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sexta-feira, 12 de abril de 2019

Sobre o Parque da Redenção em Porto Alegre e uma tela de Iberê Camargo


Iberê Camargo - ‘Ciclistas’ (1989)


Não conheço Porto Alegre. As imagens que sempre tive de lá estão ligadas a três artistas brasileiros do século XX: o romancista Erico Verissimo (1905–1975), o poeta Mario Quintana (1906–1994) e o pintor Iberê Camargo (1914–1994). Dialogo e acompanho o trabalho de alguns gaúchos contemporâneos, muito diferentes entre si, como Veronica Stigger, Angélica Freitas, Fabiana Faleiros, Melissa Dullius, Eduardo Sterzi, Marcus Fabiano Gonçalves, Gustavo Jahn... mas deixaram todos eles os pampas e os capitães-rodrigos pelos frangalhos da Mata Atlântica e os sargentos-de-milícias. Eu os imagino agora, bebericando aquele horror de amargura intolerável que é o chimarrão. Uma parte de mim nunca conseguirá confiar completamente neles por realmente GOSTAR daquilo.

Enfim, isso tudo apenas para dizer o seguinte. Em 1999 houve uma retrospectiva de Iberê Camargo na Pinacoteca de São Paulo. Aquele ano foi muito marcante para minha formação em termos de arte visual: além desta, fui muito impactado então pela retrospectiva de Lygia Clark no Museu de Arte Moderna de São Paulo, de Samson Flexor na FIESP, além de grandes exposições de Arthur Bispo do Rosário e José Leonilson já não me lembro onde.

Eu caminhei pelas salas com quadros de Iberê Camargo em transe. E uma série de telas me trouxe lágrimas aos olhos, nunca me esqueci. Eram os seus “Ciclistas”. Uma delas tinha um título que era um poema em si, ‘Ciclistas no Parque da Redenção’. Aquilo era uma metáfora maravilhosa da vida, da existência de tudo! Éramos todos isso: Ciclistas no Parque da Redenção. Eu jurava que era uma metáfora. A metáfora que eu jurava ser metáfora (e é) acabou entrando num poema que dediquei a meu velho amigo e concidadão de república estudantil, Pablo Gonçalo, no meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005).

Pois esta manhã eu quase caio da cadeira em conversa com Melissa Dullius quando ela menciona o Parque da Redenção... que existe. Os ciclistas no Parque da Redenção eram ciclistas mesmo, no mui físico e localizável Parque da Redenção. Mas fazer o quê? No Brasil pode-se até pegar um ônibus da Consolação ao Paraíso.

A pêndulo, a represa

      “onde o sino triparte o maior desespero
                     ao som tríplice do teu nome.”
                                 — Christine Lavant

                        a Pablo Gonçalo

Entre o
anúncio do dilúvio e o
deserto vermelho,
nosso tempo e nosso peito;

entre o
temor e o terror,
o corredor estreito,
mas nossos pés são pequenos

“once human always an acrobat”

o fardo leve
e o jugo suave
dos ciclistas no parque da redenção:

a oeste do meio-dia
existir segue denotando
e pressupondo movimento

e o descanso é eterno
e condicional.

— Ricardo Domeneck, in Carta aos anfíbios (2005).


Vista aérea do Parque da Redenção em Porto Alegre, oficialmente Parque Farroupilha.

§

Notas:

1- “once human always an acrobat” é uma citação de Rosmarie Waldrop.
2- Leia o poema completo da austríaca Christine Lavant, do qual extraí a epígrafe,
na Modo de Usar & Co.

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terça-feira, 16 de outubro de 2012

"Barro: o abraço / primordial já / previa o anfíbio"


Barro: o abraço / primordial já / previa o anfíbio


      “Und dies ist ihre Verbindung mit der Welt”
                                 Ludwig Wittgenstein

mesmo que um pássaro
             aponte o centro
ou uma pedra
                      seja pedra e sinal

a densidade em quaisquer hierofanias
                                      jamais excede
a que meu corpo apresenta
imerso na banheira,
água, carne: praia

e a troca de calor é explícita.

se o concreto evola-se em conceito
e eu vejo
o corpo do mito
feito carne
(de novo)

neste fluxo e refluxo
respira o mundo.

*

de encontro à pele,
a temperatura
aumenta, a febre
acelera-me o pulso,

o rosto incha,
o corpo ilha-se

numa cama
encharcada,

mar que retorna
das origens a um corpo

em júbilo
similar à cicatrização de um corte;

luxações aumentam-me a posse
e presença no mundo,

mas não a brecha entre pele e pouso;

nada é invisível
além do que reside
em minha memória,

e eu sei que não há quem profetize
                                      a sua volta.

*

minha coluna, uma torre de inclinações
                                               contínuas,
a garganta sobrevive ilesa
às inflamações
                         periódicas.

durmo e sonho o prometido
corpo incorruptível;

acordo com dores nos músculos.

*

estes brincos necessários perfuram e pendem,
servem de prova de consistência; úmidos,
os pés tateiam, ajeitam-se,

calcam mais fortes
no concreto
a sua crença de apoio

(o mundo responde-lhes
                 com tremores)

o sangue escorrendo
das narinas no momento
do aperto de mão do estranho,
(toda apresentação
deveria consistir numa troca
                          de secreções)
expondo ambos

                            à recusa

herdada, esquecida, prenhe.

*

os joelhos falham, dobram-se,
saliva e sangue às vezes unem-se,
desaguam na boca,

cabelos engastam-se nas unhas
do mesmo e próprio dono.

(braços exaustos tremem com um copo)

          denso,

denso.

algo mais que mão externa
consterna-me o diafragma.

enquanto alguns

                               flertam

com pedras

                    e o

         silêncio



Ricardo Domeneck, Carta aos anfíbios (2005).

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terça-feira, 14 de agosto de 2012

Arquivo da edição revista do meu primeiro livro, "Carta aos anfíbios" (2005), para download gratuito



Como prometido há algumas semanas, segue o link para download da edição revista do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (2005). Nova diagramação: Marília Garcia. Foto da capa: Heinz Peter Knes. Segue meu apoio ao Livros de Humanas. 

Esta é a nota que se encontra ao fim do volume: 

NOTA DO AUTOR 

Carta aos anfíbios foi publicado originalmente em 2005, pela editora carioca Bem-Te-Vi, meu livro de estreia. Nesta reedição, corrigi e revisei alguns dos poemas, incluindo ainda, ao volume, o inédito “Articulações”, que ficara esquecido em um manuscrito à época em que preparava o livro. Meu agradecimento e respeito à poeta e crítica de arte Lélia Coelho Frota (in memoriam), minha primeira editora, pela generosidade com que sempre tratou meu trabalho. Agradeço ainda a Marília Garcia pela bela diagramação nova do volume, e a Heinz Peter Knes pela linda foto de capa. Que sejamos leves sobre a terra e, mais tarde, leve a terra sobre nós. 

 Ricardo Domeneck, 21 de junho de 2012. 

Dramático, como sempre.

Por fim, quem segue meu trabalho sabe que sou dos imponderados e imprudentes que enxertam, não extirpam.




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quinta-feira, 12 de julho de 2012

Nova capa para "Carta aos anfíbios" (2005)

Como prometi aqui ao tornar meu livro Cigarros na cama (2011) disponível para download gratuito, estou rediagramando com Marília Garcia meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (2005). Alguns poucos poemas foram reescritos e incluí um inédito que havia ficado perdido numa gaveta à época em que o preparei para publicação. O link virá em breve. Por ora, deixo vocês com a linda capa nova, feita por Marília Garcia sobre foto de Heinz Peter Knes. 




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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Dois poemas da Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)

Ricardo Domeneck, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)



O pão partido

Houvesse um telefonema,
haveria uma voz; eu
emagreço, que prazer
ajustar-se melhor
aos ossos. Levitar
até o teto; basta mover-se
na direção certa
para viver de inverno
em inverno. Meu corpo
seu estrado, o colchão
a falta, em concha
peito e costas
aconchegam-se
em útero: e a falta
redobrada.
O cordão umbilical uma
ausência explícita, que
digestão suporta
uma hóstia?
A boca abre-se à
expectativa,
saliva
produzida nas glândulas
da anunciação.
Pão partido, corpo prurido
every single time.
Mas separam-nos
o jejum e as
orações de minha mãe,
a possibilidade
de um oceano
e seu condiloma
imaginado.
É 1654 e cavalos
(oito) tentam separar
as duas metades de
uma esfera unidas
pelo vácuo; em apenas
dois por cento das caças
um urso polar
tem sucesso mas
seu pêlo é branco! e oco
para conduzir melhor o sol;
brilhar e desaparecer:
camuflagem perfeita e o único
predador a fome.
A hóstia sempre
um prelúdio,
não uma rememoração.


Ricardo Domeneck, Carta aos anfíbios (2005).


§


Separatismo

Seu olho fisga-me dentre
os outros repuxa a pele
e reabre o corte faz-me
acreditar num anzol
dedicado
à minha boca enquanto a
expectativa infecciona
sob minha língua repetindo é hoje
é hoje e eu não
queria voltar a existir
como se à entrada
de uma estação de
metrô tocando xilofone
para os transeuntes à espera
da moeda a certa a desejada você
cantarola Crush
with eyeliner
ele
caminha até o som Too drunk
to fuck
soa
no quarto poemas não
o impressionam inútil
citar aquela poetisa
polonesa de que você gosta
tanto discorrer sobre a palavra yes
nos poemas
de e.e. cummings narrar
a morte estúpida
de Ingeborg Bachmann aduzir
como ele adoraria Yehuda
Amichai ou chiar améns não ele
folheia panfletos
anarquistas mimeografados
textos de escritores
judeus cheios de sarcasmo e ri
sozinho na cama você
se olha no espelho e sabe
de antemão que não
adianta tentar
um moicano você nasceu
para usar
óculos sua visão perfeita
20/20 sempre
foi na verdade um insulto mas como
é bom ouvi-lo sobre a infância
na Berlim dividida os pais
anarquistas o erro
a reunificação (der Anschluss
como ele diz) as dificuldades
de ser possuído por pai
alemão e mãe
judia passar o sábado
todo assistindo-
o vê-lo observar o sábado pedir pelo
que é kosher sim querido começa
em alguns dias a Chanukka
quando em um cerco inimigo
ao templo o óleo
suficiente para apenas um dia queimou
durante oito a perseverança do óleo me
cai bem


Ricardo Domeneck, Carta aos anfíbios (2005).


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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

"O Prisma das Muitas Cores: Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira" (Fafe: Labirinto, 2010)



Recebi esta semana meu exemplar da antologia portuguesa O Prisma das Muitas Cores: Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira (Fafe: Labirinto, 2010), com organização do poeta português Victor Oliveira Mateus. São muitos poetas (apenas os vivos) dos dois lados do Atlântico lusófono, de várias gerações, comparecendo com um poema cada. Entre os portugueses, vale mencionar a presença de Ana Hatherly, Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral, António Ramos Rosa, Luís Filipe Cristóvão, Casimiro de Brito, E.M. de Melo e Castro, Maria Teresa Horta e valter hugo mãe; entre os brasileiros, poetas de gerações e poéticas tão diferentes quanto Dirceu Villa, Antonio Cicero, Olga Savary, Donizete Galvão, Ivan Junqueira, Renata Pallotini ou Ruy Espinheira Filho. É bastante eclética, o que sempre traz suas vantagens e seus problemas, mas descobri nela alguns poetas que não conhecia, reli outros que haviam despencado da esfera da minha atenção, pude pensar em alguns que são espécies de fantasmas na poesia contemporânea, poetas mais velhos ou poetas líricos que estrearam na década de 50 e acabaram obscurecidos pela atenção muitas vezes exclusiva dada aos poetas de vanguarda daquela década. É o caso, por exemplo, de Pallotini, que tem poemas muito bonitos, em uma linhagem por vezes de lírica pura, algo similar à de Hilda Hilst poeta, ou de Marly de Oliveira. Victor Oliveira Mateus selecionou para a antologia um poema do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005), que é um dos meus favoritos, chamado "O pão partido" e que reproduzo abaixo.


O pão partido

Houvesse um telefonema,
haveria uma voz; eu
emagreço, que prazer
ajustar-se melhor
aos ossos. Levitar
até o teto; basta mover-se
na direção certa
para viver de inverno
em inverno. Meu corpo
seu estrado, o colchão
a falta, em concha
peito e costas
aconchegam-se
em útero: e a falta
redobrada.
O cordão umbilical uma
ausência explícita, que
digestão suporta
uma hóstia?
A boca abre-se à
expectativa,
saliva
produzida nas glândulas
da anunciação.
Pão partido, corpo prurido
every single time.
Mas separam-nos
o jejum e as
orações de minha mãe,
a possibilidade
de um oceano
e seu condiloma
imaginado.
É 1654 e cavalos
(oito) tentam separar
as duas metades de
uma esfera unidas
pelo vácuo; em apenas
dois por cento das caças
um urso polar
tem sucesso mas
seu pêlo é branco! e oco
para conduzir melhor o sol;
brilhar e desaparecer:
camuflagem perfeita e o único
predador a fome.
A hóstia sempre
um prelúdio,
não uma rememoração.


Ricardo Domeneck, Carta aos anfíbios (2005).

§

QUATRO OUTROS POEMAS DA ANTOLOGIA


Lyra aragonesa: refram de abril
Dirceu Villa

"Pero mi fez e faz Amor mal"
Martim Moya

Não amor não pode
mal fazer
nenhum;
ou torna o senhor escravo,
escolhe em mil a mais
gentil
e colhe a dor do cravo
no amargo
mês de abril?

[Se então tal mal me vem
eu, sábio,
o torno logo em bem:
tolice é ter em sol tão certo
deserto só
& desolação;
e se esse é o preço
que pago,
bem pouco parece:
um pequeno estrago
no brio
que bem o merece.]

Pois tal fervor demove o frio,
e traz ardor à alma;
e então a flecha erra
a calma
e põe o peito em guerra:
torna o senhor
escravo,
o gentil prazer des
terra,
o estio já desfalece,
é um pássaro sem
pio
no amargo mês
de abril.

§


Carta de Amor Informático
Ana Hatherly

Penetraste no meu coração
Como um vírus no meu processador

Vindo de lado nenhum
Ofereces-me agora
O vazio da não opção

Estragaste-me o real
Obrigaste-me a reinventá-lo:
Para quê?

Agora estás
No meu cemitério de textos
Já não te posso reencaminhar

Arquivei-te no lixo da memória
Do meu Pentium IV
Que aliás já vendi

Troquei-o por um lap top*
Mais leve
Mais portátil
Mais facilmente descartável


§

Venha a nós o vosso reino
Olga Savary

Cheios de imagens os olhos
e de silêncio os ouvidos.
Palavras: quase nada.

A cor do barro primitivo em tua pele,
terra-mãe, vinho de frutos, fogo, água,
em ti se nasce e em ti se morre.

Vais me recolhendo e recompondo
no labirinto-búzio-alto-das-coxas,
presságio de submerso jardim,

um ideal jardim em que me apresso
e tardo retardar a troca das marés
quando para ti me evado.

O que é amor senão a fome rara,
o susto no coração exposto
que com a chama ou a água devora,

é devorada, que desdenha a mente
por uma outra fome, vago pasto
água igual a fogo, fogo como lava?

Amor foi uma volta inteira de relógio mais 7 horas.
Amor: chega de gastar teu nome:
agora arde.


§


Emotional Turn
Hugo Milhanas Machado

"Ir en busca de lenguaje y regresar sin nada"
Julia Otxoa


O nosso embalo vem à direita da letra
e já vem tempo que parece ser fatal
o que no fim do dia arrepende
Temos uma toada emocional, embora fria
Disputamo-las nas pequenas imagens
truques travas e toques
de potentes linguagens que algum dia
até são nossas, e logo se nos espraiam
mas mesmo, reparo Praia e praia
Eu aqui só digo praia
Temos uma toada emocional, tão fria
como o favorito do Pessoa, e isso sim
o amor todo dobrado
também uma grande galeria
de coisas que ainda fazem chorar
como na escola as festas de fim de ano
com grupos de língua inglesa e
tremendamente enamorados
já ninguém diz

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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

"A sensação de ser transcontextualizado", ou "Quando Clarice Lispector traduz-se Christa Wolf"

Já escrevi inúmeros artigos neste espaço sobre o porquê de minha obsessão com o papel do contexto naquele processo chamado de charging language with meaning to its utmost degree, assim como minha ladainha meditante incansável sobre a necessidade de respeitarmos a inescapável historicidade do fazer poético. Volto a isso com uma frequência exasperante para muitos, seja em poemas, vídeos, ensaios. Não o farei hoje. O preâmbulo está aqui apenas para introduzir uma espécie de "coincidência".

A alemã Birgit Aka, doutoranda em Literatura Brasileira na Universidade de Passau, enviou-me por email na semana passada sua tradução para o alemão do meu poema "Conversa com duas estranhas", publicado no meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005). Fiquei surpreso e contente ao ler a tradução e perceber que ela havia seguido a ideia de contextualizar o poema, mais do que simplesmente traduzí-lo. O texto tem por ocasião uma experiência pessoal minha, um acontecimento verídico (coisa de filme televisivo talvez) do ano 2000, quando retirei na Biblioteca de Munique um exemplar do livro Perto do Coração Selvagem (1943) de Clarice Lispector, no qual encontrei pequenas anotações de uma estranha, anotações que me deixaram fascinado e ligeiramente obcecado. O poema é um resultado deste susto, desta tentativa de conexão quase mística ou telepático-psicótica com aquela estranha. Eu me sentia como que sugado para dentro de um conto da própria Clarice Lispector, com um certo pendor detetivesco que por sua vez me fazia sentir num conto de Julio Cortázar. Esta história é uma das minhas experiências míticas pessoais, tenho certeza que voltarei a ela um dia. Ela renderia mais poemas, um conto, quem sabe até um romance.

O poema relata de forma bastante plana e direta o acontecimento. Ele é a ocasião de sua ocasião. Surgiu primeiro em prosa, e depois, por seu caráter oral, fiz meu velho jogo de cortes de linhas para embaralhar a sintaxe. Seu prosaísmo seco, pelo menos naquela época, parecia-me a única maneira de fazer justiça à sensação estranhíssima que eu sentia ao acompanhar o romance de Lispector e ao mesmo tempo as anotações misteriosas da estranha. Não havia o que poetizar. É também um dos meus textos mais antigos, entre os que publiquei. Eu o escrevi no ano 2000.


Conversa com duas estranhas

prestes
a deixar o país retirei
na Biblioteca Municipal
de Munique Alemanha
o livro "
Perto do Coração
Selvagem
" de Clarice
Lispector
numa edição
brasileira
de 1984
em que encontrei pequenas
anotações em alemão a lápis
nos cantos de algumas
páginas numa caligrafia
que julguei feminina
delicada
algumas apenas traduções
para o alemão de palavras
que ela não entendia
como no alto
à página 34
em que ela não
conhecia a palavra “vergada”
e anotou sua tradução
para sua língua alguns pontos
de interrogação períodos
inteiros e vários “É ISTO!”
e “É
ISTO!” ou “ELA
ENTENDEU!”
todas em alemão
estou traduzindo
muitos pontos de exclamação
um “COMPREENSÍVEL”
é estranho
que as anotações cessam
de repente e só
voltam na página
168 um “ÓDIO” anotado
na página 201 às margens do
trecho “É verdade
que o silêncio entre eles
fora assim mais perfeito”
quando na página
202 as anotações explodem
em pontos
de exclamação interrogação
números 1-2-3 que não
compreendo
escrita ilegível
nervosa a última à página
203 diz “História da
Humanidade” precedida
pelos números 1-1-2-3-4-1
quando na página
seguinte já sem
anotações da
estranha Clarice Lispector
escreveu “... desde
que ela era mulher... A morte...
E de súbito a morte
era a cessação apenas... Não!
gritou-se assustada, não
a morte.”


Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)

Não sei se fui capaz de fazer jus àquela ocasião poética. Certamente voltarei a esta história em meio à minha História algum dia.

Isso foi há dez anos. Talvez esteja na hora de voltar a Munique e procurar aquele livro.

Em 2006 publiquei na revista Germina um ensaio intitulado "Tradução, contexto e migrações possíveis", no qual discuto a possibilidade de que uma só teoria de tradução não possa dar conta das múltiplas relações poéticas com a historicidade. No ensaio, proponho a possibilidade de que alguns poemas estejam tão ligados a seus contextos, que a única maneira de os traduzir não pode levar em conta apenas semântica, métrica, ritmo, mas também o contexto em que foi escrito, buscando uma espécie de transcontextualização (como a chamei no ensaio), ou quem sabe uma simples contextualização. No segundo número impresso da Modo de Usar & Co., o poeta Fabiano Calixto deu-nos alguns exemplos incríveis desta possibilidade tradutória com suas transcontextualizações para poemas de Allen Ginsberg.

Sem termos conversado a respeito, sem que Birgit Aka conhecesse meu ensaio ou soubesse destas minhas obsessões, ela escolheu contextualizar este meu poema para um leitor alemão, traduzindo Clarice Lispector por Christa Wolf, a importante escritora da antiga Alemanha Oriental, e usando seu romance Medea: Stimmen (1996) no lugar de Perto do Coração Selvagem. Da mesma maneira, quando menciono Munique em meu poema, ela menciona São Paulo, já que ela própria fora estudante estrangeira no Brasil, como eu era estudante estrangeiro aqui na Alemanha naquele ano 2000.

Voltando ao velho adágio traduttore, traditore, eu diria o seguinte: prefiro ser traído a ser exotizado. Deixo vocês com a contextualização de Birgit Aka.




Gespräch mit zwei Fremden

bereit
das Land zu verlassen entlieh
ich in der Bibliothek der Universität
São Paulo Brasilien das
Buch Medea.
Stimmen
von Christa
Wolf eine deutsche
Ausgabe aus dem Jahr 2010 das
Buch in Deutsch in
dem ich kleine Bleistift-
notizen in Portugiesisch in
den Ecken einiger Seiten
entdeckte in einer
delikaten
femininen Schrift
einige sind lediglich Übersetzungen
ins Portugiesische von Wörtern
die sie nicht verstand wie
auf Seite 32 weit
oben, wo sie das Wort
„Augenblicksschwäche“ nicht verstand
und ihre
Übersetzung ins Deutsche
notierte
manche Fragezeichen
ganze Abschnitte einige „SO IST ES“
und „SO
IST ES“ ein anderes „SIE BEGREIFT‘S“
alle in Portugiesisch ich übersetze
viele Ausrufezeichen ein
„VERSTÄNDLICH“ es ist seltsam dass
die Notizen plötzlich aufhören
und erst
auf Seite 139 wieder einsetzen
ein „ARSCH“ notiert auf
Seite 160 neben dem
Abschnitt „Sie hat
es mir vorausgesagt.
Nicht auftrumpfend, nein,
eher traurig, oder mitleidig,
was unverschämt war. Sie hatte sich ja
selbst jedes Mitgefühl verscherzt. Das
sagte man mir im Rat, als ich versuchte,
für sie
um Milde zu bitten, wobei ich
nicht versäumte,
die Schwere ihrer Vergehen zu
betonen, sie hätten mich sonst
in der Luft zerrissen.“
auf Seite 167 explodieren
die Notizen in Ausrufe-
zeichen Fragezeichen
Nummerierungen 1-2-3 die ich
nicht verstehe unleserliche
Schrift nervös
die letzte ist auf Seite
173 und lautet „Geschichte der
Menschheit“ angekündigt durch die
Nummern 1-2-3-4-1
sechs Seiten später ohne
Notizen der Fremden
schrieb Christa Wolf: „Und wie?
fragt der Bursche mit Verschwörermiene.
Gesteinigt! brüllen viele.
Wie sie es verdienten. Die
Sonne geht auf. Wie die Türme
meiner Stadt im Morgenglanze
schimmern.“


(tradução de Birgit Aka)

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sexta-feira, 25 de junho de 2010

COMO MORREM OS POETAS: Primeira parte: "Por que eu tento fazer com sinédoques o que se deveria fazer com metáforas"

Pasolini, o mestre, diante do túmulo de Gramsci


Quando penso em minhas memórias de infância, entre as que têm alguma ligação com a poesia, há uma que se sobressai. É claro que há a lembrança dos primeiros poemas lidos, todos descobertos em manuais escolares de Literatura Brasileira, os antológicos de poetas do século XIX, como Cruz e Sousa ou Alphonsus de Guimaraens, mas principalmente os poetas da primeira metade do século XX, como Augusto dos Anjos e os modernistas Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e Murilo Mendes. Mas a memória a que me refiro é outra, algo mais presente e estranho. Eu me lembro por algum motivo esquisito, e esquisito porque eu tinha apenas 10 anos de idade, do anúncio televisivo sobre a morte de Carlos Drummond de Andrade, no dia 17 de agosto de 1987. Eu tenho esta memória-imagem (terei imaginado?) de estar sentado na frente da TV, quando o programa foi interrompido por aquela composição meio assustadora e um tanto ridiculamente frenética do Plantão do Jornal da Globo, que sempre lançava minha mãe em disparada da cozinha ou quarto para a sala, gritando "Ai, meu Deus! Quem morreu?!". Apesar de muito menino, o fato de que ele morrera doze dias após a sua filha, a cronista Maria Julieta Drummond, me deixou muito impressionado. Eu acho que o que me marcou nada tinha a ver com o fato de Drummond ser um poeta... eu tinha apenas dez anos, não me lembro se eu sequer sabia o que era um poeta. O que me impressionou naquele momento foi o fato de que ele morrera doze dias depois da filha, o fato de que ele morrera de tristeza, do que me pareceu de desespero. Creio que minha mãe disse algo assim na sala, algo como "Coitado, morreu de tristeza, de desespero". A ideia de que alguém podia morrer de tristeza (e eu acredito que Drummond morreu realmente de tristeza) me impressionou muito como criança.

Muitos anos depois, escrevendo os poemas do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios, publicado em 2005, isto me voltou à mente enquanto escrevia talvez o poema mais seco do livro, o texto que o encerra, chamado "Lembrete". Creio que já o comentei aqui. Em seu artigo sobre o livro, o poeta Pádua Fernandes comentou este poema, num ensaio muito generoso, ainda que cheio de discordâncias, em que, curiosamente, mencionava que os versos sobre Drummond lhe pareciam o único momento em que o poema resvalava no sentimentalismo. Enquanto a morte dos outros poetas era apresentada de forma extremamente seca e crua, a de Drummond, talvez enraizada em minha "emocionalidade de criança", deixava vir pela fresta a comoção (sentimental?).

Lembrete

Cruz e Sousa
em vagões de
transporte
de gado.

Paul Celan
nas águas
do Sena.

Frank O’Hara
estirado n’areia.

Christine Lavant
crivada de camas
............e escamas.

Alejandra Pizarnik,
intolerância
a secobarbital.

Carlos Drummond de Andrade,
em meio à maior perda na vida,
doze dias após a filha.

Pier Paolo
a pau e pedra.

João Cabral de Melo Neto
...................................cego.

Orides Fontela
à beira da indigência.


(Carta aos anfíbios, 2005)


Este poeminha, que acho que passa bem despercebido no livro, tem na verdade uma importância muito grande para mim. Já escrevi aqui sobre o fato de que busquei trabalhar, durante a escrita do livro Carta aos anfíbios, com a noção de figura, que sempre tento explicar, em ensaios ou entrevistas, com esta definição pessoal: figura como conceito da teologia cristã, FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento que revelaria seus significados, ligado à ideia de parúsia. Isso é central para a composição (e compreensão) do meu trabalho, ligado ainda ao meu uso da metonímia, em especial a sinédoque, evitando a metáfora. É muito difícil conversar sobre isso sem cair em auto-exegeses, o que é sempre ridículo. Se comento isso aqui, é no espírito de conversa e debate com meus colegas-poetas e com meus colegas-leitores. Pois isso também explicita as discordâncias que tenho com algumas poéticas contemporâneas, por vezes hipermetafóricas em minha leitura pessoal. Mas isso seria apenas uma birra contra a metáfora? De maneira nenhuma. É simplesmente uma leitura pessoal, fincada em uma poética que não busca abstrair a historicidade do fazer poético, mas a ler, usá-la.

É como se a metáfora, que no mundo arcaico estava baseada fortemente na fé na ligação cósmica entre todas as coisas do Universo, passasse a perder sua eficiência por não encontrar mais nos leitores esta base e crença religiosa e mística. Eu acreditava que, equilibrando a metáfora com a sinédoque ou a metonímia em geral, talvez fosse possível seguir de maneira mais eficiente com o trabalho contemporâneo, já que muitas poéticas do passado buscaram este equilíbrio. Há ainda aí a crença de que as manifestações divinas estão às claras no mundo, nos próprios acontecimentos históricos, como o Velho Testamento prefigura o Novo. Se para isso eu tinha que recorrer mesmo à tautologia, buscando uma poética de implicações, que assim fosse.

É difícil falar sobre isso sem se tornar um candidato sério, aos olhos de muitos aqui, ao ingresso em um manicômio, mas durante a escrita do Carta aos anfíbios eu acreditava que era possível, se estivéssemos atentos para o ranger da roldanas da História, eu acreditava que era possível ouvir a Máquina do Mundo. Que talvez fosse possível, com esta música quase inaudível sob os barulhos do século, barulhos que eram ao mesmo tempo a própria música que escondiam, que fosse possível até mesmo prever o futuro. Eu acredito até hoje que é isso o que Orides Fontela chamava de "a lucidez que alucina", ou o que ela descreveu tão maravilhosamente bem nos versos:

A um passo
do pássaro
res
piro.


É por isso que durante aqueles anos eu evitava quase por completo o uso de neologismos ou palavras-valise, e preferia usar palavras "pobres", fossem concretas ou abstratas aos olhos dos cabralinos-noigandristas (esta separação ainda me espanta), concentrando-me na sintaxe, "relação entre as coisas", mais que em sua suposta "concretude" ou "objetividade". Pois essa noção de objetividade, em minha opinião, era de qualquer maneira minada pela relação entre estas tais objetividades, no contexto. Não estou dizendo nada de novo: isso é Wittgenstein da juba às patas, quando ele afirma, por exemplo, que "o significado de uma palavra é seu uso na língua". Eu acreditava que as manifestações e possíveis revelações estavam aos olhos de todos, não era necessário buscar "o indizível". Essa história de poeta "que busca dizer o indizível" sempre me cheirou a charlatanismo.

Talvez seja loucura maior o que eu buscava, já que eu acreditava, naquela época, que uma rima não era apenas uma ferramenta de embelezamento do poema. Eu acreditava que rimas flagravam as ligações cósmicas entre as coisas. Eu acreditava que a língua escondia, em suas malhas, revelações que não precisavam sequer das metáforas. Elas estavam já nas rimas que a língua nos provê, assim como a sintaxe era nosso momento humano de construção da realidade. Para mim era algo assustador poder rimar Celan com Sena, João Cabral de Melo Neto com cego, ecoar com assonâncias e aliterações em "à beira da indigência" o nome de Orides Fontela, ou, com "pau e pedra", o nome de Pier Paolo Pasolini.

Voltando ao poema, é acima de tudo um lembrete a mim mesmo, algo que diz:

Se estes, que eram infinitamente melhores que você, morreram como morreram, você espera fim melhor por quê?

Trata-se de uma vigilância como, por exemplo, a que Miguel de Unamuno preconizava em seu Do Sentimento Trágico da Vida (1933), um dos livros que, ao lado talvez das Investigações Filosóficas (1951) de Wittgenstein, mais marcaram minha vida (recomendo muito a vocês a leitura dos dois), lembrando-nos que somos o pó do pó do pó do pó do pó.


(continua)

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terça-feira, 21 de abril de 2009

Movimento em prol de poetas que saibam dançar


(Foto da coreógrafa e dançarina Denise Stutz, em Ouro Preto, em 2005)

Acontece há quatro anos por aqui o festival de dança Brasil Move Berlim, no teatro Hebbel am Ufer, que já trouxe à Alemanha alguns dos melhores coreógrafos e companhias de dança do Brasil. Ontem à noite, assisti à estréia européia do trabalho "3 Solos em um Tempo", da coreógrafa mineira, radicada no Rio de janeiro, Denise Stutz, uma das fundadoras do Grupo Corpo. Trata-se do retrabalhar de três peças anteriores: "DeCor", "Absolutamente Só" e "Estudo para Impressões".

Estava na companhia de três alemães: o moço, o fotógrafo Heinz Peter Knes e a atriz Grete Gehrke, e estava muito curioso sobre a maneira como o trabalho de uma coreógrafa brasileira agiria sobre eles.

Todos nós tivemos uma experiência maravilhosa. Há tempos não presenciava alguém com tamanho poder de empatia sobre um palco. Ela nos seduziu maravilhosamente.

O trabalho estava fortemente baseado na fala, algo raro, pelo menos na maneira como ela o usou, na dança que conheço. O primeiro solo consistia basicamente da descrição dos movimentos que ela estaria fazendo. Como artista da linguagem, fiquei fascinado. Ao mesmo tempo, o trabalho era extremamente irônico, usando movimentos do balé clássico e, num segundo momento, o vocabulário já manjado da dança contemporânea, enquanto ela descrevia a nomenclatura dos movimentos. Para quem já trabalhou com dança, como fiz por dois anos em São Paulo, foi uma delícia. Ri até não poder mais. No entanto, o desnudamento a que ela estava se submetendo tornava-se cada vez mais claro, e foi apenas natural que ela terminasse o espetáculo completamente nua sobre o palco. Em seu trabalho entre linguagem e corpo, tive momentos de grande aprendizado, ontem à noite, em sua presença. Obrigado, Denise Stutz.

O trabalho tinha ainda, sobre mim, implicações est-É-ticas poderosas. Em um determinado momento, ela pede que alguém da platéia escolha onde ela deve posicionar-se no palco, em que ponto ela deveria começar sua coreografia. Ela caminha então até o ponto escolhido, dizendo:

"Porque eu, eu sempre obedeço. Eu nunca grito."

Quando ela chega ao ponto escolhido pela pessoa da platéia, ela então assume sua posição e começa a tensionar todo o seu corpo, seu rosto, assumindo a posição e musculatura tensionadas de quem estaria gritando no topo de sua voz, mas sem emitir som algum. Foi um dos momentos em que os arrepios percorreram todo o meu corpo. No final, nua sobre o palco, ela vagarosamente caminha por ele, assumindo o que pareciam ser as posições "clássicas" em que mulheres foram retratadas (por homens) ao longo dos séculos, seja em pinturas renascentistas ou revistas pornográficas. "3 Solos em um Tempo" foi uma experiência muito forte.

§

Em 2001, uni-me ao grupo de dança dirigido por Luzia Carion na Universidade de São Paulo, e por dois anos trabalhei com ela e com mulheres como Verônica Veloso, Paulina Caon e Lígia Borges sobre a técnicas coligidas pelo coreógrago mineiro Klauss Vianna. Foi um dos períodos mais marcantes sobre minha vida e meu trabalho. Mais tarde, quando já estava na Alemanha, o grupo (que se chamava Grupo de Pesquisa Obara) criou um espetáculo, usando poemas do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios. Segue sendo uma das colaborações das quais mais me alegro.

Isso me fez pensar em alguns poemas do meu primeiro livro, em que essa presença corporal é fundamental, e o tempo em que trabalhei com Luzia Carion, Verônica Veloso e Lígia Borges. Estas três mulheres tiveram um grande impacto sobre minha existência. Trabalhar com elas foi muito especial. O que aprendi com Luzia sobre o trabalho e pensamento-dança de Klauss Vianna é, sem dúvida, essencial para meu trabalho poético.

Após publicar a Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005), encontrei um poema num caderno que deveria, na verdade, ter integrado o livro, mas ficou esquecido entre rascunhos. Reescrito, ele viria a ser usado por Luzia Carion no espetáculo "Fragmentos de uma carta aos anfíbios", encenado por ela, Verônica Veloso e Paulina Caon em 2005 e 2006. Ele já foi oralizado muitas vezes por Carion, mas permanece inédito no papel. Após ver o trabalho de Denise Stutz ontem à noite, pensei no meu trabalho em dança com o Grupo Obara, no espetáculo que fizeram a partir da Carta aos anfíbios, pensei em Luzia, Verônica e Lígia, quis mostrar estes três poemas que são dedicados a elas, por terem nascido de uma experiência corporal comum nossa. Mostro aqui o inédito "Articulações" (que integrará a Carta aos anfíbios, se este algum dia for reeditado), dedicado a Luzia Carion, e os poemas "O dono do corpo" e "Chão", dedicados a Verônica Veloso e Lígia Borges, respectivamente, publicados na primeira edição do livro.

TRÊS POEMAS da Carta aos anfíbios

Articulações

.............a Luzia Carion

Talvez
seja necessário
o exílio, como quem acorda
no meio
da noite na cama
de um estranho e sente
a cabeça girar de forma
diferente, todos os músculos
atentos, dores
novas no corpo, ângulos
variegados
no pescoço: e escuta,
os arcos
dos pés mais tesos,
talvez,
e toda uma outra
estrutura estabelece-se
no corpo, bicho
de Lygia Clark de
repente
manipulado por mãos
inéditas, gerando
tensões, torsões
impensadas
em músculos esquecidos,
compensando
distribuições de equilíbrio
precário, mas presente,
e apontando para linhas
no espaço ignoradas
contudo ígneas


§

O dono do corpo

............a Verônica Veloso

entre veia e espinho
o diálogo é explícito

mesmo o cadafalso exige
da minha perna
a perfeição,
..........do meu passo
o preciso

à iminência do penhasco
...........é mais atento
o metacarpo
...........e o rosto encolhe
perante a navalha

..........a terra
não se furta a cobrir-me

nem hesitaria em esmagar
-me usando meu próprio

...................peso

........o refúgio
de ao menos uma única

relação justa
entre dois corpos

entre os pés e o solo
não há espaço para dúvidas

minha mão toca meu peito:

eu passo, então, a existir em dois
pontos, como se um rio fosse a soma
de uma superfície e duas margens?

meus ossos não são inquebráveis

e o júbilo
é um improviso
difícil



§

Chão

..............a Lígia Borges

1.

Cada cavalo
............ montado a campo
carrega em si a possível
quebra dos meus ossos;

todo touro
............ investido na arena
contém em si uma iminente
fratura do meu crânio;

mas nem

todo peixe
está sujeito
à minha isca,

tão pouca pele
alheia estremece
ao meu toque;

entre nutrição e boca
erguem-se o úmido
e o medo.

2.

Quando a terra treme,
os joelhos
............ acompanham-lhe o ritmo
ao menos um minuto.

Quanta luz os olhos exigem
à confiança
............ do avanço no escuro?
Há no passado o mínimo.

3.

Sem chão
................. e os
......... pés livres

... cautela do que
...... em asas
atenta
à direção do vento

e ouve
onde

o pouso.


Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)

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§
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E segue aqui o movimento que eu gostaria de fundar. Como se chama?

"Movimento em prol de poetas que saibam dançar"

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