Eu tinha outros textos e traduções programados para a Modo de Usar & Co. mas, na noite anterior, antes de enrolar-me na coberta e dormir, comecei a ler uma antologia alemã de poesia inglesa do século XX, intitulada Englische Lyrik 1900 - 1980 (Berlin: Reclam, 1983), publicada na República Democrática Alemã, na qual encontrei os poemas de Isaac Rosenberg (1890 - 1918). Garimpei esta antologia em um dos muitos sebos de Berlim. Aliás, vale comentar aqui como é realmente admirável o volume de poesia publicado na Alemanha Oriental. É óbvio que muito dele precisa ser posto sob suspeita ideológica, como é também claro que se publicava com afinco principal os russos que podiam ser lidos sob a ótica do Partidão. Mas não me incomoda encontrar tantas antologias de Maiakóvski nos sebos, mesmo que se concentrem nos poemas mais políticos. No entanto, aí é que se torna interessante a coisa, encontramos também muita coisa de Akhmátova, Mandelshtam e Tsvetáieva, que não eram exatamente queridinhos do Kremlin. Ao mesmo tempo, há muitas antologias de Dylan Thomas, William Carlos Williams, Guillaume Apollinaire, Tomas Tranströmer, etc. Não preciso mencionar que, com a reunificação, as publicações passaram a seguir a lógica do mercado e a publicação de poesia mirrou.
A antologia é interessante, ainda que muitas traduções para o alemão sejam ruins. Surpreende ao incluir poetas como Hugh MacDiarmid, David Jones e Basil Bunting, modernistas que são frequentemente ignorados. A antologia não supreende ao excluir a maior parte dos poetas do círculo de Auden da década de 30, com a exceção óbvia do próprio Auden.
Há um grupo de poetas ativos durante a Grande Guerra que apresenta alguns aspectos interessantes quando pensamos no modernismo das Ilhas Britânicas. São poetas que morreram muito jovens, como Wilfred Owen, Rupert Brooke e Isaac Rosenberg. Trata-se da geração que equivale à dos expressionistas do outro lado das trincheiras. Não há por que fazer rodeios: os expressionistas germânicos são em geral mais interessantes, como Georg Trakl ou Gottfried Benn. Mas alguns destes britânicos produziram poemas bastante interessantes, alguns textos de que gosto muito, como este "Break of day in the trenches", de Isaac Rosenberg, que traduzi para uma postagem na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.
De ambos lados, entre os britânicos e os germânicos, muitos mantiveram-se dentro das formas fixas, com pesquisas feitas dentro da métrica herdada, outros usaram o verso livre. Parece-me, por exemplo, interessante pensar em Augusto dos Anjos ao lado de poetas como Ernst Stadler e Wilfred Owen. Poetas como Isaac Rosenberg e Gottfried Benn podem parecer mais "modernos" do que aqueles que mantiveram a métrica, mas isso é uma separação esquemática e nebulosa, que deveria ser revista. É enganoso associar apenas o verso livre com a modernidade, criar uma oposição e fazer da métrica o inimigo conservador. Emily Dickinson é tão moderna quanto Walt Whitman. Yeats produz sua poesia moderna mantendo-se na tradição. O mesmo pode ser dito de muitos dos melhores poemas de Eliot, como "The love song of J. Alfred Prufrock". Augusto dos Anjos pode até ser visto como um "pré-modernista" na visão esquemática do Brasil, mas ele é definitivamente um poeta MODERNO, como Joaquim de Sousândrade, Pedro Kilkerry e Marcelo Gama também o são. No Brasil, por questões bastante específicas como a oposição necessária à poética neoclássica parnasiana, criou-se uma dicotomia equivocada entre métrica e modernidade. Também é mais fácil encontrar discussões sobre o "modernismo brasileiro" que sobre "modernidade e poética no Brasil".
De qualquer forma, na postagem da Modo de Usar & Co. eu discuto o efeito da Primeira Guerra sobre as vanguardas, para abordar o debate sobre a historicidade do fazer poético mais uma vez.
A Primeira Guerra Mundial foi determinante para as vanguardas da primeira metade do século. A pesquisa das vanguardas é completamente marcada por aqueles acontecimentos. Poetas ingleses como Rupert Brooke, Wilfred Owen e Isaac Rosenberg morrem de um lado, enquanto poetas germânicos como August Stramm, Georg Trakl e Ernst Stadler morrem do outro lado da trincheira. O desaparecimento de Guillaume Apollinaire marca o desenvolvimento da poesia francesa posterior, já que os surrealistas pouquíssimo acrescentam à sua pesquisa ou à dos dadaístas. Só no pós-guerra, com Bernard Heidsieck, Isidore Isou, Henri Chopin e outros, a poesia francesa avançaria na pesquisa abortada pela Primeira Guerra, de homens como Apollinaire ou Pierre Albert-Birot. As convoluções políticas, as fugas e mudanças de países, assim como as mortes de Jean Verdenal e Henri Gaudier-Brska teriam efeitos marcantes para a vida e trabalho de T.S. Eliot e Ezra Pound, respectivamente. Há um ensaio interessante de Marjorie Perloff a respeito dos efeitos da Primeira Guerra sobre a vida e escrita de Eliot, definindo sua escrita futura, quando Eliot entrega-se cada vez mais ao papel desiludido de restaurador de um passado inalcançável. No primeiro capítulo de Wittgenstein's Ladder: Poetic Language and the Strangeness of the Ordinary (1999), a crítica americana analisa os efeitos da guerra sobre a escrita do Tractatus Logico-Philosophicus (1922), do filósofo austríaco. Pound, segundo Hugh Kenner, passa a tentar criar sozinho a Renascença que ele sonhara com os Imagists e Vorticists. A história dos primeiros grupos experimentais é a narrativa de um movimento abortado por catástrofes, as que se empilham sob os pés do anjo de Benjamin.
As ilusões de progresso e o caráter utópico que alguns associam com as vanguardas não morrem na década de 60, como Haroldo de Campos tenta argumentar em seu ensaio para poder defender sua elisão e fuga da História, mas em grande parte já em 1916. Os poetas do Cabaret Voltaire e da revista DADA já surgem como pós-utópicos e pré-distópicos, sem negar a historicidade do fazer poético. Após a Primeira Guerra, as vanguardas, muito distintas entre si e nem todas passíveis de encaixe na ideologia construtivista, passam a operar muito mais como resistência à distopia (que se tornaria ainda mais horripilante ao se aproximar a Segunda Guerra), do que agentes de uma revolução ou legisladores de uma utopia. Poderíamos dizer que u-tópica é muito mais a poesia que tenta estar fora do tempo e sem lugar (U-TOPOS), aquela que a ideologia crítica hegemônica de hoje tenta compor em poemas sob o signo da "trans-historicidade", este equívoco que não se sustenta at closer inspection. A retórica de Haroldo de Campos a partir da década de 80, ainda que defenda superficialmente a "sincronia histórica", está fundada em uma falácia teleológica, com conclusões que são ideológicas mesmo que apresentadas como factuais e empíricas, demonstrando em verdade um discurso quase determinista. A compreensão, no Brasil do pós-guerra, do trabalho dos primeiros grupos experimentais do século XX foi demasiado parcial, concentrando-se naqueles que se encaixavam em uma leitura e visão construtivistas da poesia, distorcendo e ignorando muitos aspectos de grupos como o dos dadaístas, além de silenciar sobre outros grupos do pós-guerra, contemporâneos de Noigandres, como os Lettristes parisienses, o Grupo de Viena ou a Internacional Situacionista.
Estou ciente dos riscos que tomo ao voltar a este debate em um artigo sobre um poeta como Isaac Rosenberg, mas este debate poderia ser feito ao discutir também contemporâneos de Rosenberg como Georg Trakl, em quem a relação entre transparência e não transparência do signo é mais complexa, ou poetas marcados pela Segunda Guerra, como Samuel Beckett e Paul Celan. Sabemos que, após os traumas da ditadura, nos dias de hoje qualquer tentativa de discussão sobre a historicidade do fazer poético acaba com frequência acusada de querer cercear a liberdade artística. Alguns mais histéricos, confundindo qualquer noção de historicidade com sociologia, chegam a falar até sobre "stalinismo", justamente os que confundem poeticidade com total não referencialidade. Há realmente críticos que reduzem textos poéticos a documentos sócio-culturais, como jornais ou cardápios, mas não é a isso que nos referimos aqui. Nas palavras de Jakobson: "a supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a referência, mas torna-a ambígua”. A função poética não cancela por completo a função referencial, nem a materialidade do signo sua referencialidade, mesmo em poemas como as "Soledades" de Luís de Góngora ou os "Sueños" de Soror Juana Inés de la Cruz. Críticos como Paul de Man já demonstraram como mesmo em Mallarmé não se exclui por completo a referencialidade. O debate fervoroso entre Georg Lukács e Ernst Bloch sobre o trabalho dos expressionistas germânicos em 1934, gerando as reações de Bertolt Brecht e Walter Benjamin, é um exemplo de como é complexo o problema, algo que vai muito além das dualidades simplistas de um Claudio Daniel.
Torna-se portanto necessário insistir que não se trata de defender qualquer forma de poesia engajada ou participação política do poeta, mas de uma discussão estética sobre a historicidade do fazer poético, uma crítica e pensamento da textualidade em que o conceito de função poética de Jakobson manifesta-se não como essência, uma quidditas qualquer da poesia, mas um elemento funcional do texto poético, que não exclui as outras funções da linguagem, como podemos ver na poesia de todas as épocas. É um equívoco (e em minha opinião uma distorção do pensamento de Jakobson) acreditar que a função poética exclui ou cancela necessariamente a função referencial ou qualquer outra das funções da linguagem. O poema opera na fronteira entre transparência e não transparência do signo, o que nos leva à materialidade da linguagem que encontramos de Safo a Catulo, de Homero a Calimaco, em Arnaut e Cavalcanti, com Gregório de Matos e Augusto de Campos, sem apenas a teatralização visual do signo ou a recusa completa da referencialidade. Equivaler poeticidade a não referencialidade é uma proposição simplesmente falsa, defendida apenas por autores com uma ojeriza ideológica a qualquer forma de realismo. E isso não cancela as pesquisas específicas sobre a materialidade da linguagem ou os que conscientemente operam fora da referencialidade, como Hugo Ball ou Henri Chopin, por exemplo.
As condições para a escrita da poesia hoje não são tão diferentes das condições destes poetas das primeiras décadas do século XX, se pensarmos bem. Muito da estética dos dadaístas surgiu como resistência à ideologia militarista do mundo em que sabiam estar compondo seus textos e trabalhos visuais. Com a cavalgada militarista dos dias de hoje, pondo-nos às portas de uma distopia ou cataclisma, talvez seja frutífero pensar nas estratégias de grupos como o do Cabaret Voltaire, do Grupo de Viena, da Internacional Situacionista, de artistas e poetas como John Cage, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Waly Salomão, Paulo Leminski. Como Heiner Müller escreveu em um poema bastante sarcástico e ao mesmo tempo pungente, comentando as reclamações de Tácito (55 - 120 a.C.), que lamenta em seus Annales que os historiadores que o precederam tiveram mais guerras e mais catástrofes como material para a escrita, nenhum poeta hoje poderia reclamar da falta de material épico, ou até mesmo material lírico, na crise de um mundo que tenta suprimir o indivíduo e nos transformar em autômatos coletivizados.
--- Ricardo Domeneck
§
Raiar do dia nas trincheiras
A escuridão desmorona -
É o mesmo tempo druida de sempre.
Só uma coisa viva roça minha mão -
Um rato esquisito e sarcástico -
Ao arrancar do parapeito a papoula
Para por detrás da orelha.
Rato comediante, você seria fuzilado se soubessem
De suas simpatias cosmopolitas.
Agora você tocou esta mão inglesa
Amanhã fará o mesmo com uma alemã -
Sem dúvida em breve se bem lhe aprouver
Cruzar o verde sonolento entre nós.
Você parece sorrir por dentro ao passar
Por olhos fortes, pernas rijas, atletas orgulhosos
Menos aptos à vida que você,
Atados aos caprichos do homicídio,
Esparramados pelas entranhas da terra,
Os campos rasgados da França.
O que você vê em nossos olhos
No ferro e fogo barulhento
Arrojados pelo céu quieto?
Que tremor - que peito horrorizado?
Papoulas com raízes nas veias de homens
Caem, e caem eternamente;
Mas a minha está segura em minha orelha,
Apenas um tanto embranquecida de poeira.
(tradução de Ricardo Domeneck)
§
Break of Day in the Trenches
Isaac Rosenberg
The darkness crumbles away.
It is the same old druid Time as ever,
Only a live thing leaps my hand,
A queer sardonic rat,
As I pull the parapet's poppy
To stick behind my ear.
Droll rat, they would shoot you if they knew
Your cosmopolitan sympathies.
Now youao have touched this English hand
You will do the same to a German
Soon, no doubt, if it be your pleasure
To cross the sleeping green between.
It seems you inwardly grin as you pass
Strong eyes, fine limbs, haughty athletes,
Less chanced than you for life,
Bonds to the whims of murder,
Sprawled in the bowels of the earth,
The torn fields of France.
What do you see in our eyes
At the shrieking iron and flame
Hurled through still heavens?
What quaver – what heart aghast?
Poppies whose roots are in man's veins
Drop, and are ever dropping;
But mine in my ear is safe –
Just a little white with the dust.
§
.
.
.
--- Ricardo Domeneck
§
Raiar do dia nas trincheiras
A escuridão desmorona -
É o mesmo tempo druida de sempre.
Só uma coisa viva roça minha mão -
Um rato esquisito e sarcástico -
Ao arrancar do parapeito a papoula
Para por detrás da orelha.
Rato comediante, você seria fuzilado se soubessem
De suas simpatias cosmopolitas.
Agora você tocou esta mão inglesa
Amanhã fará o mesmo com uma alemã -
Sem dúvida em breve se bem lhe aprouver
Cruzar o verde sonolento entre nós.
Você parece sorrir por dentro ao passar
Por olhos fortes, pernas rijas, atletas orgulhosos
Menos aptos à vida que você,
Atados aos caprichos do homicídio,
Esparramados pelas entranhas da terra,
Os campos rasgados da França.
O que você vê em nossos olhos
No ferro e fogo barulhento
Arrojados pelo céu quieto?
Que tremor - que peito horrorizado?
Papoulas com raízes nas veias de homens
Caem, e caem eternamente;
Mas a minha está segura em minha orelha,
Apenas um tanto embranquecida de poeira.
(tradução de Ricardo Domeneck)
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Break of Day in the Trenches
Isaac Rosenberg
The darkness crumbles away.
It is the same old druid Time as ever,
Only a live thing leaps my hand,
A queer sardonic rat,
As I pull the parapet's poppy
To stick behind my ear.
Droll rat, they would shoot you if they knew
Your cosmopolitan sympathies.
Now youao have touched this English hand
You will do the same to a German
Soon, no doubt, if it be your pleasure
To cross the sleeping green between.
It seems you inwardly grin as you pass
Strong eyes, fine limbs, haughty athletes,
Less chanced than you for life,
Bonds to the whims of murder,
Sprawled in the bowels of the earth,
The torn fields of France.
What do you see in our eyes
At the shrieking iron and flame
Hurled through still heavens?
What quaver – what heart aghast?
Poppies whose roots are in man's veins
Drop, and are ever dropping;
But mine in my ear is safe –
Just a little white with the dust.
§
Autorretrato de Isaac Rosenberg.
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Um comentário:
Caro Robson,
às vezes é necessário fazer o possível para evitar o contra-produtivo, há coisas mais importantes.
abraço
Ricardo
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