terça-feira, 21 de abril de 2009

Movimento em prol de poetas que saibam dançar


(Foto da coreógrafa e dançarina Denise Stutz, em Ouro Preto, em 2005)

Acontece há quatro anos por aqui o festival de dança Brasil Move Berlim, no teatro Hebbel am Ufer, que já trouxe à Alemanha alguns dos melhores coreógrafos e companhias de dança do Brasil. Ontem à noite, assisti à estréia européia do trabalho "3 Solos em um Tempo", da coreógrafa mineira, radicada no Rio de janeiro, Denise Stutz, uma das fundadoras do Grupo Corpo. Trata-se do retrabalhar de três peças anteriores: "DeCor", "Absolutamente Só" e "Estudo para Impressões".

Estava na companhia de três alemães: o moço, o fotógrafo Heinz Peter Knes e a atriz Grete Gehrke, e estava muito curioso sobre a maneira como o trabalho de uma coreógrafa brasileira agiria sobre eles.

Todos nós tivemos uma experiência maravilhosa. Há tempos não presenciava alguém com tamanho poder de empatia sobre um palco. Ela nos seduziu maravilhosamente.

O trabalho estava fortemente baseado na fala, algo raro, pelo menos na maneira como ela o usou, na dança que conheço. O primeiro solo consistia basicamente da descrição dos movimentos que ela estaria fazendo. Como artista da linguagem, fiquei fascinado. Ao mesmo tempo, o trabalho era extremamente irônico, usando movimentos do balé clássico e, num segundo momento, o vocabulário já manjado da dança contemporânea, enquanto ela descrevia a nomenclatura dos movimentos. Para quem já trabalhou com dança, como fiz por dois anos em São Paulo, foi uma delícia. Ri até não poder mais. No entanto, o desnudamento a que ela estava se submetendo tornava-se cada vez mais claro, e foi apenas natural que ela terminasse o espetáculo completamente nua sobre o palco. Em seu trabalho entre linguagem e corpo, tive momentos de grande aprendizado, ontem à noite, em sua presença. Obrigado, Denise Stutz.

O trabalho tinha ainda, sobre mim, implicações est-É-ticas poderosas. Em um determinado momento, ela pede que alguém da platéia escolha onde ela deve posicionar-se no palco, em que ponto ela deveria começar sua coreografia. Ela caminha então até o ponto escolhido, dizendo:

"Porque eu, eu sempre obedeço. Eu nunca grito."

Quando ela chega ao ponto escolhido pela pessoa da platéia, ela então assume sua posição e começa a tensionar todo o seu corpo, seu rosto, assumindo a posição e musculatura tensionadas de quem estaria gritando no topo de sua voz, mas sem emitir som algum. Foi um dos momentos em que os arrepios percorreram todo o meu corpo. No final, nua sobre o palco, ela vagarosamente caminha por ele, assumindo o que pareciam ser as posições "clássicas" em que mulheres foram retratadas (por homens) ao longo dos séculos, seja em pinturas renascentistas ou revistas pornográficas. "3 Solos em um Tempo" foi uma experiência muito forte.

§

Em 2001, uni-me ao grupo de dança dirigido por Luzia Carion na Universidade de São Paulo, e por dois anos trabalhei com ela e com mulheres como Verônica Veloso, Paulina Caon e Lígia Borges sobre a técnicas coligidas pelo coreógrago mineiro Klauss Vianna. Foi um dos períodos mais marcantes sobre minha vida e meu trabalho. Mais tarde, quando já estava na Alemanha, o grupo (que se chamava Grupo de Pesquisa Obara) criou um espetáculo, usando poemas do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios. Segue sendo uma das colaborações das quais mais me alegro.

Isso me fez pensar em alguns poemas do meu primeiro livro, em que essa presença corporal é fundamental, e o tempo em que trabalhei com Luzia Carion, Verônica Veloso e Lígia Borges. Estas três mulheres tiveram um grande impacto sobre minha existência. Trabalhar com elas foi muito especial. O que aprendi com Luzia sobre o trabalho e pensamento-dança de Klauss Vianna é, sem dúvida, essencial para meu trabalho poético.

Após publicar a Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005), encontrei um poema num caderno que deveria, na verdade, ter integrado o livro, mas ficou esquecido entre rascunhos. Reescrito, ele viria a ser usado por Luzia Carion no espetáculo "Fragmentos de uma carta aos anfíbios", encenado por ela, Verônica Veloso e Paulina Caon em 2005 e 2006. Ele já foi oralizado muitas vezes por Carion, mas permanece inédito no papel. Após ver o trabalho de Denise Stutz ontem à noite, pensei no meu trabalho em dança com o Grupo Obara, no espetáculo que fizeram a partir da Carta aos anfíbios, pensei em Luzia, Verônica e Lígia, quis mostrar estes três poemas que são dedicados a elas, por terem nascido de uma experiência corporal comum nossa. Mostro aqui o inédito "Articulações" (que integrará a Carta aos anfíbios, se este algum dia for reeditado), dedicado a Luzia Carion, e os poemas "O dono do corpo" e "Chão", dedicados a Verônica Veloso e Lígia Borges, respectivamente, publicados na primeira edição do livro.

TRÊS POEMAS da Carta aos anfíbios

Articulações

.............a Luzia Carion

Talvez
seja necessário
o exílio, como quem acorda
no meio
da noite na cama
de um estranho e sente
a cabeça girar de forma
diferente, todos os músculos
atentos, dores
novas no corpo, ângulos
variegados
no pescoço: e escuta,
os arcos
dos pés mais tesos,
talvez,
e toda uma outra
estrutura estabelece-se
no corpo, bicho
de Lygia Clark de
repente
manipulado por mãos
inéditas, gerando
tensões, torsões
impensadas
em músculos esquecidos,
compensando
distribuições de equilíbrio
precário, mas presente,
e apontando para linhas
no espaço ignoradas
contudo ígneas


§

O dono do corpo

............a Verônica Veloso

entre veia e espinho
o diálogo é explícito

mesmo o cadafalso exige
da minha perna
a perfeição,
..........do meu passo
o preciso

à iminência do penhasco
...........é mais atento
o metacarpo
...........e o rosto encolhe
perante a navalha

..........a terra
não se furta a cobrir-me

nem hesitaria em esmagar
-me usando meu próprio

...................peso

........o refúgio
de ao menos uma única

relação justa
entre dois corpos

entre os pés e o solo
não há espaço para dúvidas

minha mão toca meu peito:

eu passo, então, a existir em dois
pontos, como se um rio fosse a soma
de uma superfície e duas margens?

meus ossos não são inquebráveis

e o júbilo
é um improviso
difícil



§

Chão

..............a Lígia Borges

1.

Cada cavalo
............ montado a campo
carrega em si a possível
quebra dos meus ossos;

todo touro
............ investido na arena
contém em si uma iminente
fratura do meu crânio;

mas nem

todo peixe
está sujeito
à minha isca,

tão pouca pele
alheia estremece
ao meu toque;

entre nutrição e boca
erguem-se o úmido
e o medo.

2.

Quando a terra treme,
os joelhos
............ acompanham-lhe o ritmo
ao menos um minuto.

Quanta luz os olhos exigem
à confiança
............ do avanço no escuro?
Há no passado o mínimo.

3.

Sem chão
................. e os
......... pés livres

... cautela do que
...... em asas
atenta
à direção do vento

e ouve
onde

o pouso.


Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)

§
§
§

E segue aqui o movimento que eu gostaria de fundar. Como se chama?

"Movimento em prol de poetas que saibam dançar"

2 comentários:

m. sagayama disse...

Apóio o movimento, mas não consigo contribuir. Dizem que pareço estar sempre com torcicolo.

nora disse...

Que delícia de texto. Fui contornando as palavras, recebendo as informações do outro lado, e mesmo sem estar presente no espetáculo, está aí a força dele repercutindo no texto. Posso imaginar o que não tenha sido estas posturas tensas , sem fala.
Quanto ao movimento, terá festa inaugural?
Eu amo dança. Fazia várias coreografias no meio da sala, até a adolescência. Já dancei com vassoura e rádio.
Agora estou fazendo aulas de dança contemporânea, e continuo da biodanza, qua não é dança, mas movimento pleno de sentido.
bjs

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