Pasolini, o mestre, diante do túmulo de GramsciQuando penso em minhas memórias de infância, entre as que têm alguma ligação com a poesia, há uma que se sobressai. É claro que há a lembrança dos primeiros poemas lidos, todos descobertos em manuais escolares de Literatura Brasileira, os antológicos de poetas do século XIX, como Cruz e Sousa ou Alphonsus de Guimaraens, mas principalmente os poetas da primeira metade do século XX, como Augusto dos Anjos e os modernistas Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e Murilo Mendes. Mas a memória a que me refiro é outra, algo mais presente e estranho. Eu me lembro por algum motivo esquisito, e esquisito porque eu tinha apenas 10 anos de idade, do anúncio televisivo sobre a morte de Carlos Drummond de Andrade, no dia 17 de agosto de 1987. Eu tenho esta memória-imagem (terei imaginado?) de estar sentado na frente da TV, quando o programa foi interrompido por aquela composição meio assustadora e um tanto ridiculamente frenética do Plantão do Jornal da Globo, que sempre lançava minha mãe em disparada da cozinha ou quarto para a sala, gritando "Ai, meu Deus! Quem morreu?!". Apesar de muito menino, o fato de que ele morrera doze dias após a sua filha, a cronista Maria Julieta Drummond, me deixou muito impressionado. Eu acho que o que me marcou nada tinha a ver com o fato de Drummond ser um poeta... eu tinha apenas dez anos, não me lembro se eu sequer sabia o que era um poeta. O que me impressionou naquele momento foi o fato de que ele morrera doze dias depois da filha, o fato de que ele morrera de tristeza, do que me pareceu de desespero. Creio que minha mãe disse algo assim na sala, algo como "Coitado, morreu de tristeza, de desespero". A ideia de que alguém podia morrer de tristeza (e eu acredito que Drummond morreu realmente de tristeza) me impressionou muito como criança.
Muitos anos depois, escrevendo os poemas do meu primeiro livro,
Carta aos anfíbios, publicado em 2005, isto me voltou à mente enquanto escrevia talvez o poema mais seco do livro, o texto que o encerra, chamado "Lembrete". Creio que já o comentei aqui. Em seu artigo sobre o livro, o poeta Pádua Fernandes comentou este poema, num
ensaio muito generoso, ainda que cheio de discordâncias, em que, curiosamente, mencionava que os versos sobre Drummond lhe pareciam o único momento em que o poema resvalava no sentimentalismo. Enquanto a morte dos outros poetas era apresentada de forma extremamente seca e crua, a de Drummond, talvez enraizada em minha "emocionalidade de criança", deixava vir pela fresta a comoção (sentimental?).
LembreteCruz e Sousa
em vagões de
transporte
de gado.
Paul Celan
nas águas
do Sena.
Frank O’Hara
estirado n’areia.
Christine Lavant
crivada de camas
............e escamas.
Alejandra Pizarnik,
intolerância
a secobarbital.
Carlos Drummond de Andrade,
em meio à maior perda na vida,
doze dias após a filha.
Pier Paolo
a pau e pedra.
João Cabral de Melo Neto
...................................cego.
Orides Fontela
à beira da indigência.(
Carta aos anfíbios, 2005)

Este poeminha, que acho que passa bem despercebido no livro, tem na verdade uma importância muito grande para mim. Já escrevi aqui sobre o fato de que busquei trabalhar, durante a escrita do livro
Carta aos anfíbios, com a noção de
figura, que sempre tento explicar, em ensaios ou entrevistas, com esta definição pessoal:
figura como conceito da teologia cristã,
FIGURA,
em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento que revelaria seus significados, ligado à ideia de
parúsia. Isso é central para a composição (e compreensão) do meu trabalho, ligado ainda ao meu uso da metonímia, em especial a sinédoque, evitando a metáfora. É muito difícil conversar sobre isso sem cair em auto-exegeses, o que é sempre ridículo. Se comento isso aqui, é no espírito de conversa e debate com meus colegas-poetas e com meus colegas-leitores. Pois isso também explicita as discordâncias que tenho com algumas poéticas contemporâneas, por vezes hipermetafóricas em minha leitura pessoal. Mas isso seria apenas uma birra contra a metáfora? De maneira nenhuma. É simplesmente uma leitura pessoal, fincada em uma poética que não busca abstrair a historicidade do fazer poético, mas a ler, usá-la.
É como se a metáfora, que no mundo arcaico estava baseada fortemente na fé na ligação cósmica entre todas as coisas do Universo, passasse a perder sua eficiência por não encontrar mais nos leitores esta base e crença religiosa e mística. Eu acreditava que, equilibrando a metáfora com a sinédoque ou a metonímia em geral, talvez fosse possível seguir de maneira mais eficiente com o trabalho contemporâneo, já que muitas poéticas do passado buscaram este equilíbrio. Há ainda aí a crença de que as manifestações divinas estão às claras no mundo, nos próprios acontecimentos históricos, como o Velho Testamento
prefigura o Novo. Se para isso eu tinha que recorrer mesmo à tautologia, buscando uma
poética de implicações, que assim fosse.
É difícil falar sobre isso sem se tornar um candidato sério, aos olhos de muitos aqui, ao ingresso em um manicômio, mas durante a escrita do
Carta aos anfíbios eu acreditava que era possível, se estivéssemos atentos para o ranger da roldanas da História, eu acreditava que era possível ouvir a Máquina do Mundo. Que talvez fosse possível, com esta música quase inaudível sob os barulhos do século, barulhos que eram ao mesmo tempo a própria música que escondiam, que fosse possível até mesmo prever o futuro. Eu acredito até hoje que é isso o que Orides Fontela chamava de "a lucidez que alucina", ou o que ela descreveu tão maravilhosamente bem nos versos:
A um passo
do pássaro
res
piro.É por isso que durante aqueles anos eu evitava quase por completo o uso de neologismos ou palavras-valise, e preferia usar palavras "pobres", fossem concretas ou abstratas aos olhos dos cabralinos-noigandristas (esta separação ainda me espanta), concentrando-me na sintaxe, "relação entre as coisas", mais que em sua suposta "concretude" ou "objetividade". Pois essa noção de objetividade, em minha opinião, era de qualquer maneira minada pela
relação entre estas tais objetividades, no contexto. Não estou dizendo nada de novo: isso é Wittgenstein da juba às patas, quando ele afirma, por exemplo, que "o significado de uma palavra é seu uso na língua". Eu acreditava que as manifestações e possíveis revelações estavam aos olhos de todos, não era necessário buscar "o indizível". Essa história de poeta "que busca dizer o indizível" sempre me cheirou a charlatanismo.
Talvez seja loucura maior o que eu buscava, já que eu acreditava, naquela época, que uma rima não era apenas uma ferramenta de embelezamento do poema. Eu acreditava que rimas flagravam as ligações cósmicas entre as coisas. Eu acreditava que a língua escondia, em suas malhas, revelações que não precisavam sequer das metáforas. Elas estavam já nas rimas que a língua nos provê, assim como a sintaxe era nosso momento humano de construção da realidade. Para mim era algo assustador poder rimar
Celan com
Sena,
João Cabral de Melo Neto com
cego, ecoar com assonâncias e aliterações em "à beira da indigência" o nome de Orides Fontela, ou, com "pau e pedra", o nome de Pier Paolo Pasolini.
Voltando ao poema, é acima de tudo um lembrete a mim mesmo, algo que diz:
Se estes, que eram infinitamente melhores que você, morreram como morreram, você espera fim melhor por quê?Trata-se de uma vigilância como, por exemplo, a que Miguel de Unamuno preconizava em seu
Do Sentimento Trágico da Vida (1933), um dos livros que, ao lado talvez das
Investigações Filosóficas (1951) de Wittgenstein, mais marcaram minha vida (recomendo muito a vocês a leitura dos dois), lembrando-nos que somos o pó do pó do pó do pó do pó.
(continua)
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