"Das fatrasies medievais a DADA, do Sapateiro ao Rilke shake"
por Ricardo Domeneck
Há no Brasil, hoje, várias poéticas em atividade, algumas complementares, outras adversativas. Não há novidade nisso, houve outros momentos históricos em que poetas de faturas muito distintas produziram poesia e literatura de qualidade. Basta citar um exemplo, ao qual tenho tentado chamar a atenção: nas duas últimas décadas do século XIX, ou, para ser mais preciso, entre 1881 e 1902, estavam em atividade, produzindo, publicando e participando do debate poético no Brasil, os seguintes autores: Machado de Assis, Joaquim de Sousândrade, Raul Pompeia, Cruz e Sousa e Euclides da Cunha, sem mencionarmos o caso de Qorpo-Santo, que faleceria em 1883. No entanto, a engessada e engessante historiografia literária brasileira separa cada um destes autores em movimentos estanques e sucessivos, gerando esta mentalidade porca de "rei morto, rei posto", transformando o importante trabalho da crítica em mera genealogia de hegemonias. Ou, nas palavras de Dirceu Villa, trata-se também da necessidade falsa de "reforçar o lado folclórico e típico para estabelecer o `nacional´". Assim, um momento rico em pluralidades frutíferas acaba nivelado em suas diferenças ou, muitas vezes, reduzido a uma batalha entre apenas duas "tendências", no frequente debate dualista que presenciamos no Brasil, praticado ainda hoje em São Paulo, por exemplo. Perdemos assim a riqueza em debate da poesia do fim do século XIX, perdemos as lições críticas da poesia de nossa modernidade em favor do estudo unívoco da poesia de nosso modernismo, ou, num caso mais recente, perdemos a pluralidade da poesia brasileira da década de 50, por seguirmos dando atenção às trincheiras que aqueles poetas inventaram para si, mesmo depois da morte de alguns deles. Toda nova geração de poetas deveria ignorar as trincheiras de seus predecessores e buscar em suas obras aquilo que mantém sua função em nosso contexto, com um estudo crítico de seu trabalho formal, sem necessariamente ignorar as implicações deste.
Nada há de sincrônico em criar apenas uma oposição fictícia entre dois lados, forçada por meio de dicotomias. As poéticas comunicam-se através dos séculos, das geografias e das línguas, porque herdamos estruturas com as quais aprendemos, assim como herdamos estruturas que desejamos combater. Gostaria de pensar em algumas poéticas brasileiras contemporâneas, buscando esta comunicação com poéticas de outros lugares e tempos, entendendo, no entanto, como estas funcionam hoje e em cada um de seus momentos históricos.
Publiquei aqui traduções minhas para poemas da norte-americana Harryette Mullen, nascida em 1953 no estado do Alabama. A poeta é frequentemente associada aos que gosto de chamar de "poetas-linguistas", reunidos em torno da revista L=A=N=G=U=A=G=E (1978 - 1981), entre outras. Harryette Mullen tem produzido uma poesia de grande qualidade poética, questionando aspectos da vida e cultura norte-americanas, como o racismo e machismo daquela sociedade, sem recorrer a discursos de palanque. Como sabemos, o poema opera na fronteira entre transparência e não-transparência do signo, e nos grandes poetas há a conjunção entre as funções da linguagem, já que Jakobson nos alertou que a poeticidade não oblitera necessariamente a referencialidade, a não ser em trabalhos em que se busca isso de forma específica, como na poesia fonética de Hugo Ball, no zaum de Velimir Khlébnikov e outras pesquisas da poesia sonora e visual, como a de Henri Chopin, suprimindo conscientemente o que chamaríamos de verbal, se recorremos ao conceito de verbivocovisual. Gosto muito, no entanto, de lembrar-me da passagem em que Ezra Pound discute um poema de Arnaut Daniel, descrevendo a sofisticação formal do texto, com sua incrível estrutura sonora, para então dizer "E tudo isso sem deixar de fazer sentido!".
Publiquei três traduções para poemas de Harryette Mullen na Modo de Usar & Co., mas gostaria de conversar sobre um texto específico, para então chegar a alguns poemas contemporâneos brasileiros. Trata-se de um texto do livro Muse & Drudge (1995), livro pelo qual tenho especial apreço.
[go on sister sing your song]
Harryette Mullen
go on sister sing your song
lady redbone señora rubia
took all day long
shampooing her nubia
she gets to the getting place
without or with him
must I holler when
you’re giving me rhythm
members don’t get weary
add some practice to your theory
she wants to know is it a men thing
or a him thing
wishing him luck
she gave him lemons to suck
told him please dear
improve your embouchure
O texto parece-nos muito próximo, como brasileiros, por certas pesquisas do nosso modernismo e de poetas do pós-guerra. Ele opera através de uma encenação da naturalidade do enunciado oral, recorrendo, no entanto, a artifícios poéticos e literários, como nas rimas incomuns. Verti o poema da seguinte maneira:
vamos lá mana cante a canção
(tradução de Ricardo Domeneck)
vamos lá mana cante a canção
blond miss dona rubrosa
passou a manhã toda
ensaboando seu sudão
ela chega à linha de chegada
sozinha ou consigo
hei de esgoelar enquanto
você me dá o ritmo
não se canse diretoria
dê prática à sua teoria
ela pergunta se é coisa de homem
ou coisa de pronome
desejando a ele sorte
deu-lhe os limões que chupa
disse-lhe benzinho ao cangote
melhore sua embocadura
No contexto norte-americano, por sua linguagem muitas vezes gnômica, conjugando escrita e oralidade, concisão do que jorra como enunciado lírico comprimido, mas articulado, penso em ligações possíveis a certos aspectos da poesia de Emily Dickinson e, principalmente, de Lorine Niedecker. No entanto, esta prática poética remete também, nas tradições múltiplas, aos autores medievais das fatras e fatrasies, como Watriquet Brassennel de Couvin e Jean Molinet.
Fatras
Watriquet Brassennel de Couvin
Doucement me réconforte
Celle qui mon cœur a pris.
Doucement me réconforte
Une chatte à moitié morte
Qui chante tous les jeudis
Une alléluia si forte
Que les clençhes de nos portes
Dirent que leur est lundi,
S’en fut un loup si hardi
Qu’il alla, malgré sa sorte,
Tuer Dieu en paradis,
Et dit : « Copain, je t’apporte
Celle qui mon cœur a pris. »
No contexto brasileiro, podemos pensar na poesia satírica de Gregório de Matos (1636 - 1696), mas também no trabalho fenomenal do poeta brasileiro conhecido como Sapateiro Silva, ativo no início do século XIX, que nos deixou textos brilhantes, ainda hoje negligenciados pela maior parte da historiografia literária brasileira.
Excerto de uma das glosas do Sapateiro Silva (fim do XVIII - início do XIX)
MOTE
Sábado fez quinta-feira,
Domingo fez três semanas,
Que pariu a porca um burro,
Mas com vinte e cinco mamas.
GLOSA
I
Sebo de grilo em cardume
Dizem de ser de boa medra;
Sabão mole feito em pedra
é um galante perfume.
Não é má para betume
A raiz da escorcioneira;
A galinha na popeira
Põe os ovos na malhada;
Lá na semana passada
Sábado fez quinta-feira.
II
Arroz de nabo e cominhos
Serve de emplastro à espinhela,
Pimenta, cravo, e canela,
De lambedor de carinhos.
Cantochão de Barbadinhos
Faz árias italianas;
Criam misérias humanas
Um, e dous, e argolinha;
Inda há pouco na folhinha
Domingo fez três semanas.
Podemos remeter esta poética ainda a autores alemães como Heinrich Heine em suas Lieder e o Christian Morgenstern do volume Galgenlieder (1905), assim como, principalmente, a um poeta dadaísta como Hans Arp. Vejamos um poema de Arp:
Opus Zero
Eu sou o Grão-Istoaquilo
O rigoroso regimento
O oxigenoma Sine Qua Non
O anônimo 1%
O P.P.Tit. e dito cu
Culatra sem boca e buraco
O honorável talhercúleo
Capa nova em velho cardápio
Eu sou o pífio vitalício
O Sr. Dezembro em dúzia
O colecionável Filatelo
Em verniz vinil e fúcsia
O desabrochável semigual
O honoris causa Dr. Ômega
O brancomo berço d´ouro
O paparazzível Domine
:::: Tradução minha, publicada originalmente na Modo de Usar & Co. impressa, número 1, para o poema "Opus Null": Ich bin der grosse Derdiedas / Das rigorose Regiment / Der Ozonstengel prima Qua / Der anonyme Einprozent. // Das P. P. Tit und auch die Po / Posaune ohne Mund und Loch / Das große Herkulesgeschirr / Der linke Fuß vom rechten Koch. // Ich bin der lange Lebenslang / Der zwölfte Sinn im Eierstock / Der insgesamte Augustin / Im lichten Zelluloserock. // Der aufgekappte Ohnegleich / Der garantierte Herr Herrje / Die edelweisse Wohlgeburt / Der vielgennante Domine. :::::::::
Buscando paralelos na poesia brasileira, não creio que os encontremos em modernistas como Oswald de Andrade, a não ser em "Cântico dos cânticos para flauta e violão" (1945), muito menos entre os poetas do Grupo do Mimeógrafo ou outros da década de 70, com algumas exceções, como Chacal, Isabel Câmara e os estranhos-no-ninho Zuca Sardan e Sebastião Nunes. Este trabalho fronteiriço entre a naturalidade do enunciado oral e o artifício poético surge, por exemplo, no trabalho de Gregório de Matos, mas também em Joaquim de Sousândrade, especialmente no famoso "O Inferno de Wall Street", um dos poemas importantes de nossa modernidade:
Excerto de "O Inferno de Wall Street"
Joaquim de Sousândrade
(Desconsolados agiotas e comendadores:)
- De uns arrotos do demo,
No revira se haver...
- Venha a nós papelório
Do empório,
E de Congo o saber.
(Damas da nobreza:)
- Não precisa prendê
quem tem pretos p´herdá
e escrivão p´escrevê;
Basta tê
Burra d´ouro e casá.
(Escravos açoitando de milagrosas imagens:)
Só já são senhozinhos
Netos d´imperadô:
Tudo preto tá forro;
Cachorro
Tudo branco ficou!
(GEORGE e PEDRO, liberdade-libertinagem:)
- Tendo nós cofres públicos,
Livre-se a escravidão!
Comam ratos aos gatos!
Pilatus
Disse, lavando a mão.
Entre poetas portugueses, penso em alguém como nosso contemporâneo Alberto Pimenta, ou no excelente Fernando Assis Pacheco, infelizmente já morto, mas que nos deixou bela obra em que o riso, com um comovente humor auto-depreciativo, faz-nos sorrir mas nervosos, como insinuando que o espelho é o maior sátiro:
Segundo balcão dos bombeiros
Fernando Assis Pacheco
Nesse tempo eu já lera as Brontë mas
como era um adolescente retardado
passava a noite em atrozes dilemas
que mais vale: amar, ser doutrem amado?
ainda não descobrira o simples disto
nem o essencial disto que é tão claro
se tudo no amor vem do imprevisto
deitar regras ao jogo pode sair caro
por isso eu amo e sou ou não benquisto
depende do instante bem ou mal azado
amor tem alegria, tem enfaro
o happy end é coisa dos cinemas
No pós-guerra brasileiro, encontraríamos algo desta poética em textos de Duda Machado (penso, p. ex., em "Urubu-abaixo") e também em Antônio Risério, como podemos ler neste excerto de Aviso à praça: "Bobagem. Nenhum capitalismo é selvagem. / Puta não é cadela. Nem a vida, feroz. / O homem é o homem do homem. / Todos juntos e a uma só voz. // Humana é a sala de tortura / a napalm, a navalha, a metralha no gueto / - a pele esfolada no porão. / Humana, humaníssima, a escravidão. // Humano é o arame farpado / O estripador branco, o estuprador preto / Carandiru, Somália, Khmer, Bopal / O massacre na Praça da Paz Celestial." Outro poeta que recorre fortemente a algumas destas técnicas é Paulo Leminski. Como em Harryette Mullen, há neles uma confluência entre as técnicas do literário e as práticas do improviso vocal dos poetas do jazz ou, no caso de Risério e Leminski, os poetas vocais do samba e de outras vias da música popular brasileira.
[um homem com uma dor]
Paulo Leminski
um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer vai ser minha última obra
Na poesia contemporânea deste novo século, tais técnicas comparecem em poemas de vários autores. Em Dirceu Villa podemos encontrar um belo exemplo, poeta que tem recorrido a certas técnicas que o ligam a algumas práticas de Sousândrade, entre outros, usando sua funcionalidade para o contexto contemporâneo brasileiro, em poemas como "Angst Brazileira I" ou neste texto:
Pontos-de-fuga do século XX
Dirceu Villa
Era Yeltsin
Em 1995, parecendo uma caricatura
De Russo frente às câmeras do Western
Americano, que pensava: "É nisso
Que dá o Comunismo".
O que Hobsbawn chamou
"Capitalismo de Estado": onde
Deus & Mammon dão lugar
Aos Canalhas do Partido: tudo
Em maiúsculas, ou uniforme militar.
:::: poema do livro Icterofagia (São Paulo: Hedra, 2008) ::::
Também encontramos isso nos melhores poemas do paraense Gabriel Beckman, ainda inédito em livro, como neste "Outro rosto", que publicamos no segundo número impresso da Modo de Usar & Co. (Rio de Janeiro: Berinjela, 2009):
Outro rosto
Gabriel Beckman
o de chet baker by avedon:
máscara daimônica
superfície saturada de traços
subsentidos do tipo
abyssus abyssum invocat
resumo do estrago:
trama de textos
numa fórmula-nosferatu:
palimpsesto
e se você lê o longe no perto:
rastros de céu e inferno
como se dissesse
ok mon semblabe
escolhe o rasgo
que eu solo a fábula
Poderíamos mencionar muitos exemplos, em poetas de idades e residências estaduais distintas. Pádua Fernandes, em seu livro Cinco lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008), recorre a algo disso em poemas como "o mesmo lado": "lavemos a louca / não porque ela é suja / e vive sem roupa, / se mostra na rua // e ninguém percebe / no curto vestido / onde finda a pele / e começa o fio; / a louca lavemos, / joguemos na água, / que ela tome os remos / porém não a barca". O gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves usa-o em "Oração do favelado":
Oração do favelado
Marcus Fabiano Gonçalves
pai nosso
que nos deixa ao léu
santificada seja a nossa fome
venha a nós o vosso treino
e seja feita a vossa vontade
aqui na guerra
como entre os réus
o pão nosso de cada dia
roubai hoje
e perdoai a nossa imprensa
assim como perdoamos
as migalhas que nos têm oferecido,
não nos deixeis cair na transação
mas livrai-nos do sistema penal,
amém.
:::: do livro O resmundo das calavras (Porto Alegre: WS Editor, 2005) ::::
Isso tem comparecido também em poemas de autores muito jovens, como o carioca Gregorio Duvivier:
Safo de Lesbos
Gregorio Duvivier
seu contorno noturno me transtorna
a pele morna sob a carne mansa
mais macia do que o manto-pêlo
do que o mar na coxa sua língua roxa
inverna mil calores seu biquíni
mini me maltrata mil me estorva
e turva feito burca no calor do rio
mazurca na sanfona odes negras
no baião és foda e fazes falta
nessa terra pouco firme em que você
se vivesse cantaria mpb
::::: publicado no segundo número impresso da Modo de Usar & Co. (Rio de Janeiro: Berinjela, 2009) ::::::
No entanto, poucos poetas têm feito desta prática, de forma tão clara e insistente quanto Angélica Freitas, uma de suas especialidades. Se alguns poemas de Rilke shake têm permitido aos desleitores uma aproximação questionável entre o trabalho desta e o de poetas dos mimeógrafos da década de 70, em minha opinião Angélica Freitas supera muitos deles em qualidade de escrita, em vários aspectos, como em "às vezes nos reveses", "rito de passagem" ou em seu conhecido "Rilke shake", que dá título a sua primeira coletânea. Angélica Freitas e alguns dos poetas aqui mencionados recorrem a práticas que os ligam a uma possível família poética, a sincrônica e sincrética em que poderíamos incluir Marco Valério Marcial, Watriquet Brassennel de Couvin, Heinrich Heine, Tristan Corbière, Hans Arp, Paulo Leminski e Harryette Mullen. Não são poetas interessados em "fundar escola". Exercem uma das muitas funções que poetas vêm exercendo ao longo dos milênios, entre as tantas.
rilke shake
Angélica Freitas
salta um rilke shake
com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quanto estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga
nada bate um rilke shake
no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite ou se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe
:::: do livro Rilke shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) :::::::
Isso não significa que esta poética seja a única no Brasil. Já silenciamos, por séculos, a poesia satírica de Gregório de Matos, do excelente Sapateiro Silva e o trabalho inclassificável de Qorpo-Santo. Precisamos nos livrar desta necessidade provinciana de eleger um "Poeta nacional", quando na verdade precisamos de "poetas no Brasil". Também teríamos mais prazer com a poesia e mais leitores, se percebêssemos que o trabalho poético tem muitas funções distintas e não precisa ser tão-somente órfico. Especialmente quando se trata das veleidades órficas de alguns poetas brasileiros contemporâneos, poetas que, do Hades, tudo o que conhecem parece ser um cartão postal.
--- Ricardo Domeneck.
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Recomendo este vídeo com entrevista e leitura da poeta norte-americana Harryette Mullen.
Um comentário:
ricardo, vc gosta de bob dylan? ele usa mts desses procedimentos em suas cancoes.
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