Orides Fontela nasceu em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Mudou-se para a capital paulista para estudar filosofia e publicou seu primeiro livro, chamado Transposição, em 1969, seguido de outras quatro coletâneas de poemas, compiladas em 2006 no volume Poesia Reunida 1969 - 1996, oito anos após a morte da poeta. É costume descrever o temperamento de Orides Fontela em notas biográficas como esta, além de certa lenda que já se fixou em torno de sua biografia, para logo em seguida descartar esta mesma biografia em prol da descrição de sua poesia "enxuta", "concisa", "cristalina". Esta descrição condiz realmente com a obra da poeta, e em seus poemas a primeira pessoa do singular está consistentemente exilada de seu verbo. Mas eu gostaria de pensar em uma outra forma de conexão entre obra e vida do poeta: não estariam ligados, neste caso, a pobreza física e material de Orides Fontela e seu despojamento estilístico, o próprio desnudamento de sua poesia? Pobreza, veja bem, de uma poeta que negou o adorno e embelezamento poético até suas últimas conseqüências, e escreveu preferir, como trocas, "Um fruto por um / ácido / um sol por um / sigilo / o oceano por um / núcleo // o espaço por uma / fuga / a fuga por um / silêncio//- riquezas por uma / nudez." Fala-se de "neosimbolismo" em sua poesia, e os "símbolos" freqüentes de sua poética, com "pássaros", "espelhos" e "rios" circundando o mundo, convidam a isto. Mas alguns de seus melhores poemas demonstram sua atenção lingüística de poeta do pós-guerra, em um momento histórico que exigia de seus símbolos a consciência de serem signos, de uma poeta que compreendia nutrir sua simbologia pela linguagem, que a filtrava.
Em Orides Fontela, o símbolo se faz signo, num movimento de mão dupla, em fluxo e refluxo, como se a linguagem poética, em sua capacidade múltipla de concretude e abstração, passasse a ter marés. Se Fontela está ligada por temperamento a poetas como Cecília Meireles e, por sua vez, a Cruz e Sousa, seu simbolismo "sígnico" aproxima-a também de um poeta como Wallace Stevens, que fez da apropriação do mundo pela consciência através da linguagem o jogo poético por excelência. Poderíamos pensar também na Henriqueta Lisboa de um livro como Além da Imagem, de 1963. Mas, se em Stevens este embate e organização do mundo pela consciência é assunto humano e apenas humano, sem sombra de transcendência, Orides Fontela manteve um fio místico em sua poesia, e seus livros possuem movimentos rotatórios, sofrendo enxugamento e pousando em concretude no chão do mundo no poema de uma página, para logo em seguida abandonar-se em certo ambiente etéreo e simbolicamente carregado no poema da página seguinte. Como se a poesia de Orides Fontela não se decidisse de forma definitiva entre a destruição do mundo por uma força centrípeta ou centrífuga. Seus poemas têm, em minha opinião, apesar da superfície polida de cristal, uma violência sem muitos paralelos na poesia do pós-guerra no Brasil. O mesmo tormento possa talvez ser sentido na prosa de Hilda Hilst, mas nesta outra mística a solução era o escárnio e a exuberância do dilúvio, enquanto em Orides Fontela o desértico daquele que jamais possuiu coisa alguma era preferível. Algo deste fluxo e refluxo pode ser sentido em vários poemas. Em "São Sebastião", do livro Helianto (1973), temos a concreção centrípeta do símbolo fazendo-se signo, do verbo fazendo-se carne, do mito ganhando corpo de sangue e osso. Em "Clima", do livro Alba (1983), tal via de mão dupla da linguagem se faz presente com força, abstração centrífuga, concreção centrípeta, signo, símbolo: linguagem. É neste livro, Alba, que acredito que Orides Fontela encontrou seu ângulo de equilíbrio. O livro é um ponto luminoso na década de 80 (assim como Asmas, de Ronaldo Brito, publicado em 1982). Poeta contemporânea, poeta do pós-guerra, Orides Fontela sabia escrever poesia com símbolos herdados de uma tradição milenar, mas informados em um mundo que já tivera os escritos de Saussure, Wittgenstein, Jakobson. Orides Fontela sabia que o silêncio não provinha da falta de respostas, mas de nossa incapacidade e limitação no momento de fazer as perguntas através da linguagem, cujos limites são os limites do nosso mundo, nas palavras de Wittgenstein.
Esfinge
Não há perguntas. Selvagem
o silêncio cresce, difícil.
É tentador mitificar a mulher que viveu como viveu e escreveu estes poemas, que mais parecem cubos de energia concentrada, esperando para explodir no olho do leitor. Seus poemas, à primeira vista tão simples, singelos, exigem a concentração e atenção daquele que pode sussurrar, como no poema-exórdio do livro Alba:
A um passo
do pássaro
res
piro.
Sim, a lucidez alucina. Morta em um hospital público em 1998, sem família, indigente como uma poeta, exatos cem anos depois da morte de Cruz e Sousa e o transporte de seu corpo para o Rio de Janeiro em um trem de carga, num vagão para animais, estas duas datas (1898 - 1998) encerram, para mim, o século XX da poesia brasileira. ---
Ricardo Domeneck
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