sábado, 3 de julho de 2010

Morre na São Paulo de pesadelos o poeta Roberto Piva (1937 - 2010)



Após passar esta semana toda escrevendo sobre as mortes de poetas, fiquei muito triste ao ler nos jornais que Roberto Piva falecera esta tarde em São Paulo. Ainda ontem referia-me a ele em um artigo sobre o poeta nigeriano Christopher Okigbo (1932 - 1967), seu contemporâneo-de-inícios, e conterrâneo no território da poesia visionária.

Descobri o trabalho de Roberto Piva no mesmo ano em que descobri o de Hilda Hilst, em 1997, quando ele lançou a coletânea de poemas intitulada Ciclones, e ela lançou o romance Estar sendo. Ter sido, que encerrava com o poema fenomenal "A Mula de Deus". Lembro-me de alguns artigos sobre o poeta paulista que chamavam de transgressor, revolucionário, xamânico. Ele não chegaria a ter o impacto que Hilda Hilst teve sobre minha sensibilidade, mas sua poesia ficaria em meu radar por algum tempo. Só alguns anos mais tarde descobri seus primeiros livros, quando relançaram o volume Paranóia (1963), que tem alguns poemas de grande imaginação e com uma energia que parecia haver se exilado da poesia brasileira. Foi, no entanto, a descoberta de Piazzas (1964) e Abra os olhos e diga Ah! (1976) que me fariam respeitar imensamente a potência imaginativa de Piva. Apenas em Hilda Hilst eu encontrara aquela crueza corporal. Obviamente, a carnalidade sexualizada da poesia de Piva me atraía muitíssimo, parecia-me muito mais potente em sua ferocidade que a maioria dos poetas modernistas, mesmo entre aqueles que eram tecnicamente muito superiores a Piva.

Não há motivos para meias palavras: Piva não foi exatamente um poeta inovador. Não há técnicas novas ou algo nele que já não estivesse na poesia de Murilo Mendes e Jorge de Lima, se ficarmos apenas entre os brasileiros. Mas isso, afinal, não importa muito. Pouquíssimos poetas brasileiros no pós-guerra possuíram imaginação tão fértil. Roberto Piva foi, além disso tudo, um dos mais dignos representantes do revival neo-romântico do pós-guerra, o que gerou, nos Estados Unidos por exemplo, toda a melhor poesia do indispensável movimento Beat (que tampouco fez qualquer coisa que fosse nova), assim como dos poetas da chamada Escola de Nova Iorque - neo-romântica é também a poesia linda de Frank O´Hara, como muitos poemas estimulantes de John Ashbery, Kenneth Koch e James Schuyler. Na América Latina, talvez possamos pensar em Arturo Carrera nestes termos. Se nós tivéssemos lido poetas como Roberto Piva e Hilda Hilst com mais atenção e muito mais cedo, talvez teríamos hoje maior equilíbrio em nossos parâmetros poéticos. Sinceramente, não me importa muito se o poeta está "inovando" ou não quando me vejo diante desta potência imaginativa:

A piedade
Roberto Piva

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos



Em 2008, Fabiano Calixto e eu preparamos uma postagem sobre Piva para a Modo de Usar & Co.. Nela, reproduzimos aquele que é meu poema favorito de Piva, extraído do excelente Piazzas, um dos melhores livros da poesia brasileira na década de 60.


Piazza I
Roberto Piva

.......Uma tarde
............é suficiente para ficar louco
ou ir ao Museu ver Bosch
............uma tarde de inverno
...........................sobre um grave pátio
.....onde garòfani .... milk-shake & Claude
....................obcecado com anjos
..........ou vastos motores que giram com
.............................uma graça seráfica
.............tocar o banjo da Lembrança
sem o Amor encontrado ... provado ...sonhado
............& longos viveiros municipais
........sem procurar compreender
..............imaginar
............a medula sem olhos
......ou pássaros virgens
............aconteceu que eu revi
......a simples torre mortal do Sonho
................não com dedos reais & cilíndricos
Du Barry Byron Marquesa de Santos
...Swift Jarry com barulho
.......de sinos nas minhas noites de bárbaro
...os carros de fogo
............os trapézios de mercúrio
...suas mãos escrevendo & pescando
................ninfas escatológicas
pequenos canhoes do sangue & os grandes olhos abertos
.........para algum milagre da Sorte


§

É uma perda muito grande. O Brasil torna-se ainda mais pobre hoje, com a morte de Piva. Reproduzo abaixo o pequeno artigo que escrevi sobre ele em 2008.

§

Roberto Piva e a fidelidade a si mesmo

por Ricardo Domeneck

Roberto Piva nasceu na cidade de São Paulo, em 1937. Sua primeira publicação importante deu-se na Antologia dos novíssimos (São Paulo: Massao Ohno, 1961), e sua estréia em livro ocorreu em 1963, com o livro Paranóia, um livro criado na linhagem visionária de William Blake, ligado aos experimentos em fanopéia dos surrealistas, e no qual Roberto Piva invoca e alinha-se às figuras dos brasileiros Mário de Andrade e Murilo Mendes, proclamando o desregramento dos sentidos e posturas em sua cruzada pessoal pela cidade de São Paulo.

Publicou mais tarde os livros de poemas Piazzas (1964), Abra os olhos e diga ah! (1975), Coxas (1979), 20 poemas com brócoli (1981), Quizumba (1983), Antologia poética (1985) e Ciclones (1997). Com a abertura pluralizante da década de 90 e o arrefecimento da hegemonia construtivista na poética brasileira, ocorre no final da década a valorização da obra de Roberto Piva, assim como a de Hilda Hilst, estabelecendo-os como figuras notáveis e exemplares no início do século XXI, e levando à publicação, por uma grande editora comercial, de suas obras reunidas. Os livros de Roberto Piva foram reunidos em três volumes, publicados pela Editora Globo: Um estrangeiro na legião, Mala na mão & asas pretas e o recém-lançado Estranhos sinais de Saturno.

Ainda que um livro como Paranóia possa ressentir-se de um certo "tardo-surrealismo", os livros publicados por Roberto Piva entre as décadas de 60 e 80 demonstram uma grande liberdade de espírito e fidelidade a suas próprias convicções poéticas em meio ao silêncio crítico retumbante, que imperou sobre seu trabalho por décadas, lançando-o à margem dos debates poéticos do período. A década de 60 presenciou o surgimento de poetas bastante distintos, e que nos 15 últimos anos passaram a comandar a atenção tanto da crítica como dos poetas mais jovens. Entre os poetas mais fortes surgidos na década de 60 e influentes sobre os poetas de hoje, Roberto Piva assume seu papel constante de estranho-no-ninho, sua vocação maior, entre os outros poetas notáveis do período como, por exemplo, Orides Fontela (1940 - 1998), Sebastião Uchoa Leite (1935 - 2003), Torquato Neto (1944 - 1972) e Sebastião Nunes, o outro sobrevivente, assim como Piva, tanto do silêncio da crítica como das agruras políticas do período.

Não há mais motivos para oposições e trincheiras. Tempo para semear e para colher, sim, mas momentos também para o visionário e momentos para o projetista, para o vates e para o faber, instantes em que precisamos de poetas que nos incitem corporalmente ao embate (a lover´s quarrel, nas palavras de Robert Frost) com o mundo, e instantes em que precisamos de poetas que nos afiem o intelecto. A maioria dos bons poetas é capaz de ambos, ao mesmo tempo. No entanto, se há dias em que necessitamos do lirismo contido-condensado de Lorine Niedecker, George Oppen e Augusto de Campos, há outros dias em que apenas o expansionismo mítico de Robert Duncan, Roberto Piva e Hilda Hilst pode servir de fertilizante para os nossos nervos à flor-da-pele. Enquanto, em lugares como São Paulo, alguns grupos de poetas ainda dedicam-se exclusivamente a garantir sua hegemonia no seio da atenção crítica da década, tentando transformar sua poética em sinônimo de contemporâneo, nada melhor que aprender com Roberto Piva sobre a fidelidade às próprias crenças est-É-ticas.

(2008)

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