quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O olvido, Nancy Cunard, não lhe cai bem

A sensação começa em algum ponto da fronteira separando os pulmões das regiões ao sul do corpo. Algo como um "Até tu, Brutus?". Dá-se diante de fotografias de organismos de um era-uma-vez, absurdamente vivos, vívidos. Acontece, por exemplo, diante de fotos de Rodchenko focadas sobre o crânio de Maiakóvski, ou deste na cozinha dos Brik, nalguma manhã de sábado dos anos 20 em Moscou, e penso: "agora mortos, nem pó do pó." A sensação volta quando olho uma foto de Frank O´Hara, com vinte-e-poucos-anos, com um suéter preto, reclinado sobre um muro de Nova Iorque, na década de 50. Tão vivo, agora só um nome em cima de poemas? Sinto esse aperto também com fotos de um jovem Oswald de Andrade, em São Paulo, com aquela arrogância jovem e rechonchuda de quem acreditava estar prestes a conquistar o mundo.

E estes são os que ficaram. Os lembrados. Criaturas fabulosas que permaneceram na memória, incentivando-nos à vida, à ação! ao "lover´s quarrell with the world".

Então penso em quantas criaturas lendárias o mundo aos poucos esquece e me pergunto "como?" e "por quê?". Quem rege isso? Porque esquecemos, significa que tão importantes não podiam ser? Caio Valério Catulo foi esquecido por mil anos, antes de ser redescoberto. Quem garante que nunca mais será esquecido? E ele não é apenas um nome num catálogo, ele caminhou por ruas mui concretas de Roma, de carne e osso ao lado de seus amigos poetas Helvius Cinna, Publius Valerius Cato e Marcus Furius Bibaculus, aqueles que até hoje estão esquecidos, seus poemas esmigalhados pelo tempo.

Há poucos anos, o nome de Mina Loy era apenas um daqueles nomes de tantos modernistas que foram esquecidos, por tanto tempo. E no entanto, seu trabalho é interessantíssimo, único, completamente diferente dos outros modernistas de língua inglesa. Certa vez, Ezra Pound disse que os únicos poetas fazendo algo de interessante nos Estados Unidos eram William Carlos Williams, Marianne Moore e Mina Loy. O que fez com que Williams e Moore permanecessem no cânone e Loy não? Pound se equivocou? Ou o cânone é regido por misteriosas estruturas de visibilidade? Abaixo, um trecho das "Songs to Joannes" (1917), de Mina Loy, uma coisa única do primeiro modernismo, algo que me lembra o corporal em Hilda Hilst:

Spawn of fantasies
Sifting the appraisable
Pig Cupid ....... his rosy snout
Rooting erotic garbage
"Once upon a time"
Pulls a weed ....... white star-topped
Among wild oats sown in mucous membrane
I would ....... an eye in a Bengal light
Eternity in a sky-rocket
Constellations in an ocean
Whose rivers run no fresher
Than a trickle of saliva

These are suspect places

I must live in my lantern
Trimming subliminal flicker
Virginal ....... to the bellows
Of experience
Colored glass."


(Mina Loy - "Songs to Joannes" 1)

ou

I don't care
Where the legs of the legs of the furniture are walking to
Or what is hidden in the shadows they stride
Or what would look at me
If the shutters were not shut

Red a warm colour on the battlefield
Heavy on my knees as a counterpane
Count counter
I counted the fringe of the towel
Till two tassels clinging together
Let the square room fall away


(Mina Loy, "Songs to Joannes" 17)


Então, às vezes, aparecem nomes em textos sobre poetas que apreciamos, nomes de poetas esquecidos e nos perguntamos quem foram?, o que fizeram?, o que escreveram?, é justo que tenham sido esquecidos?

Ontem lia um texto de Kenneth Rexroth (ele próprio esquecido), em que ele menciona a modernista Nancy Cunard. Lembrava-me de seu nome, pois há um poema justamente de Mina Loy dedicado a ela; Cunard também parece ter feito parte do mesmo círculo de Gertrude Stein e Djuna Barnes em Paris.

Pesquisando, descobre-se que Nancy Cunard era poeta e editora, comandando a Hours Press, que publicou o primeiro texto de Samuel Beckett, um poema chamado "Whoroscope" (1930), no mesmo ano em que lançou A Draft of XXX Cantos, de Ezra Pound. Foi uma daquelas musas do modernismo, algo como, no Brasil, Tarsila do Amaral, Maria Martins ou Patrícia Galvão, a Pagu, a mesma misteriosa poeta Solange Sohl, que fascinou Augusto de Campos.

Procurei, mas não consegui encontrar poemas de Nancy Cunard. Talvez ela seja alguém da estatura de uma Mina Loy, por tanto tempo esquecida; talvez tenha sido apenas uma personalidade fascinante, sem deixar poemas fortes; como saber? Sem ler seus poemas, resta encarar as muitas fotografias de Nancy Cunard, por gente como May Ray e Cecil Beaton, entre tantas incríveis divas do modernismo.

Eu olho para estas fotos e tenho vontade de dizer em voz alta:

"Nancy Cunard, Nancy Cunard, quem foi você, criatura? Você teria como me contar sua vida? Valeu a pena? Quando você morreu sozinha naquele hospital de Paris, com 26 quilos de corpo, em que você pensou? No mesmo que Maiakóvski, naquele apartamento moscovita? O mesmo que Frank O´Hara, estirado na areia em Fire Island? O mesmo que Oswald de Andrade, esquecido e desligado em São Paulo?"













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