sábado, 6 de fevereiro de 2010

"A morte de um presidente" e mais uma oportunidade para falar sobre um possível poema pré-distópico

Assisti esta semana ao mockumentary do diretor britânico Gabriel Range, lançado aos leões em 2006, chamado Death of a president, em que Range imagina e simula o assassinato de George W. Bush, usando imagens reais de protestos em Portland e discursos do texano, unidas a imagens gravadas pelo time, simulando protestos massivos em Chicago, que culminam com o atentado contra Bush. O diretor chega a usar cenas reais do funeral de Ronald Reagan para simular o que teria sido o funeral de Bush. O filme é bastante inteligente e muito bem produzido, discutindo com vigor certas questões que são, na verdade, velhas amigas norte-americanas, como uma possível liberdade de desobediência civil em um país de segregação. Difícil não pensar em Thoreau e Cage ao escrever estas palavras. Antes mesmo de ser lançado, o filme já começou a causar controvérsia em muitos países, especialmente nos Estados Unidos, obviamente. Mas mesmo em países como o Japão ele chegou a ser proibido.

.
.


(trailer para Death of a president, do diretor britânico Gabriel Range)

.
.

O filme me fez pensar em outro britânico, que trabalhou com questões extremamente parecidas, sobre quem já comentei aqui neste espaço. Trata-se de Peter Watkins, autor de docudramas como o inovador Culloden, sobre os levantes jacobitas do século XVII inglês, e também diretor do excelente Punishment park (1971), um dos filmes pré-distópicos mais impressionantes que já vi.

.


(cena de Punishment park, de Peter Watkins)

.

Enquanto isso, no Brasil, os poetas seguem falando sobre pós-utopia ou publicando artigos em que defendem, pela quinquagésima vez e com uma intransigência fanática, a noção de autonomia artística (mito ideológico), como se a inevitável historicidade da arte significasse, consequentemente, o cerceamento de sua criação. Parece-me um discurso ideológico de caráter ingênuo, tanto política como artisticamente. É realmente incrível quantas vezes conseguem requentar as mesmas dualidades. Pessoalmente, diria que essa crença, de que apenas a ideologia da autonomia intransigente da arte pode garantir sua "liberdade", parece-me o cúmulo do est-É-ticamente ingênuo, mas imagino que estejam dizendo o mesmo do outro lado, negando a própria tentativa de junção entre ética e estética, então sigamos com nosso diálogo surdo.

Eu realmente entendo os poetas mais velhos que viveram sob o regime militar e foram traumatizados pela crítica marxista do período, aquela que reduz qualquer texto literário e poético a mero documento histórico-social, fazendo com que um poema habite a mesma esfera dos jornais matutinos ou cardápios de restaurante, com uma noção paupérrima de textualidade. Mas não é a isso que me refiro. Quando uso a grafia est-É-tica e falo sobre as implicações do fazer poético, refiro-me a Ludwig Wittgenstein e suas meditações sobre o contexto; refiro-me a Walter Benjamin e alguns de seus grandes ensaios, como aqueles dedicados a Baudelaire e à Paris do século XIX, a cidade vista através de Baudelaire; penso em livros brilhantes como The mechanic muse ou The Pound Era, de Hugh Kenner; em algo deslumbrante como o livro My Emily Dickinson, de Susan Howe; em ensaios como "Poesia resistência", de Alfredo Bosi; em livros como Wittgenstein´s Ladder ou The dance of the intellect, de Marjorie Perloff; nos ensaios de Alfonso Berardinelli e nos momentos brilhantes de Fredric Jameson; penso, antes de mais nada, em Oswald de Andrade e nos melhores de nossos poetas modernos, como Joaquim de Sousândrade, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, em quem mesmo a recusa e negação surgem como ação. Não são poetas que se abstêm. Mas isso, é claro, tampouco significa que não haja momentos em que tudo o que quero é poder ler livros como Além da imagem (1963) de Henriqueta Lisboa ou Da morte. Odes mínimas (1982) de Hilda Hilst.

Ou seja, falar sobre est-É-tica e sobre as implicações da textualidade poética significa cercear a liberdade de criação? Não, eu realmente não creio que signifique isso. É claro que muitos poetas ouvem essas questões e entendem que elas implicam responsabilidade, mas isso não é algo novo. Os poetas ligados à revista Noigandres já falavam sobre "responsabilidade total perante a linguagem". Alguns pensam em algum tipo de policiamento estalinista, que os proibiria de escrever poemas de amor, mas essa é realmente uma visão muito simplista da discussão. Nós precisamos realmente de muitos poemas de amor, mais e mais. Quando Tom Zé trabalha com o Grupo Corpo em um espetáculo sobre o amor, declarando-o como resistência à selvageria contemporânea, isso é uma escolha est-É-tica.


Seria apenas saudável que nós poetas escrevêssemos poemas de amor conscientes de estarmos vivos em 2010 e não em 55 a.C., em 1225 ou 1750.



(Grupo Corpo, coreografia de Rodrigo Pederneiras e música de Tom Zé)

A dança e a performance, em todos os seus níveis e práticas, seja em textualidade ou materialidade visual, assumem na verdade uma posição central na pesquisa de uma est-É-tica contemporânea de resistência, e temos a sorte de contar no Brasil com o pensamento de coletivos como o Grupo Corpo (Belo Horizonte) e o Grupo Cena 11 (Florianópolis). Figuras como Klauss Vianna (1928 - 1992) e Lygia Clark (1920 - 1988) são também guias fundamentais.


(excertos de três espetáculos do Grupo Cena 11)

.

(Klauss Vianna, A dança, 1990)


.

Resistência, até mesmo através do amor. Não pela negatividade, como queria Adorno em seu ensaio "Lírica e sociedade", mas por um viver na frincha, na brecha, ser a cicatriz. À inflexibilidade e mentalidade engessada dos pós-utópicos, prefiro a intransigência dos líricos que têm os pés no chão, os pré-distópicos.



(Jean-Luc Godard, Éloge de l´amour, 2001)

.
.
.

Nenhum comentário:

Arquivo do blog