enquanto o ar reclama
as singraduras
de uma música
meramente informativa



§


armazéns


seria apenas a ausência impertinente de arredores
ou sua respiração de treva que oscila e foge
por debaixo da porta (a beleza
inteiramente desamparada)? mas este
cais de porto
é, de fato, uma chave.
suas nervuras e estalos
como fábulas
úmidas. (os agentes narrativos são incapazes
de identificar a estiagem
e o sinal dos tempos
nas amuradas). e ainda esta dor
selvagem ancorada às turbinas e granéis
ao maquinário rasgado em itinerários
de vapores e conspirações. a meticulosa
delicadeza da noite entregue
toda ao gesto de içar: originalíssimo
e escravo das circunstâncias.
(neste instante você segura a minha mão
e a põe contra o peito, temendo
a face invisível das embarcações) a água
que cresce como um germe negro ao redor, como
um calafrio inédito um
verbo inédito uma
presença quebradiça.
(mas o que é quebradiço
está morto? ou reverbera apenas
as manchas quentes de sangue no carpete?) você me diz
que sobre toda música incide uma renúncia
e mesmo este apito e enquanto diz
o horizonte reconhecível
assola de frios a linguagem
(é preciso, no entanto, reconhecê-lo em surdina
como se reconhecem nos álcoois
as rajadas de acalanto)



§


poética

o que é ferruginoso nunca será
corrosivo. quantas ideias
podem perturbar
esse lago sem vento? frutas
.............na superfície
em desacato
à delicadeza vamos
embora daqui você disse
....não
ainda há reparos a fazer, ainda
o lobo
que habita o fosso do poema
..................veja:
se contraio os joelhos
contra o coração
crio uma ponte
imprescindível — uma emboscada
para feras de graus variados, por isso
.............insisto
.............o ineditismo só cabe
...................no factual, este alagadiço
ter em casa um corpo
tão sentimental a ruir
.........dificulta amplamente
.....a execução das tarefas
..................respire:
....ar pródigo de terror
.............agora sim
.........vamos
deixar escancarada
.......a cena do crime
— sulco escarlate
...entre as pedrarias



§


fevereiro


Não seria mais possível o requinte do aço
escovado a tristeza mais ordinária a espessura
de um fôlego o atrito
.....¾ borracha irreversível ¾
.....Mas seria possível que
.....tendendo ao imagético manchado de
.....ruiva contemplação a manhã
ainda crispada de brechas

(uma oratória
imediatamente predisposta
ao rigor dos acontecimentos)

trouxesse as mãos em concha o sal
entredentes e uma vertigem
à qual se pressentisse a lógica desmesurada a tênue
miopia pousada no ombro tal qual uma fera
aspergindo o soro primeiro a fruta infindável a sede
que não tem mais para onde ir




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sexta-feira, 4 de março de 2011

Alguns poemas memoráveis da última década: "Miscasting", de Hilda Machado

Sigo aqui com minha série de artigos sobre poetas da década passada, a partir dos textos que me pareceram mais memoráveis dentre os que tive a sorte e alegria de ler, publicados entre 2001 e 2010. Após escrever sobre "sereia a sério", de Angélica Freitas, dedico o artigo a seguir à discussão do poema "Miscasting", de Hilda Machado (1952 - 2007), tragicamente não mais entre nós.


Alguns poemas memoráveis da última década: "Miscasting", de Hilda Machado
ou "Poesia funcional e formalmente útil para as futuras calamidades do leitor"


Dentre os luminosos conselhos e proposições estéticas de Ezra Pound, seja para seus pares contemporâneos ou para os poetas do futuro, muitas circulam hoje pelo Brasil, mas tão descontextualizadas e desfiguradas que se tornaram mais empecilhos que incentivos à produção de uma poesia que possa ter qualquer papel relevante em sua comunidade, a de seres que não só leem, mas também falam. O problema está, é claro, com alguns dos leitores de Pound e não com as proposições do americano, ou pior, na verdade com aqueles que muitas vezes as repetem sem realmente conhecerem os ensaios e o contexto histórico e estético em que surgiram.

É necessário também dizer, no entanto, que alguns deles facilitam essa falsificação por sua natureza, digamos, abstratizante, genérica, dependente demais da interpretação ideológica do usuário. Destarte, axiomas como o famoso MAKE IT NEW ou a fórmula do dichten = condensare convertem-se mui facilmente em bodes expiatórios para a mera legitimação de poéticas pessoais que, não raras vezes, são até mesmo contrárias ao que Pound em verdade praticou. Assim, o MAKE IT NEW com frequência torna-se a desculpa dos que preconizam certo vanguardismo sem sequer compreenderem as implicações militaristas da expressão, assim como para justificarem por vezes uma insistência surpreendente em desprezar ou mesmo ignorar o que quer que tenha sido produzido por poetas antes do século XX ou fora dos cânones mais conhecidos. Da mesma maneira, o dichten = condensare pode acabar invocado por quem acredita que basta jogar três titicas de palavras ao deus-dará de uma página em branco para que seu trabalho se constitua como "conciso". Neste contexto, torna-se quase impossível debater com clareza e discernimento sobre as diferenças entre o fragmentário/conciso e o desconjuntado/desarticulado. Se não atentarmos para tais perigos, e quero com isso dizer TODOS NÓS, o resultado poderá ser o que por vezes já vemos na poesia dos últimos 25 anos: tornarmo-nos poetas que não seriam capazes de terminar um verso com inteligência, graça e sensibilidade, com ou sem enjambement por auxílio, ainda que disso dependessem nossas vidas.

Há porém entre as proposições de Pound um conselho que me parece ainda (e especialmente) hoje uma proposta muito saudável a ter em mente durante a escrita. A proposição foi registrada em uma carta de 1915 de Pound, endereçada a Harriet Monroe, a fundadora e editora da revista Poetry, na qual Pound praticamente a forçaria a publicar poetas como H.D., T.S. Eliot e William Carlos Williams. Aqui vai a proposição, que me parece muito mais prática, clara e funcional que o MAKE IT NEW e outras que circulam desfiguradas no Brasil, em letras garrafais:


"... nothing — nothing that you couldn't, in some circumstance, in the stress of some emotion, actually say."(*)



Ou, em uma tradução possível: "nada – nada que você não possa, em alguma circunstância, sob a tensão de alguma emoção, realmente dizer."

Se muitas outras proposições de Pound podem ser desastrosas para os despreparados por serem demasiado abertas, não ignoro o perigo que esta pode significar, por ser talvez tão fechada. Não faltará quem diga que esta proposição exclui muitas práticas poéticas possíveis, mas eu creio que ela não suprima mesmo a metáfora, o neologismo ou experimentações sintáticas como o hipérbato. Ela apenas enseja uma preocupação maior com a justeza dos propósitos – e salvaria muitos poetas de hoje de uma aparentemente completa falta de senso de ridículo.

Não me parece difícil de argumentar que todos os poetas que respeitamos a observaram de alguma maneira, sem que fosse necessário um poeta como Pound torná-la explícita: de Catulo a Arnaud Daniel, de Orpingalik à princesa Wallâda, de Guido Cavalcanti a John Donne, de Taliesin a Hilda Hilst, de Rainer Maria Rilke a João Cabral de Melo Neto ela poderia ser detectada. Não estou ignorando outras experiências poéticas extremamente belas, necessárias e valiosas, como as que residem na esfera do encantatório e xamânico, chame-se o poeta Herberto Helder ou Paul Celan, assim como o eminentemente construtivo e linguístico da escrita de uma Gertrude Stein.

É por defesa dessas experiências poéticas que precisamos tomar a típica hipérbole de Pound, presente naquele NOTHING repetido ao início da proposição, com o que os americanos chamam de a grain of salt. São no entanto experiências extremas e muito especiais, pois mesmo na melhor poesia, ou digamos em grande parte da melhor poesia destes autores nós encontramos esta qualidade do dizível-sob-tensão. Tanto na "Todesfugue" e "Engführung" de Celan, na poesia de composição altamente permutacional de um livro como A Máquina Lírica, de Helder, como em "Lifting Belly" e tantos outros textos de Stein. É necessário alertar, para que os bufões de plantão não distorçam a discussão, que tal proposição está a anos-luz de distância de qualquer defesa do meramente coloquial na linguagem poética. Pois esta proposta de Pound incentiva uma poesia que evita tanto o coloquial como o livresco. Nada tem a ver com alguns dos conceitos a meu ver equivocados que apregoava Antônio Carlos de Brito (1944 — 1987) pelos idos de 1980. Mas, num momento como o presente, em que os poetas parecem tão divorciados de seu público e alguns charlatães têm se entregado a discursos para justificar uma grande falsificação do que Jakobson pretendia ao dividir a linguagem em funções, insisto que esta proposição seria saudável para os jovens poetas formando-se hoje no país.

E é a partir dela que eu começaria a discutir um poema como "Miscasting", de Hilda Machado. Como a poeta é praticamente desconhecida no país, tendo infelizmente morrido sem publicar sua poesia em livro, deixo vocês em primeiro lugar com o poema.


Miscasting


“So you think salvation lies in pretending?”
Paul Bowles



estou entregando o cargo
onde é que assino
retorno outros pertences
um pavilhão em ruínas
o glorioso crepúsculo na praia
e a personagem de mulher
mais Julieta que Justine
adeus ardor
adeus afrontas
estou entregando o cargo
onde é que assino

há 77 dias deixei na portaria
o remo de cativo nas galés de Argélia
uma garrafa de vodka vazia
cinco meses de luxúria
despido o luto
na esquina
um ovo
feliz ano novo
bem vindo outro
como é que abre esse champanhe
como se ri

mas o cavaleiro de espadas voltou a galope
armou a sua armadilha
cisco no olho da caolha
a sua vitória de Pirro
cidades fortificadas
mil torres
escaladas por memórias inimigas
eu, a amada
eu, a sábia
eu, a traída

agora finalmente estou renunciando ao pacto
rasgo o contrato
devolvo a fita
me vendeu gato por lebre
paródia por filme francês
a atriz coadjuvante é uma canastra
a cena da queda é o mesmo castelo de cartas
o herói chega dizendo ter perdido a chave
a barba de mais de três dias

vim devolver o homem
assino onde
o peito desse cavaleiro não é de aço
sua armadura é um galão de tinta inútil
similar paraguaio
fraco abusado
soufflé falhado e palavra fútil

seu peito de cavalheiro
é porta sem campainha
telefone que não responde
só tropeça em velhos recados
positivo
câmbio
não adianta insistir
onde não há ninguém em casa

os joelhos ainda esfolados
lambendo os dedos
procuro por compressas frias
oh céu brilhante do exílio
que terra
que tribo
produziu o teatrinho Troll colado à minha boca
onde é que fica essa tomada
onde desliga



Um poema não é apenas linguagem que se formula sob tensão, ele é também a textualidade que intensifica nossas emoções cotidianas, e o grito passa a não apenas expressar dor, mas a chamar a atenção do ouvinte para a existência da garganta e o talento para o grito. Eu conseguiria imaginar-me lançando muitos destes versos do poema de Hilda Machado à fuça de alguém, mesmo que fosse num momento, digamos, de embriaguez. Mas penso também que, como escreveu o crítico norte-americano Hugh Kenner ao discutir o trabalho de Williams Carlos Williams: “art lifts the saying out of the zone of things said” (Homemade World, 1975), algo como “a arte ergue e retira o dizer da zona das coisas ditas”. Seria muito interessante unir esta afirmação à de Pound e sua linguagem poética que apresenta uma textualidade que poderia ser, sob a tensão de alguma emoção, realmente dita. Ou seja, a poesia poderia ser uma espécie de tensão dentro do dizível. Qualquer coisa, menos o clichê já um tanto ridículo do dizer o indizível como parâmetro da arte poética. Com honrosas exceções, este discurso do poeta que diz o indizível é geralmente sinal claro de charlatanismo.


Como boa poeta que era, a wit e inteligência de Hilda Machado tornam-se claras já na escolha de seu título. Ela, que era pesquisadora do cinema, parte do conceito de "miscasting", ou seja, a escolha inadequada de um ator para determinado papel: neste caso, o de amante da poeta. Não é humor barato. É claro que tal poema de Hilda Machado integra-se à tradição da poesia lírica, aquela que, até poucos anos, estava em completo desprestígio por aqueles que "mimetizaram" exageradamente certas proposições de João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, entre outros. Durante a década de 90, foi como se a primeira pessoa do singular se tornasse tabu. Com medo do sentimental, obliterou-se o lírico. Para evitar o verborrágico, praticou-se um minimalismo que raramente parecia realmente articulado. Que Hilda Machado, assim como aquela outra maravilhosa Hilda, a Hilst, tenha composto tal poesia e a mantido em segredo possa ser talvez compreendido pela hostilidade crítica com que a poesia lírica fora tratada nos últimos 25 anos. Como ela escreve, a poeta declara-se "mais Julieta que Justine", ainda que esteja agora entregando este cargo e outros pertences. Trata-se de poesia lírica impiedosa. Forma-se numa composição bastante variada em seus registros. Escrita tesa, em que o aparentemente coloquial é alternado com o marcadamente aliterativo e musical, como em "há 77 dias deixei na portaria / o remo de cativo nas galés de Argélia", em que a imagem tão cotidiana de uma portaria de prédio é justaposta ao verso tão belo, estranho e musical sobre o "remo de cativos nas galés de Argélia". Tal talento, incomum nas últimas décadas, pode ser sentido com força ainda em versos como "mas o cavaleiro de espadas voltou a galope / armou a sua armadilha / cisco no olho da caolha / a sua vitória de Pirro". O poema une o elegante e o vulgar, nem trivialmente coloquial nem tacanhamente literário, dicções justapostas, criando uma espécie de equilíbrio de expressão. Em vários momentos, uma imagética que hesita entre o paradoxismo e a ironia.

O interessante em um texto como este, especialmente contra o pano-de-fundo da poesia da década de 90, por exemplo, e à luz ainda da proposição de Pound por uma poesia dizível-sob-tensão, é que ele borra qualquer fronteira demasiadamente clara entre poesia e prosa. O que nos lega é uma textualidade em que a composição está ciente de sua construção e seus artifícios, mas tais artifícios vêm conjugados ao desejo de que o texto não esteja exilado em apenas um lado da fronteira a teoricamente separar o escrito e o oral. Ou seja, o texto funciona na voz e na página, como é o caso de quase todos os poetas que sobreviveram aos séculos de naufrágio do contexto estético em que poetaram. Nunca na literatura brasileira parece-me ter havido, como a partir da década de 90, um divórcio estético tão grande entre poetas e prosadores, os primeiros frequentemente pecando pelo livresco e os últimos pelo trivial. A situação, eu pretendo argumentar, começou a ser revertida com o surgimento dos poetas que quero discutir nesta série de artigos.

Os poemas de Hilda Machado não apresentam respostas, mas apenas mais perguntas. Não é literatura de auto-ajuda, é literatura de auto-estorvo. Não se trata do que os concretistas costumavam chamar de hedonismo. Hilda Machado assume responsabilidade total perante a sua linguagem, mas a enquadra nas primeiras pessoas do singular de seus verbos. O ser sardônico não se conta entre os hedonistas, pois já não sabe muito bem a diferença entre o prazer e o sofrimento, seja o seu ou o alheio.

"Miscasting" foi publicado na revista Inimigo Rumor. No segundo número impresso da Modo de Usar & Co. nós publicamos outros poucos poemas de Hilda Machado. Entre eles, duas outras pequenas gemas de quilates que latem a quem tem ouvidos ainda sãos após tantos anos de literatice.

Julguem, por si mesmos, eu peço, se pérola ou porca o que vem a seguir:

O cineasta do Leblon

“Aquele que escavar em sua consciência
até a camada do ritmo e flutuar nela
não perderá o juízo.”
Nina Gagen-Torn


O brilho de laranja ao sol
amendoeira rubra e pavão
oculta sobressaltos faustianos
encenam-se dramas na alma
suadas peripécias
lágrimas
mímesis
em sítios escusos está a mocinha raptada por um turco
e a nudez do missionário espancado
folheia-se uma antologia de acidentes
títulos afundam
e no lodo
personagens sem nome
e escândalos de fancaria

O comércio incessante
distrai das caudalosas sociologias do fracasso
idades do ouro perdidas
terror espetacular
recorta o esforço de colosso trágico
alçar-se acima da imensa massa de vencidos
violinos pela indesejada que fatalmente alcança e ceifa
carnaval exterior que é dublagem

Nos domingos de lua cheia
um infante sôfrego obriga a minuciosos tratados
miuçalhas
monopólio
asperezas
contrabando
e então
razias de corsário

na lua nova cruzo a cidade pra beijar a sua boca
transpor morros e encontrar a elevação
tropeça-se em pétalas de rosas
em trufas
visitas ao paraíso
as quartas-feiras são turvas
e trazem as penas do inferno
telefonemas seus
telefonemas meus
telefonemas da outra
e a ex
compomos o obrigatório conflito
repetir com honestidade a velha trama
até que ao fim do primeiro bimestre
erra-se no açúcar
escorrega-se na farsa
e mudam-se todos para a novela das 7

Homem da lua
fantasia de rudes hormônios
o bicho se coça
fervor marcial e bico de passarinho
cavalo rampante que rasga com as patas convenções de estilo
atravessa pontes queimadas
alcançou o vale feroz
terremoto maior que o de Lisboa arrasa cidadelas
afrouxa parafusos
e do colchão abala a mola-mestra

ouviu, carro?
tribos bárbaras desabam sobre a minha Europa

ouviu, montanha?
mudaram os livros que eu agora levo pra cama
antigas lendas fabulosas
uma grosseira rapsódia
cinco escritos libertinos
eu bebo como num banquete em Siracusa
e gozo como as prostitutas de Corinto
palmeira, ouviu?


Ninguém em sã consciência poderá dizer que se trata de poesia que faz concessões. O sarcasmo doloroso de Hilda Machado parece-me extremamente sofisticado, em nenhum momento cede ao facilmente sentimental. Trata-se de uma poeta que sabe, como disse Pound, que only emotion endures, mas o emocionante aqui não segue roteiro de comédia romântica, mas o roteiro de um filme de terror em que a vítima se apaixonasse pelo assassino logo antes da machadada. É uma poeta que parece estar ciente de todas as nossas desilusões pessoais e comunitárias: "O comércio incessante / distrai das caudalosas sociologias do fracasso / idades do ouro perdidas / terror espetacular / recorta o esforço de colosso trágico / alçar-se acima da imensa massa de vencidos / violinos pela indesejada que fatalmente alcança e ceifa / carnaval exterior que é dublagem". Este último verso ilustra como H. Machado não está pregando naturalismos de expressão, e que, nesta nossa sociedade, podemos no máximo entregar-nos à distração do comércio. E seguimos, por já não parecer haver muitas escolhas mais. Como escreve em uma das estrofes:

compomos o obrigatório conflito
repetir com honestidade a velha trama
até que ao fim do primeiro bimestre
erra-se no açúcar
escorrega-se na farsa
e mudam-se todos para a novela das 7



Proposições críticas fazem sentido em contextos específicos, jamais são fórmulas de sucesso imutáveis. No momento em que João Cabral de Melo Neto e o Grupo Noigandres, por exemplo, surgiram no cenário poético brasileiro das décadas de 40 e 50, muitas de suas proposições faziam sentido naquele momento específico, em que a poesia brasileira parecia depender demais de sentimentalismo e frouxidão composicional. Não podemos nos esquecer que a literatura e poesia brasileiras já contavam com excelentes medulas em meio à aparente geléia geral, com Machado de Assis, Sousândrade, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade e (por que não?) o próprio Manuel Bandeira em vários poemas. Certos elementos formais que haviam se afrouxado voltaram a ser calibrados. Repetidos no contexto dos últimos 20 anos, tais práticas tornaram-se meros discursos, engendrando textos que passaram a pedir calibrações de outra natureza. A proposição de Pound citada no início deste artigo poderia trazer elementos muito saudáveis para a produção poética contemporânea, se há ainda algum interesse por parte dos poetas em ter alguma relevância cultural no mundo de hoje. Há vários mitos poético-ideológicos em voga hoje no Brasil que precisam ser questionados, como, entre outras, a leitura que se faz hoje sobre a função poética, para justificar a escrita que nada diz e nem o faz de forma nova, inteligente ou interessante. Já ajudaria muito se percebêssemos que o substantivo em questão é FUNÇÃO. Entre os guias possíveis, proponho aqui Hilda Machado, que pode, com apenas poucos poemas conhecidos, ensinar mais que a obra completa de muitos.


--- Ricardo Domeneck

§

O nariz contra a vidraça
Hilda Machado


como a paisagem era terrível
mandou se fechassem as janelas
o nariz contra a vidraça e o fla-flu comendo lá fora
genocídios, promessas, plenilúnios
O festim de Nabucodonosor, a vitória dos pó-de-arroz
as dores do pai e os gritos de amor
são agora aquarelas pitorescas

O nariz contra a vidraça
melhor ainda atrás da persiana
ela com seus preciosismos
unhas feitas entre desfiladeiros de livros
barricadas contra o sublime e o medo

Discreta voyeuse
o sofá combinando com o tom das exegeses
a polidez dos móveis, avencas, decassílabos, filmes russos
perífrases sobre paninhos de crochê
e em vez de carne poemas no congelador

Anônima, dizia sempre à manicure
e apesar das mãos que enrugam
as unhas bem curtas e o esmalte claro, por favor

Um dia, o leite derramado na cozinha, saiu
garras vermelhas, bateu à porta do vizinho


§


(*) Carta pra Harriet Monroe (London, 1915): "Objectivity and again objectivity, and expression: no hindside-before-ness, no straddled adjectives (as 'addled mosses dank'), no Tennysonianness of speech; nothing—nothing that you couldn't, in some circumstance, in the stress of some emotion, actually say." Ezra Pound.


** O autor agradece a Dirceu Villa pela ajuda em localizar a fonte exata da citação de Pound.


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domingo, 13 de fevereiro de 2011

Alguns poemas memoráveis da última década: "sereia a sério", de Angélica Freitas. Ou, "Relendo o Rilke Shake por ocasião de sua encarnação alemã"

NOTA e ADVERTÊNCIA: Encerrou-se a década. Isso não quer dizer que as datas segreguem ou separem alguns poetas de outros, ou ainda que se aperte a tecla de RESET no cronômetro da tradição. Tomo a data apenas como ensejo para iniciar hoje e aqui uma série de artigos sobre poemas brasileiros contemporâneos, especificamente os publicados na última década, série que deverá se estender alternadamente pelas próximas semanas entre as outras postagens deste espaço. Gostaria de acreditar que o uso do pronome indefinido "alguns", já no título da série, evitará certa histeria que se manifesta ao redor de esforços críticos como este. A escolha do adjetivo "memorável" tem também suas implicações estéticas e epistemológicas, e, ao evitar qualquer superlativo, espero também acalmar tanto a neurose dos Porteiros do Cânone como a paranóia da Liga dos Excluídos. Dito isto, por ocasião do lançamento do volume Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte (Wiesbaden: Luxbooks, 2011) aqui na Alemanha, inicio a série com uma discussão em torno do trabalho de Angélica Freitas, em especial do poema "sereia a sério". Nos artigos seguintes, tratarei principalmente de poetas que estrearam entre 2001 e 2010, e, em alguns casos, de poetas mais velhos.


Alguns poemas memoráveis da década: "sereia a sério", de Angélica Freitas,
ou, "Relendo o Rilke Shake por ocasião de sua encarnação alemã", por Ricardo Domeneck.



Desde que começou a circular por um público mais amplo há cerca de cinco anos, a poesia de Angélica Freitas tem sido uma das mais comentadas dentre os trabalhos dos poetas surgidos na década passada. Ainda que possa parecer quase reconfortante perceber, ao menos, que um livro de poesia ainda se mostre capaz de gerar posicionamentos tão extremos, na maior parte dos casos a polêmica apenas nubla a discussão crítica, em um país tristemente ainda viciado na busca provinciana de um "Grande Poeta Nacional", que sirva de parâmetro para todos os outros, nivelando diferenças desejáveis para qualquer literatura nacional saudável. Ao mesmo tempo, após mais de uma década em que críticos e poetas (especialmente nos anos 90) davam-se tapas diplomáticos nas costas e falavam sobre "pluralidade de vozes" apenas para se absterem do trabalho crítico, não deixa de ter seu interesse que controvérsias poéticas renasçam, quando para muitos tal quizumba parecia relegada aos tempos em que Hugo Ball entoava sonoridades sem sentido num palco de cabaré e chamava isso de poesia, ou, para darmos um exemplo brasileiro, os tempos em que Carlos Drummond de Andrade estreava aos 26 anos com o poema "No meio do caminho", publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia (1928), e conseguia com isso dividir o país, segundo relatos, em duas categorias mentais distintas e ferozmente opostas entre si. Muitos desses embates voltaram a ser comuns nas décadas de 50 e 60, em vários países, quando grupos de poetas como os Lettristes de Paris, o Wiener Gruppe (obviamente) em Viena, o Grupo Noigandres em São Paulo, os Beatniks em Nova Iorque e São Francisco ou a Internacional Situacionista retomaram as estratégias das primeiras vanguardas.


Imagino que algumas orelhas tenham já se levantado perante a junção destes nomes neste contexto, em que se discute a poesia de Angélica Freitas. Pois, a verdade é que qualquer adjetivo usado em relação ao trabalho da poeta gaúcha, nascida em Pelotas em 1973, será polêmico e questionado. Talvez a saída seja usar justamente este adjetivo e dizer então que a poesia de Angélica Freitas é a mais polêmica da poesia brasileira contemporânea? Já insinuei isso em outros artigos. Nos mesmos, busquei aclarar o equívoco de alinhar seu trabalho ao dos marginais cariocas, por exemplo, com a estratégia algo provinciana que herdamos de nossos românticos e modernistas de apreciarmos a poesia brasileira como espécie de compartimento estanque e hermeticamente fechado em si, resultado da busca por independência e fundação de uma "tradição nacional". A tradição a que se filia a poesia de Angélica Freitas, autora que lê e conhece a poesia escrita em espanhol, inglês e alemão, não tem muitos praticantes na poesia brasileira do século XX. Não se alinha às paródias dos poetas da década de 70, e somente uma leitura superficial e ignorante da tradição mundial da poesia satírica tentaria este vínculo exclusivo. Se em alguns poemas podemos encontrar ecos do modernismo de Oswald de Andrade, em seus melhores momentos a poesia lírico-satírica de Angélica Freitas encontra melhor ascendência brasileira entre poetas do século XIX, como na obra do grande Sapateiro Silva e também em Qorpo-Santo. É também na poesia satírica e nonsense de poetas como Edward Lear, Christian Morgenstern, Paul Scheerbart ou dos dadaístas que podemos encontrar ainda esta sobrevivência moderna e contemporânea da poética de Marco Valério Marcial, como exemplo clássico, a mesma que jorrava entre os Poetas Goliardos dos séculos XII e XIII e dos compositores das chamadas fatrasies medievais, desaguando no trabalho desta brasileira e de outros companheiros seus "da nova geração". Pouquíssimos críticos literários nacionais têm familiaridade com estas tradições para entenderem o que alguns dos melhores jovens poetas contemporâneos estão fazendo. No ano passado, escrevi um ensaio intitulado "Das fatrasies medievais a DADA, do Sapateiro ao Rilke shake", em que tratei da poesia contemporânea brasileira justamente a partir destas linhagens, práticas e tradições. (Os interessados podem ler o ensaio aqui. )


A poesia de Angélica Freitas consegue muitos de seus efeitos mais fortes ao criar uma conjunção interessante e eficiente entre o lírico e o satírico, baseando-se muitas vezes na tática da self-deprecation, o que a liga à tradição dos Poetas Goliardos, autores do século XII como Hugues d'Orléans (1086 - 1160), também conhecido como Hugo Primas, ou do poeta anônimo que passou à posteridade conhecido como Arquipoeta Goliardo, autor do famoso "Confissões", em que escreve aqueles que talvez sejam os mais famosos versos desta tradição medieval da poesia satírica latina:


Meum est propositum in taberna mori,
Ut sint vina proxima morientis ori.
Tunc cantabunt letius angelorum chori:
"Deus sit propitius huic potatori"


Ou, em minha tradução livre:


Meu propósito é morrer nalgum boteco,
Para que eu tenha vinho perto da boca.
Assim os anjos cantarão bem bonachos:
"Que Deus tenha piedade desse bêbado."



Vejamos um exemplo do Rilke shake (2007), de Angélica Freitas:

às vezes nos reveses

penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
digo: agüenta com altivez
segura o abacaxi com as duas mãos
doura tua tez
sob o sol dos trópicos e talvez
aprenderás a ser feliz
como as pombas da praça matriz
que voam alto
sagazes
e nos alvejam
com suas fezes
às vezes nos reveses


::: Angélica Freitas. Rilke shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) ou Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte (Wiesbaden: Luxbooks, 2011) :::


Poucos poetas brasileiros das últimas décadas usaram a rima com esta graça e inteligência. Trata-se de poesia a combinar o lírico e o satírico com qualidade e de forma bastante sofisticada. O poema funciona na página e na voz, pois é composto de forma tesa em sua sonoridade, mesclando registros, com palavras "nobres" como tez, reveses, altivez e sagazes, a outras como fezes e expressões populares como "à puta que a pariu". Os efeitos aqui são calculados, não se trata da celebração da espontaneidade da Poesia de Mimeógrafo e de outros poetas da década de 70. As rimas que dançam por entre palavras da língua portuguesa e inglesa têm sua prática fincada na tradição, por exemplo, do Sousândrade d´"O Inferno de Wall Street", pouquíssimo usada na poesia brasileira posterior, que a usaria para efeitos muito distintos em alguns poucos textos, como "A Última Elegia" de Vinícius de Moraes e certos poemas de Augusto de Campos e Mário Chamie no pós-guerra. O texto de Angélica Freitas não é poesia metafísica nem meditabúndia: é poesia satírica, e deve ser julgada nos parâmetros desta tradição. Suas palavras são usadas de forma precisa, cumprem sua função específica e pensada, muito ao contrário da poética randômica, por exemplo, de alguns poetas dentre os que se autodenominam neobarrocos, que recorrem a polissílabos exóticos apenas pelos cheap thrills de uma sonoridade aleatória e tonitruante, e ainda para insistir na ideologia da trans-historicidade e na segregação intransigente da chamada função poética – ao contrário do que presenciamos na poesia de Gregório, Quevedo e Góngora, ou mesmo a de um ótimo poeta como Perlóngher em um livro como Austria-Hungria.

Ora, não há palavras para o equívoco de se ler um poema como este, acima, e passar a analisá-lo sob parâmetros da poesia órfica, por exemplo, como se Angélica Freitas pretendesse com ele escrever a décima-primeira Elegia de Duíno ou substituir Macbeth. O que ela pretendeu --- escrever um poema satírico de qualidade ---, ao mesmo tempo bastante pungente em sua tática lírico-satírica da self-deprecation, ela conseguiu e com belos resultados. Se não houver espaço em nossa tradição contemporânea para tal prática, não é de se admirar que a poesia não seja lida pelo público. Muitos dos que regurgitam máximas de Ezra Pound pelos cantos parecem ignorar que ele também alertou aos poetas que não se esquecessem que a poesia nasceu com uma função primordial: tornar alegre o coração do homem. Pound escreve no seu ABC of Reading: "Gloom and solemnity are entirely out of place in even the most rigorous study of an art originally intended to make glad the heart of man".

Acaba de ser lançado aqui na Alemanha, em edição bilíngue, Rilke shake: Ausgewählte Gedichte {Rilke Shake: Poemas Escolhidos}, que traz quase todos os poemas do volume brasileiro, ao qual a tradutora – a poeta e romancista franco-germânica Odile Kennel – acrescentou poemas recentes de Angélica Freitas publicados em revistas e antologias internacionais, como é o caso de "eu durmo comigo", "louisa por que não me googlas?" e "O livro rosa do coração dos trouxas". A editora chama-se Luxbooks e é uma das pequenas editoras de poesia mais sofisticadas do país, editando autores vivos como os americanos John Ashbery e Rae Armantrout ou o argentino Sergio Raimondi, para citar os que são conhecidos dos brasileiros. A edição é muitíssimo bem cuidada, e a tradução de Odile Kennel tem momentos de genialidade. Vejamos dois outros poemas do volume, o já bastante conhecido poema do "violinista" e o intitulado "ringues polifônicos":


o que passou pela cabeça do violinista em que a morte acentuou a palidez ao despenhar-se com sua cabeleira negra & seu stradivarius no grande desastre aéreo de ontem



mi
eu penso em béla bártok
eu penso em rita lee
eu penso no stradivarius
e nos vários empregos
que tive
pra chegar aqui
e agora a turbina falha
e agora a cabine se parte em duas
e agora as tralhas todas caem dos compartimentos
e eu despenco junto
lindo e pálido minha cabeleira negra
meu violino contra o peito
o sujeito ali da frente reza
eu só penso


mi
eu penso em stravinski
e nas barbas do klaus kinski
e no nariz do karabtchevsky
e num poema do joseph brodsky
que uma vez eu li
senhoras intactas, afrouxem os cintos
que o chão é lindo & já vem vindo
one
two
three

§

ringues polifônicos


1.

entre ringues polifônicos e línguas multifábulas
entre facas afiadas e o elevado costa e silva
entre dumbo nas alturas e o cuspe na calçada
alça voo a aventura na avenida angélica
e hoje de manhã trabalha e amanhã avacalha
a viação gato preto colando um chiclete
adams de menta no assento daqueles bancos de trás
entre ringues polifônicos e tênis alados
entre paulistas voadores e portadores esvoaçados
de baseados no bolso das calças jeans
entre o canteiro central da paulista e a vista do vão do masp
entre os que eu quero e os que queres de mins


2.

dos ringues polifônicos da cidade de são paulo:
entre valsas e velórios e invertidos convulsivos
entre a puta enaltecida e enrustidos explosivos
entre a abertura da boca e o último trem pra mooca
entre os ringues polifônicos e a queda da marquise
morreu ontem executada a poor elise



::::: Angélica Freitas. Rilke shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) ou Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte (Wiesbaden: Luxbooks, 2011) ::::


Muitas das características do primeiro poema aqui discutido reaparecem nestes textos. Ler "o que passou pela cabeça do violinista em que a morte acentuou a palidez (...)" é presenciar a poesia dos Goliardos sendo renovada perante nossos olhos em pleno século XXI. Já em "ringues polifônicos", a mescla de registros e as rimas inusitadas assumem importância quase temática, e seu uso conscientemente exagerado da aliteração, por exemplo, assim como dos muitos vocáculos polissilábicos, além de denunciar a terrível qualidade de vida dos habitantes da capital paulista, chegam também a satirizar certas práticas poéticas contemporâneas que se têm como "trans-históricas", bastante encasteladas na cidade. A cidade de São Paulo é mencionada de forma específica, permitindo que a poeta use certos topônimos para arrancar-lhes um efeito poético, como sua menção à Avenida Angélica, que passa a ser tanto o espaço físico como um espaço psíquico (e psicótico) no humor mordaz da autora, borrando a fronteira entre sujeito e objeto.

Um poema satírico como esse, tão fincado em seu contexto local, além do trabalho com a sonoridade e tom, apresenta um desafio de verdade a um tradutor. Odile Kennel, ainda que tenha decidido manter intocados os topônimos originais, como Avenida Angélica e Elevado Costa e Silva (eu os teria trocado por topônimos berlinenses), consegue manter o ritmo e tom do original: "zwichen polyphonen klingeltönen und fabelhaften sprachen...". A poesia germânica tem uma tradição fortíssima de poesia lírico-satírica em grande parte desconhecida no Brasil, não apenas na simplicidade cantante da poesia de Heinrich Heine como na poesia moderna de Morgenstern, Scheerbart e de dadaístas como Hans Arp e Kurt Schwitters. É nesta linhagem que a poesia de Angélica Freitas está sendo lida aqui na Alemanha. Penso, por exemplo, nos mais famosos poemas de Arp, como por exemplo "Opus Null", da qual o leitor pode ler a primeira seção abaixo:


Opus Zero


Eu sou o Grão-Istoaquilo
O rigoroso regimento
O oxigenoma Sine Qua Non
O anônimo 1%

O P.P.Tit. e dito cu
Culatra sem boca e buraco
O honorável talhercúleo
Capa nova em velho cardápio

Eu sou o pífio vitalício
O Sr. Dezembro em dúzia
O colecionável Filatelo
Em verniz vinil e fúcsia

O desabrochável semigual
O honoris causa Dr. Ômega
O brancomo berço d´ouro
O paparazzível Domine


(Hans Arp em tradução de Ricardo Domeneck)


Vale também lembrar que Angélica Freitas é precursora no Brasil da prática que já chamamos de "googlagem", renovando a colagem dadaísta. Tal prática, por exemplo, se tornou o carro-chefe da poesia flarfista, surgida também na última década nos Estados Unidos, de autores como K. Silem Mohammad, Nada Gordon e Michael Magee (meu favorito entre os autores da Flarf Poetry). Abaixo, uma das googlagens experimentais de Angélica Freitas:


a poesia não

a poesia não é uma coisa idiota
a poesia não é uma opção
a poesia não é só linguagem
a poesia, não
a poesia não é para ser entendida
a poesia não é uma ciência exacta
a poesia não é arma
a poesia não é mais de Orfeu
a poesia não é diferente
a poesia não é um casamento
a poesia não é um sentido
a poesia não é, nunca foi
a poesia não é escolha
a poesia não é nem quer ser mercadoria
“a poesia não é uma força de choque.
é uma força de ocupação.”
Mas a poesia não é a revelação do real?
a poesia não é a arte do objeto
a poesia não é mero artifício
a poesia não é de Castro Alves, como pensam muitas pessoas
a poesia não é mais representativa
a poesia não é uma ocupação permanente
a poesia não é um espelho
não, a poesia não é uma arte contemplativa
a poesia não é uma coisa idiota
a poesia não é algo que possa utilizar-se como trombeta
a poesia não é uma questão de sentimentos
a poesia não é feita (diretamente) de idéias
mas de palavras (estas, sim, portadoras daquelas)
as pessoas nem sempre percebem que a poesia não
é mero entretenimento, brincadeirinha literária inconseqüente

já a poesia não.



Chego então a um dos poemas de Angélica Freitas que me parece tão memorável entre os publicados na última década, poema que já discuti em outros artigos: o tão bonito "sereia a sério". Nele, há um exemplo ideal do momento em que a sátira e a lírica da poeta gaúcha parecem encontrar seu casamento harmonioso. Se em tantos textos sua poesia parece hesitar entre o lírico e o satírico, neste um dos repuxos apenas intensifica o outro, e os cantos da nossa boca ficam tesos, sem saber se obedecem à pressão ascendente ou descendente. Há ainda nele um dos seus exemplos mais sutis de intervenção política no debate de gênero, com toda a sua violência subreptícia.


sereia a sério

o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado

a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia

não quero contar a história
depois de andersen & co.
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa

em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée

são duros os procedimentos

bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés

e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse

em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão



::: Angélica Freitas. Rilke shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) ou Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte (Wiesbaden: Luxbooks, 2011) :::


Se a poesia em língua portuguesa conta hoje com o talento lírico-satírico de uma autora como Adília Lopes, eu ousaria aqui, para protesto seguro de muitos, afirmar que mesmo a portuguesa não foi capaz em muitos momentos de compor com tamanho humor e graça um texto tão oralizável e ao mesmo tempo cheio de consciência da materialidade sígnica. É, em minha opinião, um dos poemas líricos mais tocantes da década que se encerrou. É importante notar a maneira como Angélica Freitas consegue criar quase uma ofegância no leitor, mesmo que este esteja lendo em silêncio, com sua sintaxe que parece borrar sujeito e objeto, lançando enjambement por enjambement para mais longe o complemento e a conclusão, isomorfisando o andar cambaleante desta pequena sereia que acaba de ganhar pernas, apenas para jogar-nos na cara, no nono verso, um rabo de fêmea. No Brasil, não acaba tudo em pizza, acaba em bunda: "a perplexidade seria sempre / com o rabo da sereia". Toda a violência de gênero em um país sexista e homófobo como o Brasil é sutilmente acusada em imagens de cartoon sangrento, hímen elástico a ser rompido, saltos altos a serem tolerados, facas sob os pés. Sereia consumível. Num país de machos famintos, seu destino seria o sushi.

Num exemplo de consciência da materialidade sonora do signo, Angélica Freitas baseia a musicalidade desta sua sereia (sirene e sibila), em uma composição poética fortemente marcada por aliteração a partir de consoantes fricativas ::: estrindentes, sibilantes ::: combinando-as com plosivas que aumentam este efeito ofegante de sereia arrastando-se sobre um rabo ou dois pés.

Esta sensibilidade de poeta lírica que não abre mão do mordaz por saber-se cidadã de um país onde Safo de Lesbos também teria alguns direitos civis negados a sua vida amorosa, leva-a em outros textos a um tom mais delicado e minimalista, como no bonito "siobhan 4", em que Angélica Freitas lança mão da atomização do verso mas, ao contrário dos poetas da década de 90 que tentavam encaixar-se com poemas meramente descritivos na poética de Cabral e Creeley, usa-a para a lírica amorosa, celebrando a destinatária do poema, uma menina irlandesa com o nome (de origem celta) Siobhan, que significa "Deus é gracioso". À última seção do poema, que é dividido em cinco, lê-se:


de siobhan 4

será que ela pensa em mim
será que também pergunta
o que aconteceu

com as boas garotas
de sodoma, essas que
sempre

se beijavam nas escadas
sumiam nas bibliotecas
preferiam virar sal?



::: Angélica Freitas. Rilke shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) ou Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte (Wiesbaden: Luxbooks, 2011) :::

Este minimalismo parece menos interessado no conciso que no incisivo, ou seja, conciso mas mordaz, economia de meios com uma função poética específica. Se o poeta diz mais pelo que deixa de dizer, como quer certo clichê crítico, Angélica Freitas recorre aqui à implicação do que é excluído da História, as "boas garotas de sodoma", assim como à menção àquela que entrou para a História sem nome, conhecida apenas como "a mulher de Ló".

Algo destas práticas reapareceria em outro poema serial que, já no título, demonstra esta tática de aliar ao lírico o satírico: trata-se do poema "O livro rosa do coração dos trouxas", publicado no número de estreia da Modo de Usar & Co., do qual é possível ler abaixo duas seções (o poema é divido em 12 partes):


Dois excertos do poema O livro rosa do coração dos trouxas

I.

eu quando corto relações
corto relações.
não tem essa de
briga de torcida
todos os
sábados.
é a extinção do estádio.
vejo as forças
que atuam; a tesoura,
o papel,
a vontade de cortar.
tudo é provocação?
então embrulha
tua taquicardia
num sorvete de amêndoas,
reza que derreta.
quando lembro do
corte revivo a
ferida.
melhor não.
o corte é definitivo,
a dor retorna em forma
de milão madri
ou liverpool
quando convocada.
ricardo
lembra do teu passado
só se te dá
prazer.
how elizabeth
bennet of you.
mas tirar
deleite da perda,
convencer fulana
de que minha fraqueza
não oblitera?,
exigir um rio de janeiro
com gatos e livros,
legítima esposa?,
fico sonhando com
a viagem a um país onde a
língua seja vértebra
sobre vértebra,
palavras com j
antes do l,
e cacos gregos
que me devolvam
ao aluguel da casa.



IX.

o dia seguinte
na tua cama
de lençóis
zêlo com
circunflexo,
a dôr com
circunflexo,
porque é
antiga,
como o café pelé
todos a conhecem.



O talento da poeta em mesclar o lírico e o satírico mostra-se novamente com força neste poema-em-série, como o fez em "sereia a sério". A forma como a autora questiona as fronteiras de gênero :::: tanto GENRE como GENDER ::: não tem muitos paralelos na poesia contemporânea, onde em geral a discussão assume contornos meramente temáticos. Se o lírico tantas vezes é visto como relação feminina com a poesia, a autora complexifica tal clichê ao gerar este seu gênero poético híbrido, entre o lírico e o satírico, como se entre o sáfico e o goliardo. Este poema me toca em especial pois estabelece em suas malhas também um pequenino diálogo, na primeira seção, com um poema meu que seria publicado no livro Sons: Arranjo: Garganta (2009), no qual faço o parto de um diálogo com algumas poetas que respeito, todas com o mesmo primeiro nome: a americana Elizabeth Bishop, a escocesa Elizabeth Fraser e as brasileiras Elisabeth Veiga e Isabel Câmara (Isabel sendo a versão portuguesa do nome Elizabeth). No poema, tento emular a escrita de cada uma delas criando metáforas à maneira de seus poemas, satirizando a própria ideia de emulação:


Drag Queen

na aprendizagem dos ganhos
pela arte da subtração

(oh, how
elizabeth bishop
of you)

acordei meio porta-luvas
& todas as mãos
compareceram à cerimônia

(oh, how
elisabeth veiga
of you)

ao confiar-me aos sete
dias de jericó
desmoronando aos pés
do sim e de las vegas

(oh, how
elizabeth fraser
of you)

pois

ninguém me arranha
ninguém me cospe
ninguém me chama
de kate moss

(oh, how
elisabeth chamber
of you)


Ricardo Domeneck, Sons: Arranjo: Garganta (2009)


Se trago esse diálogo à conversa (o que infelizmente poderá parecer auto-celebratório para alguns) é porque me parece interessante para nossa discussão sobre as relações de gênero e o mesclar de dualidades ligadas a GENRE e GENDER. Ao adicionar Elizabeth Bennet à lista, a personagem do romance Pride and Prejudice de Jane Austen, criando uma referência intertextual a um poema intitulado "Drag Queen" e no qual também satirizo noções de genre e gender, Angélica Freitas introduz nesta primeira seção de seu poema o questionamento, que se estenderá por toda a série, das expectativas sociais ainda existentes e exigentes para as mulheres, recompondo os laços de obrigação, sonho e desejo ligados à instituição do casamento, aliando-se a uma poeta como Marianne Moore, que escreveria nos primeiros versos do poema "Marriage":


Marriage

This institution,
perhaps one should say enterprise
out of respect for which
one says one need not change one's mind
about a thing one has believed in,
requiring public promises
of one's intention
to fulfill a private obligation:
I wonder what Adam and Eve
think of it by this time,
this firegilt steel
alive with goldenness;
how bright it shows --
"of circular traditions and impostures,
committing many spoils,"
requiring all one's criminal ingenuity
to avoid!

(...)


Sob a aparente simplicidade de sua escrita, agitam-se questionamentos que têm passado ao largo de tanta poesia contemporânea. Em um artigo para o décimo número da revista portuguesa águas furtadas, que trazia uma pequena seleção de poemas de Angélica Freitas, escrevi que a autora gaúcha era uma poeta de relação anti-autoritária com a tradição. Talvez porque a tradição a que pertence seja a dos anti-autoritários, a de Catulo satirizando César e Mandelshtam satirizando Stálin.

Essa atitude se manifesta na poeta gaúcha também na maneira com que Angélica Freitas se recusa, por exemplo, até mesmo a separar poemas que a maioria dos poetas segregaria entre textos "para adultos" e textos "para crianças", mostrando que talvez não respeitem nem um nem outro. Angélica Freitas não sofre do que Lawrence Sterne, citado por Pound, chamou de "Gravity, a mysterious carriage of the body to conceal the defects of the mind." Há algum tempo, a autora publicou um poema que causou (pasmem!) escândalo entre certos bufões e charlatães contemporâneos, representantes da "poesia séria e difícil":


um patinho de borracha
& uma jujuba azul


um patinho de borracha
quá quá
amarelinho com mofo
esquecido numa banheira
quá quá
de uma casa para alugar

se sente tão sozinho
quá quá
se ao menos ele soubesse
que debaixo do sofá
quá quá
descansa esquecida
uma linda jujuba azul

uma jujuba sabor anis
uma jujuba que ninguém quis

um patinho de borracha
quá quá
que ninguém quis levar

uma jujuba azul
zul zul
que ninguém quis chupar



Pois veja que, por mais incrível que pareça, em um episódio recente um "poeta" e "crítico" paulistano chegou a atacar a autora gaúcha por escrever este poema. Como comentar com candor tamanha impostura? No Brasil de hoje, chega-se ao absurdo de atacar poetas satíricos e autores de poesia leve por "falta de seriedade"! Ora, apenas um completo idiota descontextualizaria tal poema e sua prática, insistindo em não perceber os propósitos do texto, a que público e momento se dirige, perdendo a oportunidade de reconhecer, como já dizia o Eclesiastes, que "tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu... há tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar". Tempo para Orfeu descer ao Hades e tempo para Orfeu ensinar agricultura à humanidade, como se atribui a ele em alguns mitos. Espero que a poeta gaúcha ainda componha muitos poemas como este, que serviriam como ótima introdução à poesia para tantas crianças brasileiras.


O livro de estreia de Angélica Freitas, Rilke Shake, talvez tenha sido o livro de poemas mais lido no Brasil na última década. Alguns dirão, por discordarem das escolhas est-É-ticas da autora, que vendeu porque é acessível, como se isso fosse um grande pecado. Nada mais ridículo do que assistir poetas contemporâneos que insistem no mito romântico da poesia que obrigatoriamente tem que ser "difícil" e "escrita para ninguém", ao mesmo tempo em que choramingam pela falta de leitores. A tradição da poesia órfica, como de outras tradições de poesia hermética, é longa e necessária, mas não a única. Nem estou me esquecendo que eu mesmo já publiquei poemas chamados de "herméticos" e até incompreensíveis. Mas a ideia de uma poesia que seja necessariamente difícil, poesia que tem que ser "escrita para ninguém", poesia que não deve e não cede às "exigências das massas e do público", é um mito ideológico criado em grande parte pelos poetas românticos, pressionados a se encaixarem nas transformações sociais que se agitaram após a Revolução Francesa, quando exigiu-se deles que revissem a que classe pertenciam ou a quem deviam lealdade. Em suma, quem pagaria as suas contas. A poesia de Baudelaire mostra com tamanha clareza este embate do poeta com a nova ordem política e social da Europa, por exemplo. Muito da relação neurótica e paranóica entre os poetas e seu público vem dos desdobramentos desses acontecimentos históricos, e apenas foi reavivada pela Revolução Russa e as novas exigências de "lealdade social" lançadas contra os poetas. Se nos séculos XVIII e XIX os poetas viram a aristocracia que os sustentou e formou seu público despencar do poder, para pouco mais de um século depois (quando os poetas estavam se acostumando a servir à burguesia), presenciarem o surgimento de novas exigências de outras revoluções e ideologias, parece-me natural que os poetas se refugiassem na ideia de que não devem nada a ninguém, nem servem a classe ou ideologia alguma. Estão certos que queiram reservar a si o direito de escrever como entendem, independente de qual ideologia está no Poder. A poesia existe para si, concordamos todos. A poesia é inútil, disse Leminski. Também concordamos, mas Leminski referia-se ao utilitarismo do sistema capitalista. A poesia não é produto de troca ou venda, mas sempre teve funções sociais aliadas a suas formas, desde que surgiu, ainda que esta função seja tão-só to delight the heart of men, como disse Pound. É impossível seguir ignorando a influência que estas questões têm, tanto sobre a produção e discussão da poesia, como sobre sua recepção. Estão interligadas.

O sucesso da poesia de Angélica Freitas hoje mostra-nos que há possibilidades ainda muito claras para os poetas contemporâneos, e que a função satírica da poesia, assim como sua função lírica (tanto na acepção de "poesia cantada" como "poesia do indivíduo") não perderam sua demanda. Esta é minha leitura da poesia de Angélica Freitas, como da de outros poetas brasileiros contemporâneos trabalhando em linhas similares. Encerro-a com um poema da autora gaúcha publicado na revista eletrônica espanhola Poesía Digital, com a esperança de, nas palavras da própria poeta, não haver feito "uma leitura / equivocada / mas leituras de poesia / são equivocadas".


--- Ricardo Domeneck

§

POEMA DE ANGÉLICA FREITAS


alguém quer saber o que é metonímia
abre uma página da wikipédia
se depara com um trecho de borges
em que a proa representa o navio

a parte pelo todo se chama sinédoque

a parte pelo todo em minha vida
este pedaço de tapeçaria
é representativo? não é representativo?

eu não queria saber o que era
metonímia, entrei na página errada
eu queria saber como se chegava
perguntei a um guarda

não queria fazer uma leitura
equivocada
mas leituras de poesia
são equivocadas

queria escrever um poema
bem contemporâneo
sem ter que trocar fluidos
com o contemporâneo

como Roland Barthes na cama
só com os clássicos


§

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