sexta-feira, 9 de julho de 2010

Traduzindo o poeta nigeriano Christopher Okigbo

Não me lembro mais em que circunstâncias descobri, no ano apssado, o trabalho do poeta nigeriano Christopher Okigbo (1932 - 1967). É possível que ocorrera enquanto pesquisava seu conterrâneo, contemporâneo e amigo Wole Soyinka, ou talvez durante minha pesquisa contínua de poetas fora do eixo europeu, de poetas que produziram e morreram jovens, ou talvez de poetas que se entregaram também a algum tipo de ativismo político. Não importa muito como o descobri, mas que tive esta sorte, e sim que seu trabalho tem momentos de grande beleza, tanto mítico-mística, como de lirismo condensado. Veja, por exemplo, um poema como "Love apart":


Amor à distância

A lua
Ergueu-se entre nós,
Entre dois pinhos
Que se inclinam um ao outro;

O amor ergueu-se com a lua,
Alimentou-se de nossos caules solitários;

E agora nós somos sombras
Que se prendem uma à outra,
Mas beijam apenas ar.

(tradução de Ricardo Domeneck)


Love apart
Christopher Okigbo

The moon has
ascended between us,
Between two pines
That bow to each other;

Love with the moon has ascended,
Has fed on our solitary stems;

And we are now shadows
That cling to each other,
But kiss the air only.



Há momentos em que esta condensação do lírico toca o próprio nervo do místico, como no poema "The tree":

A árvore

A raiz atingiu
Um veio de pedra.

A seiva seca no caule
Em ascensão:
O sangue seca na veia
Como seiva.

(tradução de Ricardo Domeneck)


The Tree
Christopher Okigbo

THE ROOT has struck
A layer of rock;

The sap dries out in the stem
Upwards:
The blood dries out in the vein
Like sap.


Christopher Okigbo nasceu na pequena vila de Ojoto, nos arredores de Onitsha, no sudeste da Nigéria, em 1932. Seu pai era professor de uma escola católica, durante o auge do domínio britânico da região. O jovem poeta cresceria sob a influência de seu pai, católico fervoroso, e a de seu avô, um sacerdote da deusa das águas Idoto, personificada no rio de mesmo nome que corre na região de sua infância. Idoto seria a deusa invocada naquele que é o mais famoso poema de Christopher Okigbo, "The passage", aqui traduzido como "A passagem", mas também conhecido como "Heavensgate". Este sincretismo religioso pode ser sentido com força em seu poema, que inicia com a invocação a Idoto, para logo em seguido invocar Ana, que em comentários críticos sobre o poema tem sido identificada como a santa do catolicismo.

Christopher Okigbo viria a se formar na mesma universidade em que estudaram o conhecido romancista nigeriano Chinua Achebe (n. 1930) e o já mencionado Wole Soyinka (n. 1934), ganhador do Prêmio Nobel de 1986.

Começou a publicar poemas na revista Black Orpheus, dedicada ao trabalho de poetas africanos e afro-americanos. Seus poemas seriam reunidos postumamente no volume Labyrinths (1971). Christopher Okigbo morreu em 1967, com apenas 35 anos, lutando na guerra pela independência da República de Biafra (1967 - 1970), região separatista que permaneceria parte do território nigeriano.

A poesia de Christopher Okigbo é hoje considerada uma das mais importantes obras da poesia africana pós-colonial. Ainda que críticos nacionalistas o tenham criticado por adotar a língua inglesa, o poeta parece apropriar-se da língua do colonizador para implantar uma consciência mítica que só pode ser totalmente compreendida através da poética mística e vocal dos poetas africanos. Para nossa sensibilidade cristã, algo da poesia de Okigbo pode parecer alinhar-se a poetas como o W.B. Yeats do volume The Tower (1932) ou o T.S. Eliot de Choruses from "The Rock" (1934), mas a mim me parece que um dos poetas de língua inglesa com quem poderíamos traçar paralelos interessantes, passando pela poética de Christopher Okigbo, é o norte-americano Robert Duncan (1919 - 1988), de livros como The Opening of the Field (1960) e Bending the Bow (1964). Penso, por exemplo, em um poema de Duncan como o belo "Often I Am Permitted to Return to a Meadow"


Often I Am Permitted to Return to a Meadow
Roberto Duncan


as if it were a scene made-up by the mind,
that is not mine, but is a made place,

that is mine, it is so near to the heart,
an eternal pasture folded in all thought
so that there is a hall therein

that is a made place, created by light
wherefrom the shadows that are forms fall.

Wherefrom fall all architectures I am
I say are likenesses of the First Beloved
whose flowers are flames lit to the Lady.

She it is Queen Under The Hill
whose hosts are a disturbance of words within words
that is a field folded.

It is only a dream of the grass blowing
east against the source of the sun
in an hour before the sun's going down

whose secret we see in a children's game
of ring a round of roses told.

Often I am permitted to return to a meadow
as if it were a given property of the mind
that certain bounds hold against chaos,

that is a place of first permission,
everlasting omen of what is.


Christopher Okigbo nasceu em 1932, o que o faz contemporâneo de brasileiros como Ferreira Gullar (n. 1930) e Augusto de Campos (n. 1931). Sua poética, porém, visionária e mística, talvez o ligue mais a um brasileiro como Roberto Piva (1937 - 2010).

A experiência da leitura de seus poemas, contudo, parece-me de uma beleza singular.


A Passagem


Diante de ti, mãe Idoto,
eu me posto nu;
Diante de tua presença aquosa,
Um pródigo
Encostado na acácia,
Absorto em tua lenda.
Sob teu domínio eu aguardo
Descalço,
Sentinela para a senha
No portão celeste;
Das profundezas meu grito:
Dá ouvidos e atenta...

Água escura dos primórdios.
Raios, violáceos e curtos, perfurando a tristeza,
Sugerem o fogo que é sonhado.
Arco-íris na distância, arqueado como cobra em bote à presa,
Sugere a chuva que é sonhada.
À estufa
A solidão me convida,
Uma alvéloa, para contar
O conto da mata-em-cipós;
Nectarinia, em luto
Por uma mãe entre galhos.
Sol e chuva num combate único;
Sobre uma só perna,
Em silêncio na passagem,
O jovem pássaro na passagem.

Rostos silenciosos nas encruzilhadas:
Festividade em negro...
Rostos em negro como longas negras
Colunas de formigas,
Detrás da torre do sino,
Entrando no ardente jardim
Onde todas as estradas se encontram:
Festividade em negro...
Oh Ana às maçanetas do painel alongado,
Ouve-nos às encruzilhadas nas grandes dobradiças
Onde os tocadores de orgão nas galerias
Ensaiam o doce velho fragmento, a sós -
Marcas de folhas de laranjeira impressas nas páginas,
Desbotar da luz de anos entrelaçados no couro:
Pois estamos à escuta nos campos de milho,
Entre os instrumentos de sopro,
Escutando o vento debruçar-se sobre
O seu mais doce fragmento...


(tradução de Ricardo Domeneck)

§

The Passage
Christopher Okigbo

BEFORE YOU, mother Idoto,
Naked I stand;
Before your watery presence,
A prodigal
Leaning on an oilbean,
Lost in your legend.
Under your power wait I
On barefoot,
Watchman for the watchword
At Heavensgate;
Out of the depths my cry:
Give ear and hearken…

DARK WATERS of the beginning.
Rays, violet and short, piercing the gloom,
Foreshadow the fire that is dreamed of.
Rainbow on far side, arched like a boa bent to kill,
foreshadows the rain that is dreamed of.
Me to the orangery
Solitude invites,
A wagtail, to tell
The tangled-wood-tale;
A sunbird, to mourn
A mother on a spray.
Rain and sun in single combat;
On one leg standing,
In silence at the passage,
The young bird at the passage.

SILENT FACES at crossroads:
Festivity in black…
Faces of black like long black
Column of ants,
Behind the bell tower,
Into the hot garden
Where all roads meet:
Festivity in black…
O Anna at the knobs of the panel oblong,
Hear us at crossroads at the great hinges
Where the players of loft pipe organs
Rehearse old lovely fragments, alone-
Strains of pressed orange leaves on pages,
Bleach of the light of years held in leather:
For we are listening in cornfields
Among the wind players,
Listening to the wind leaning over
Its loveliest fragment…


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5 comentários:

Anônimo disse...

Ricardo,
Belas postagens, sobretudo as que se intitulam "Como morrem os poetas". é muito bom conhecê-lo como crítico e tradutor, já que eu o conhecia apenas como poeta. Melhor ainda é re-conhecer no crítico e tradutor o poeta que eu já admirava. A propósito: onde eu poderia ler o seu famigerado ensaio "Ideologia da percepção"?
abraços
Hortência M.

Ricardo Domeneck disse...

Hortência,
obrigado por suas palavras. É bom ouvir que você já me conhecia como poeta, pois é engraçado como em muitos casos trata-se do oposto: algumas pessoas chegam primeiro a este espaço aqui, me conhecem como crítico e tradutor, e só mais tarde chegam aos poemas.
Quanto ao infame "Ideologia da percepção", que me transformou em persona non grata em certos círculos de poetas de São Paulo, você pode ler o ensaio no número 18 da revista Inimigo Rumor. Havia um link da 7 Letras em que era possível ler o ensaio online, mas acho que o link está inativo. Pretendo publica-lo em breve em alguma revista eletrônica (acho que está na hora). Mantemos contacto, aí te aviso.
Se for urgente, a gente conversa.
beijo
Ricardo

Anônimo disse...

Ricardo,
Brigada pela informação. Não se trata propriamente de uma leitura "urgente", gostaria apenas de ler o ensaio que, de fato, parece dividir a opinião de críticos e poetas. Tentarei obter a revista, mas caso você publique o ensaio em outro espaço, gostaria de ser informada, sobretudo, se ele sofrer alguma mudança ou reformulação, uma vez que (se não me engano)foi publicado originalmente em 2006.
Desde já muito grata.
Hortência

Ricardo Domeneck disse...

Hortência,

Se você não encontrar a revista, me avisa. Onde você mora?

Meu correio eletrônico é

ricardo.domeneck@gmail.com

abraço

Ricardo

Anônimo disse...

Caro Ricardo, obrigada por me proporcionar a descoberta de versos tão tocantes...Graças a ti pude ler os poemas e "escutar voz" do nigeriano Christopher Okigbo! Dessas gratas e oportunas surpresas da vida...

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