segunda-feira, 28 de abril de 2008

Poesia: entre Goulart e Collor

Ainda que as décadas de 70 e 80 sejam muitas vezes vistas como o momento de surgimento e consolidação da obra daqueles que ficaram conhecidos como poetas marginais (Ana Cristina César, Francisco Alvim, Eudoro Augusto, entre outros), além de Paulo Leminski, cuja obra oficia-se ao mesmo tempo como divisor-de-águas e aterro-de-trincheiras das oposiçoes do período, estas décadas presenciaram as estréias de poetas inescapáveis dos dias de hoje, mas que apenas nos últimos 15 anos garantiram visibilidade crítica por seu intenso trabalho editorial, tradutório e poético, como é o caso de Régis Bonvicino, Duda Machado e Júlio Castañon Guimarães, que estrearam em 1975, ano de estréia ainda de Adélia Prado. É aos poucos que o período poético brasileiro que coincide com a ditadura militar passa a mostrar-se em toda a sua complexidade. Ao final das contas pagas, entre a queda de João Goulart e a eleição de Fernando Collor, o país contempla o surgimento de poetas tão diferentes entre si quanto os citados acima, aos quais poderíamos ainda unir Leonardo Fróes, Wally Salomão, Elisabeth Veiga, Sebastião Nunes, Horácio Dídimo e Afonso Henriques Neto, além dos livros mais importantes de Roberto Piva e Orides Fontela, ou de poetas do pós-guerra imediato, como Hilda Hilst e Haroldo de Campos. A narrativa crítica que se faz da produção poética do período tende a simplificá-la em um dilema maniqueísta entre poetas ligados a um suposto formalismo dos grupos do pós-guerra e a "informalidade" dos marginais, apagando poetas em nome da coerência da narrativa e da instauração de uma hegemonia que regulamente o cânone. Isto apenas demonstra como precisamos encontrar uma maneira mais verdadeiramente estética e menos pedagógica em nossa relação com o que seguimos chamando de tradição. Ciente de que a própria lista acima acaba correndo o risco de contribuir para esta relação pouco saudável com a noção de permanência e essência poéticas, um possível gesto poderia ser o de propor a releitura de poetas sobre os quais se silencia com freqüência, sem impor uma possível mera inclusão na listagem do "seguro para o consumo".


Sem publicar um livro de poesia há quase 20 anos e concentrado em seu trabalho como crítico de arte e professor universitário, ausente portanto das querelles do momento, a obra de Ronaldo Brito tornou-se praticamente invisível. Os poemas de Ronaldo Brito, assim como os de Orides Fontela do período, praticam um minimalismo textual que, muito além de filiar-se a qualquer poética de concisão e economia, parece partir de necessidades implícitas à Weltanschauung destes poetas, em cuja obra o mundo parece querer desfazer-se em silêncio e deserto. Após estrear no final da década de 70, Ronaldo Brito publicou em 1982 o livro Asmas, que chamou a atenção de alguns críticos importantes, e teve sua última coletânea de poemas, chamada Quarta do Singular (1989) publicada pela lendária coleção Claro Enigma, da editora Duas Cidades. Como em alguns trabalhos de Duda Machado e Régis Bonvicino em seus primeiros livros, Ronaldo Brito pratica também uma fragmentação sintática e leve deslocamento do eixo de referencialidade, que se tornariam características de certa poesia do fim da década de 90, ainda que se possa argumentar que esta pesquisa de alguns poetas do fim do século tenha surgido sob a influência de poetas estrangeiros como Robert Creeley e Paul Celan.

Ronaldo Brito nasceu no Rio de Janeiro em 1949. Com um trabalho bastante conhecido e influente como crítico de arte, seu ativismo cultural iniciou-se em princípios da década de 70 no jornal Opinião. Foi um dos editores da revista Malasartes, do jornal A parte do fogo e escreveu alguns dos trabalhos mais consistentes sobre o neoconcretismo e as obras de Sergio Camargo e Eduardo Sued, entre outros. Estreou oomo poeta em 1977 com o livro O mar e a pele.


de Asmas (1982)


Fala a palavra
ignara
diz o isto
do nada
poema mudo
com critério de sono
cala a fonte
funda
o branco no papel
sem fundo
e asma, asma



§§§



A vida não
tudo menos esta
palavra mágica
o mundo talvez
a hipótese de mundo
metáfora sintoma
o texto silêncio
consente o mundo nada
a vida não
língua morta



de Quarta do Singular (1989)



Bucólicas

I

O seu lugar era o vento
os dias passava às voltas consigo
por inércia metafísica
levitando aflito
avesso ao cosmo
ao solo e à vida
ser em trânsito
intransitivo

II

Patriota do quarto
raramente me arrisco
pelo resto da casa
nômade do círculo
turista intrínseco
universal


§§§

Trinta e três

Sátiro e santo
e neutro
sóbrio e simples
abstruso
eu completo outro
mar irrisória ilha
semideus plebeu
e mula
segredo e samba
fútil
algum profundo pária
mundo
papel e dois pontos
e vírgula

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