Completo hoje 33 anos de idade. Idade da crucificação. Mas, após uma semana escrevendo sobre as mortes de poetas que respeito, semana que acabou sendo coroada com a morte de Roberto Piva, um dos poetas mais imaginativos que o Brasil teve no pós-guerra, quis parar de falar sobre a morte que é certa, mesmo se lenta, e celebrar um pouco o fato de estar compartilhando ainda o oxigênio do mundo com vocês.
Não é necessariamente óbvio dizer que estou feliz por estar entre os vivos.
Hoje é também aniversário de outros dois poetas que respeito e por quem, naquilo que chamam de "nível pessoal", também tenho muito carinho: o carioca Carlito Azevedo, que nasceu a 4 de julho de 1961, e o esloveno Tomaž Šalamun, que nasceu a 4 de julho de 1941.
Carlito publicou no ano passado seu Monodrama (Rio de Janeiro: 7Letras, 2009), um livro sobre o qual ainda quero escrever com mais calma, mas que é um dos trabalhos mais instigantes dos últimos anos, um livro que redimensiona todo o trabalho de Carlito Azevedo, e que traz alguns poemas antológicos. Há um texto no livro, recheado que é de poemas extremamente tocantes (em tempos de raquitismo emocional), de que gosto de forma particular: trata-se do poema "Pálido céu abissal". O poema opera, como nos melhores textos de poetas dos últimos anos, na fronteira entre transparência e não-transparência do signo, no hibridismo entre o que já se tentou separar como prosa e poesia. Nem o mimético dos realistas, nem a teatralização do signo em nome de um louvor à materialidade da linguagem, o poema funciona entre estes polos. É um daqueles poemas que me parecem funcionar na página, mas pedir também a voz do poeta e do leitor. É poema para ser lido em voz alta, como finalmente estamos voltando a fazer. O título e o primeiro verso, como o final do poema virá a confirmar, remetem, aparentemente, ao romance de Paul Bowles, The Sheltering Sky (1949), mas, justamente nessa relação entre signo escrito e imagética, palavra e o mundo a que ela se refere, tradução, verter do texto em imagem, nos destina também ao filme de Bernardo Bertolucci, The Sheltering Sky (1990), com Debra Winger e John Malkovich. Esta obra literária, que meu amigo Jan Bayer chama de "o mais triste dos romances", aparece no poema, mas criando uma rede de universos paralelos, sem uma mera tentativa de buscar na obra consagrada autoridade, já que o final do poema acaba nos fazendo encarar por fim uma ratazana e o rosto hollywoodiano de Debra Winger. A referência aqui é menos ao cânone literário que ao blockbuster de nossos fracassos sociais e de nossas desilusões diárias, entre o sonho de redenção, seja ele californiano, marroquino ou carioca, e a descoberta de que a "Realidade" (esta fantasia sexual da poesia) é cara e focinho de uma rata sedenta.
Pálido céu abissal
que não nos protege,
é antes cúmplice, ou mentor
intelectual de nossas ruínas,
de nossas mentes estropiadas.
Ao passar por certas casas e ruas
suburbanas, ocorre às vezes
de nos depararmos com algo
que brilha deslumbrante e dissimétrico,
e nos comove a ponto de nos
perguntarmos se de sua aparição
escandalosa, sua cauda
luminosa de átomos e vazio,
poderão surgir algum dia
moças asseadas em vestidos
de flores, conduzindo pela
mão crianças bem penteadas
para a Escola Municipal,
o Sonho Municipal.
Parei um dia em uma dessas
praças e, deitado sobre a
grama, me pus a escutar a
desconexão absoluta de
todas as falas do mundo, de
todos os sonhos do mundo.
Ao levantar-me para buscar
um pouco de água no tanque
vazio vi (me encarava)
uma ratazana que ainda
assim me lembrou
Debra Winger
abandonada no deserto.
(Carlito Azevedo, Monodrama, 2009)
§
Conheci o poeta esloveno Tomaž Šalamun na véspera de nosso aniversário em 2008, quando ambos lemos no Festival de Poesia de Berlim. Nós dois éramos os poetas na conferência de imprensa, um dia antes do festival, e descobrimos ali que fazíamos aniversário no mesmo dia. Voltamos a nos encontrar em outras duas ocasiões, sempre ligadas à poesia: primeiro, no Festival Internacional de Poesia de Dubai, nos Emirados Árabes, onde estávamos entre os convidados ocidentais. Foi uma das experiências mais surreais de minha vida, como já relatei aqui, mas aqueles dias com Tomaž Šalamun, Wole Soyinka e outros poetas, em plenos Emirados Árabes, ficarão marcados em minha mente para sempre, entre o sonho e o pesadelo. Voltei a encontrar Tomaž Šalamun em seu país natal, quando li no maravilho Festival de Poesia de Medana, na Eslovênia, onde Šalamun também esteve, tido por muitos jovens como mestre, além de ser o mais traduzido poeta do país. Aquela sim foi uma experiência maravilhosa.
Tomaž Šalamun teve uma importância muito grande para a poesia eslovena. Seu primeiro livro, intitulado Poker (1966), transformou a poesia do país, trazendo uma linguagem mais direta, coloquial, fora dos modelos mais clássicos. Šalamun é hoje um dos poetas europeus mais traduzidos no mundo. Infelizmente, não creio que haja traduções no Brasil.
Folk song
Every true poet is a monster.
He destroys people and their speech.
His singing elevates a technique that wipes out
the earth so we are not eaten by worms.
The drunk sells his coat.
The thief sells his mother.
Only the poet sells his soul to separate it
from the body that he loves.
Tomaž Šalamun, translated by Charles Simic
Ljudska: Vsak pravi pesnik je pošast. / Glas uničuje in ljudi. / Petje zgraditi tehniko, ki uničuje / zemljo, da nas ne bi jedli črvi. / Pijanček proda plašč. / Lopov proda mater. / Samo pesnik proda dušo, da jo / loči od telesa, ki ga ljubi. ----- Tomaž Šalamun
§
Encerro esta nota com duas coisas minhas: o vídeo com fragmentos de minha leitura na terra de Tomaž Šalamun, e um dos meus mais antigos poemas publicados, o "Eu digo sim até dizer não", que abre meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (2005).
(Lendo no Festival de Poesia de Medana, na Eslovênia, 28 de agosto de 2009)
§
Eu digo sim até dizer não
as circunvoluções
...........e caprichos
......da atenção:
erguer a cabeça
e perder o sono
...............sopro
................... vento
...........em que
....................uma primeira esfera
...........de ar impele
....................outra ao movimento
...........ou em alto-mar
temendo menos a ausência
..................... de resgate na superfície
que a povoação alheia
...............e por isso informe, abaixo
n’água, invisível, mas parte
integrante das estruturas
do dia real
......só a lucidez abre caminho
......................para o imaginário
......................... mas a carne insiste
................no contínuo
onde as pedras são comestíveis
...................e exige-se a fome;
...........durante a transfiguração
...............em que anjos e bandejas
...........circulam seu jardim
..............................é fácil salmodiar
providências e entregas; mas
................é com o linho enfaixando toda a
................pele e a pedra
...........separando esta caverna
da saúde do ar
..................que se espera um Lázaro!
..................... Lázaro! e um segundo
................antes da asfixia
crer ainda
...........que seja este o meu
..................nome, seja ESTE o MEU
............... nome
...............se cada folha parece
........... percutir o sol hoje
e não se debruça do estame
................................... para o vazio
...................o mundo
...................... é tão simpático
...........da montanha que fala resta
...........a mímica, da presença
o ventríloquo, de sua boca
o mapa que reconduz à porta
..................mão em mão com passos lentos
......mas foi Isaque a carregar a lenha
................nas costas, tomar o fogo e o cutelo
...........na mão; e caminhou junto de seu pai
........... todo sacrifício é aparente e inútil,
.....................nenhuma
...............árvore camufla
........... suas frutas:
................expôe-nas
...........ao pássaro, ao
....................chão, ao suco
...........na garganta, à recusa
.................do estômago
...........por
...................tanto
...........percorro os andaimes
.....................de equilíbrio precário
..................... :
...........ferro oxidável
................... saudoso
...........de água
...........e a alegria de quem, na
obrigação de abater um novilho,
...................espera que seu corpo, de repente
........... forte, sobreviva ao sacrifício,
como uma garganta
enrijece-se rápida
para resistir à faca
(Ricardo Domeneck, Carta aos anfíbios, 2005)
.
.
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2 comentários:
Muita saúde, coragem e amor, D!
Belo post, me agrada muito. E a propósito, que ontem tenha sido um dia especial. Até!
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