Passei os últimos dias traduzindo o poema para o português, tarefa que me resultou agridoce, mas bonita. Talvez algo como, usando palavras de Robin, uma momentary grace. Abaixo, vocês podem ler minha postagem a respeito, a partir de hoje na Modo de Usar & Co.
Robin Myers
Robin Myers é uma poeta norte-americana, nascida em Nova Iorque em 1987. Seus poemas, traduzidos para o castelhano, têm sido publicados em revistas como Letras Libres (México), Laberinto (suplemento cultural do jornal mexicano El Milenio), Metropolis (México) e Ventizca (Argentina). Robin Myers vive na Cidade do México, onde trabalha como tradutora. Também foi ali que gravei o vídeo abaixo, no qual vocaliza seu poema inédito "Conflations", especialmente para a Modo de Usar & Co.
Robin Myers faz a meu ver/ouvir um uso eficiente da anáfora, como vocês poderão notar no vídeo e no texto do poema a seguir, com um trabalho sutil mas preciso com aspectos sonoro-textuais como a aliteração e a enumeração, o que doa a seus textos grande força expressiva – especialmente quando vocalizados pela autora, com uma espécie de delicadeza firme. Não se trata, porém, da chamada "enumeração caótica" de certos modernistas, mas de um pensamento lírico associativo que parece lançar mão, neste poema, de uma gradação ofegante para os pequenos desastres de uma separação. Seu uso da rima parece querer chamar nossa atenção para esta gradação, com certo sarcasmo pungente, em algumas passagens, como ao associar por som as palavras "dust/trust". É texto que preza pela tesura, sem perder de vista a concreção da linguagem, claramente privilegiando no entanto o metonímico sobre o metafórico.
Tudo isso leva um tradutor sempre a difíceis escolhas. Neste caso específico do jogo entre "dust/trust", optei por "pó" e "dó", em detrimento das tríssilabas "poeira" e "certeza", tentando salvar o ritmo de emergência que dá tanta força a este poema lírico. Quanto ao tom invocativo do poema, após traduzir grande parte do texto na segunda pessoa do singular, percebi que em certas passagens isso doava ao texto em português um tom que um americano chamaria de contrived, ou o que nós chamaríamos talvez de forçado, ausente no original. Optei por recorrer ao uso brasileiro da terceira pessoa do singular, o que talvez impeça, por sua vez, a fruição da tradução por um leitor português, mas salva para um leitor brasileiro o caráter de intimidade desnuda que dá tanta beleza e proximidade ao texto. A expressão "I find myself", tão central em um poema de deslocamentos como este, é usada por Robin Myers com acepções que pediriam traduções distintas a cada caso, mas o que levaria à perda de seu uso da anáfora. Decidi, escolha passível de equívoco como em toda tradução, usar "descubro-me", que parecia ser a mais próxima do uso geral que a poeta faz da expressão.
Robin Myers está ligada a organizações não-governamentais trabalhando na Palestina, e o poema tanto parece invocar um homem como uma terra. Certas referências têm poder simbólico, ecoando em nossa memória certa poesia mística, com o aparecimento de palavras como "bread/pão", "pomegranades/romãs", "almonds/amêndoas", mas são extremamemente concretas e doam ao canto um local. Se este poema parece distanciar Robin Myers de poetas americanos celebrados no Brasil, como Creeley e os poetas ligados à revista L=A=N=G=U=A=G=E (com sua desconfiança do lírico), o poema é de um lirismo cristalino que percorre tradições e línguas na modernidade e no pós-guerra, de James Merrill a Mahmoud Darwish. Para um leitor brasileiro, talvez se possa sentir no texto uma sensibilidade parecida à de um poema como "Cântico dos cânticos para flauta e violão" (1945), de Oswald de Andrade.
Um desafio veio ao fim do poema, com o verso "The shudder of your coming", de conotação fortemente sexual pelo uso americano do verbo "to come", usado como nós brasileiros usamos o "gozar". No entanto, o texto é muito sutil em sua celebração lírica, mesmo que enlutada pela perda, de um outro que tanto pode ser um ser humano como um país ou região, uma das muitas conflations do título, os mal-entendidos de toda relação, amorosa e linguística. Em discussão com a poeta, que me sugeriu buscar a conotação através de "breathing" em vez de "coming", cheguei à solução "O tremor do seu ofego", tentando ainda manter a assonância entre "shudder" e "coming". O próprio ato da tradução torna-se, talvez, uma conflation a mais no texto em português.
Meu uso do hipérbato nos versos finais, estranho em português por nosso hábito de usar adjetivos após substantivos, ao contrário do inglês, foi uma tentativa de manter o poder de sugestão de clímax e redenção que Myers transmite ao terminar seu poema com a palavra grace. Talvez seja meu desejo pessoal de que tudo no mundo termine em graça.
Esta conflation, que denota tanto fusão como confusão, inicia-se já em minha primeira decisão, a de usar a palavra "Conflação" para o título ainda que a palavra talvez leve a outras acepções.
Por fim, incentivo que os leitores da Modo de Usar & Co. dediquem sua atenção, primeiramente, à própria Robin Myers e suas Conflations. Traduzi-lo foi uma experiência agridoce, por todas as minhas próprias conflações e separações passadas, que o poema me trouxe à memória. Mas foi uma experiência bonita.
Robin Myers vocaliza seu poema "Conflations", na Cidade do México, a 17 de dezembro de 2011.
Filmado por Ricardo Domeneck para a Modo de Usar & Co.
Filmado por Ricardo Domeneck para a Modo de Usar & Co.
Conflações / Conflations
A casa é sempre uma nova casa,
e a língua raramente é a minha.
Mesmo quando decido falar,
estou despreparada.
:
The house is always a new house,
and the language is rarely my own.
Even when I choose to speak,
I am unready.
*
Seus frutos,
suas pedras,
as pedras de seus frutos,
suas florestas arruinadas,
as florestas de sua ruína –
sua desolação,
seus cavalos raquíticos,
sua ventania,
suas persianas,
suas raízes em conserva,
seus morangos improváveis,
seu magro pão esticado --
suas juntas em sangue,
suas fontes em seca,
suas modestas montanhas,
seus pneus abandonados,
os resquícios de sua paciência,
o tráfego de sua mágoa.
:
Your fruits,
your stones,
the stones of your fruit,
your ruined forests,
the forests of your ruin --
your desolation,
your spindly horses,
your wind,
your windows,
your pickled roots,
your improbable strawberries,
your bread stretched thin --
your bloody knuckles,
your empty fountains,
your modest mountains,
your abandoned tires,
the remnants of your patience,
the traffic of your grief --
*
Descubro-me com saúde.
Descubro-me a caminho.
Descubro-me impaciente.
Descubro-me numa cidade continuamente arrasada até o chão,
descubro-me no banheiro subterrâneo de um shopping
[ com paredes de vidro.
Descubro-me incapaz de tolerar até mesmo a ideia de esquecer
como você cobriu com suas mãos meu rosto,
como com toda a pele de suas mãos você toca
toda a pele do meu rosto, como ar.
Descubro-me sem uma língua aqui.
Descubro-me amargurada pela assimetria da calçada entre
o que fazemos e o que não fazemos.
E onde.
E como tropeçamos até lá.
E onde está você?
Em qual dos incontáveis absurdos de intimidade,
querendo com isso dizer geografia,
memória, aeroportos e ar,
está você?
:
I find myself in good health.
I find myself en route.
I find myself impatient.
I find myself in a city continually razed to the ground.
I find myself in the basement bathroom of a glass-paneled
[ shopping mall.
I find myself unable to tolerate even the idea of forgetting
how you put your hands all over my face,
how with all the skin of your hands you touch
all the skin of my face, like air.
I find myself without a language here.
I find myself galled by the unevenness of the sidewalk between
what we do and do not do.
And where.
And how we stumble there.
And where are you?
In which of the countless absurdities of intimacy,
by which I mean geography,
memory, airports, and air,
are you?
*
As colinas desnudas
arqueiam-se, expiram aonde
vão as estradas –
o céu invoca-as
próximas, mas recusa
sua entrada.
As estradas são estreitas,
sobras tensas, arranhadas
como por prego na pele,
como se dissessem, depois
você ainda se lembrará
de tudo o que lhe causei.
:
The stripped hills
arch, exhale into where
the roads are going --
the sky wills them
closer, but will refuse
to let them in.
The roads are thin,
tense remainders, scratched
as by a nail on skin,
as if to say, later
you will still remember
what I have done to you.
*
Quem é você que lambe o sal de seus dedos na casa dos vizinhos?
Quem é você que dorme em meio aos tiroteios?
Quem é você que se recusa a traduzir o que soletra em minhas costas?
Quem é você que chora enquanto xinga o policial?
Quem é você que permite que eu deixe a mesa com o arroz ainda
quente na panela de permeio?
:
Who are you that licks the salt from your fingers
[ in the neighbor’s house?
Who are you that sleeps through the gunshots?
Who are you that refuses to translate what you spell on my back?
Who are you that weeps while swearing at the policeman?
Who are you that lets me leave the table with the rice still burning
in the pan between us?
*
Suas vassouras,
seus alvejantes,
seus telhados teimosos,
seus gatos guinchantes,
os desvios selvagens de sua delicadeza,
seu generoso desprezo –
seus cachecóis,
seu suor,
o contornar poeirento sem fim de seu remorso –
suas tempestades de areia por seus anseios,
seus fogos cansados,
seus canos metálicos,
seus figos inchados,
seus olhos vermelhos,
sua insistência em ser o primeiro a partir,
ou o último a ficar –
seus lixões,
suas crostas de massa,
seu riso,
sua fé num cigarro sem filtro –
seus velórios à meia-noite,
seus caminhões raivosos,
sua raiva,
seu hálito enquanto dorme,
seus dentes no meu pescoço,
suas máscaras,
sua luxúria –
:
Your brooms,
your bleach,
your stubborn roofs,
your squalling cats,
the wild swerve of your gentleness,
your generous contempt --
your scarves,
your sweat,
the endless, dusty detours of your regret --
your sandstorms of longing,
your weary fires,
your metal pipes,
your swollen figs,
your reddened eyes,
your insistence on being the first to go,
or the last to stay --
your garbage pits,
your pastry shells,
your laughter,
your faith’s unfiltered cigarette --
your midnight funerals,
your raging trucks,
your rage,
your breath when you sleep,
your teeth on my neck,
your masks,
your lust --
*
Descobrimo-nos fazendo amor, de repente, tendo estado a ponto de fazer outra coisa, como ir à lavanderia. Logo descubro-me cambaleando à beira de um precipício, altíssimo, tremendo já pelo que será chegar ao fundo – descobrindo-me já quase despedaçada ao impacto, o susto já susto, a dor já dor, a alegria já alegria – e, tremendo na ponta dos dedos do meu fôlego, descubro-me chorando, meu rosto próximo a seu rosto, seu rosto de repente semelhante ao meu tão-somente em perplexidade, implorando-lhe, quase exigindo, “Como posso juntar-me a você?”
We find ourselves making love, suddenly, having just been on the verge of doing something else, like going to the laundromat. Soon I find myself teetering on the edge of some precipice, at a great height, already shivering from what it will be like to arrive at the bottom -- finding myself almost already shattered on impact, the shock already shock, the pain already pain, the joy already joy -- and, trembling on the tiptoes of my breath, I find myself weeping, my face close to your face, your face suddenly resembling mine in bafflement only, begging you, almost demanding, “How do I join you?”
*
A casa é sempre uma nova casa,
e as cortinas ainda por pendurar,
e eu durmo, honesta, obscura, acordando
muito e sem intuição da minha distância
até o oceano ou o desastre na rodovia,
até a base militar ou os pomares,
até algures mais limpo ou devastado
ou mais embebido de buganvílias
ou com entulhe de nuvens que aqui.
Devagar, relembro tudo: paredes, cantos,
o amontoado de sapatos, o quadro canhestro,
a âncora dos meus lábios, a cratera plácida
deixada por meu crânio quando me aprumo.
Sempre fico onde estou.
:
The house is always a new house,
and the curtains remain unhung,
and I sleep honestly, murkily, waking often
and without any intuition of my distance
from the ocean or the car crash on the freeway,
from the army base or the orchards,
from anywhere cleaner or more devastated
or more drenched with bugambilia
or more clogged with clouds than here.
Slowly, it all returns to me: walls, corners,
the huddle of shoes, a clumsy painting,
the anchor of my hips, the placid crater left
by my skull when I sit upright.
I always stay where I am.
*
Tudo o que se fala é de um mundo partido,
mas não será perigosamente inteiriço,
a ruptura mal mantida à distância?:
os rapazes contorcendo-se e enrodilhados pelos
degraus do ônibus ondeante,
as prateleiras cheias, os aviões prenhes,
a pavimentação apenas uma maneira de engrossar a pele
da coisa, a coisa,
o brinco um mero adorno da barreira,
o grafitti apenas um comentário sobre a pedra,
o menisco do leite tentando apenas
imitar a panela enquanto esta se aquece ao fogão.
Onde está o fim?
O que será preciso para que se amoleçam as superfícies?
Para que as quinas fraturem-se?
Você será para mim algum auxílio?
Nós bebemos dos lábios da garrafa,
derramamos espuma sobre um filme dispensável na mesa,
viramo-nos contra o vime da cadeira,
nossos joelhos encostados enquanto os ossos esperam
em suas mornas bainhas de brim.
Os limões,
cortados à linha de seus ventres
e colocados numa pequena fruteira,
são a única violação adequada do dia.
:
All the talk is the talk of the broken world,
but is it not perilously whole,
the rupture barely held at bay?:
the young men contorted and curled around
the rungs of the heaving bus,
the laden shelves, the pregnant planes,
the pavement only a way to thicken the skin
of the thing, the thing,
the earring a mere adornment of the barrier,
the graffiti simply a remark about the stone,
the meniscus of the milk trying only
to imitate the pan as it gets hotter on the stove.
Where is the end?
What will it take for the surfaces to soften?
For the edges to fracture?
Will you be of any help to me?
We drink from the lip of the bottle,
spill foam in a negligible film across the table,
shift against the wicker of the chairs,
touch knees as our bones wait
in their warm denim sheaths.
The lemons,
sliced across their bellies
and arranged in a little bowl,
are the only proper violation of the day.
*
Suas mãos no meu rosto,
toda a pele de suas mãos em toda a pele do meu rosto, como ar.
Seus carros enferrujados,
seus sonhos aos gritos,
seus uniformes,
seu lixo em chamas,
seus doces de amêndoa,
seu pó.
Sua dó.
Seus joelhos pálidos
e seus pés com calos.
Suas facas,
suas veias,
suas barricadas.
Sua menta,
seu chá,
sua maconha com as janelas todas fechadas,
seus olhos cerrados,
seus cães envenenados,
suas romãs e suas joias
amassadas até o sumo.
O tremor do seu ofego
como outra espécie de perda subordinada,
outra espécie
de uma indivisa,
implacável e
momentânea graça.
:
Your hands on my face,
all the skin of your hands on all the skin of my face, like air.
Your rusted cars,
your shouted dreams,
your uniforms,
your burning trash,
your almond sweets,
your dust.
Your trust.
Your paling knees
and calloused feet.
Your knives,
your veins,
your barricades.
Your mint,
your tea,
your weed with all the windows shut,
your shuttered eyes,
your poisoned dogs,
your pomegranates and their jewels
pulped into juice.
The shudder of your coming
like another kind of loss subsumed,
another kind
of unshared,
unsparing,
momentary grace.
.
.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário