sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A insônia mais produtiva dos últimos três meses: poema novo, "Cartografia do cobertor em uma cama de casal", que me deixou exausto e agora durmo.




Cartografia do cobertor em uma cama de casal

O cobertor não
parecia distribuído
de forma justa
entre nossos dois corpos
em concha,
e protestei contra sua falta
de percepção para as simetrias
necessárias em uma relação,
quando ele, sorrindo, voltou
o rosto em rota de colisão
com o meu e asseverou
que tampouco os pulmões
têm o mesmo tamanho,
mas que o esquerdo
seria menor
para dar espaço ao coração,
que ele, antilírico,
chamou de miocárdio,
e esta resposta,
que ele só pôde
articular graças
à cooperação
de tantos órgãos e músculos,
incluindo os seus próprios
pulmões,
o direito e seu lhano
e magnânimo
parceiro à esquerda,
não causaram em mim qualquer
ostranenie por seu non sequitur
mas sim uma curtíssima
pausa
respiratória, como se eu tivesse,
agora, que pensar duas vezes
antes de encher estes dois balões
assimétricos
que doravante exigirão de mim todas
as minhas convicções
democráticas, demográficas,
e imediatamente virei meu rosto,
em minha tática
habitual de evitar que ele mantenha
sobre meu crânio um ângulo
de olhar prolongado demais, por medo
que ele finalmente perceba
como são assimétricos, não
meus pulmões, mas os dois
pedaços do meu próprio rosto
que eu nem sequer ouso
chamar de metades
em suas proporções frankenstoicas,
com estas cicatrizes
deixadas pela acnóstica
tempestade de hormônios
de minhas glândulas pubertárias
sem qualquer noção de sobriedade,
fazendo de minha cara uma Lua,
lado visível, lado escuro
e suas crateras, Mare
Tranquillitatis
aqui, Oceanus
Procellarum
logo
ao lado, estas minhas narinas
e suas veias de drenagem
para o aparelho lacrimal,
que mais assemelham-se
àquelas tais Torres
enganosamente propagandeadas
como gêmeas, e que, vejam só,
também ruíram,
do pó vindo e ao pó voltando,
tal qual este queixo e nariz
desconjuntado,
ligado aos pulmões siameses
que ele ora informa-me
não serem idênticos,
um dia também hão
de ruir e decompor-se,
deixando, como herança
para este legista
das minhas ingenuidades,
um esqueleto
também pouco simétrico
em seus côncavos e convexos,
mas que doam a ele esta noite
todos os prazeres de suas bifurcações,
nesta cama, sob este cobertor
repartido
como se fosse um país
extático, feudal e multiétnico.



Ricardo Domeneck, madrugada insone de 28 de janeiro de 2011, aniversário do nascimento e morte de Marcel Broodthaers.

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3 comentários:

Sebastião Ribeiro disse...

Essas reflexões sobre simetria me lembram as que Marcelo Gleiser anda divulgando sobre a da natureza. Poema... humano, no sentido que sempre quisemos que esta palavra tivesse ao menos de um de seus lados. Abraços, Ricardo.

P.S: Também tenho cicatrizes causadas pela 'acnóstica', e informarei aos interessados em fazer-me menos por causa delas, que as mesmas fazem meu rosto uma Lua, Mare Tranquillitatis dum lado, Oceanus Procellarum doutro.(Isso que é fuga, não?)

Bruno de Abreu disse...

ou, bonito. ser o pulmão esquerdo.

Anônimo disse...

Leio esse poema cá insone, às 3. Tenho descoberto seus poemas aos poucos. Ora me sinto perdida, achada ou perplexa. Nunca sei descrever minhas emoções/sensações frente ao poema. Mas esse todo, confuso também, é uma experiência única.

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