sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Descanse em paz, querida Wislawa

Há poetas que tiveram papéis tão importantes na minha vida mental, que suas mortes, mesmo jamais os tendo conhecido, me deixam de luto verdadeiro, tristeza gigante. Foi assim quando Hilda Hilst morreu, em 2004, ou Robert Creeley, em 2005. Há dois dias, sucumbiu a um câncer no pulmão (ela, famosa chain smoker) a poeta polonesa Wislawa Szymborska (1923 - 2012), em sua Cracóvia de eleição. Como homenagem a esta mulher que me ajudou literalmente a manter a sanidade em alguns momentos, reproduzo aqui duas postagens que dediquei ao trabalho de Szymborska, entre tantas outras nais quais ela compareceu como personagem importante. Obrigado por tudo, mulher fantástica e generosa.


§

As holotúrias dos poetas
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009



Em 2001, que geralmente chamo, com os lábios sobrevoando xícaras de café e copos de vinho tinto, de "um dos piores anos da minha vida", sofrendo como um camelo por uma daquelas hemostasias vagarosas de uma sangria desatada, quando ainda não sabia que (sim) se sobrevive a certa amputação de ilusões, houve alguns poemas que me acompanharam nas calçadas de São Paulo, como tubos de oxigênio ligados a um lugar-nenhum, cartografado sob um sol imaginário qualquer, provendo luz, ainda que artificial.

De poemas que nos mantêm vivos, a gente nunca esquece.

Há aquele início tenebroso do poema de Robert Creeley, que eu ainda repito em momentos de sufoco: "If night´s the darker / closer time, / days come", para culminar na luminosidade do trecho:

"let light
as air
be relief.
"

E, se a garganta se engarrafava e os lábios rachavam, era sempre possível recorrer àquele

"...e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
"

de Carlos Drummond de Andrade. Havia a lição de Bishop: "Lose something everyday. Accept the fluster...", nos ensinando a fingir, a fingir.

"Faz de conta, minha filha. Faz de conta." - JGR.

Um dos poemas que mais forneceram oxigênio à minha cabeça naquele ano foi "Autotomia", de Wislawa Szymborska, que eu lera no número 10 da revista Inimigo Rumor, e que me serviu algumas vezes de kit-sobrevivência para terminar o dia.

Autotomia

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

(tradução coletiva, publicado em Inimigo Rumor 10)

Poemas podem ter as causas, os efeitos mais diversos. Não é todo dia que se quer passar uma temporada no Inferno; ou em Duíno; ou mesmo em Pasárgada, ou no País das Maravilhas. De um lado o sertão, de outro o mar. Seja Lear (1812 - 1888) no absurdo em riso, ou Lear (1603 - 1606) no absurdo de todas as perdas, a cada instante seu malheur, seu bonheur. O do poema na gargalhada e o poema do franzir de todos os cenhos.

"Tempo de atirar pedras,
e tempo de ajuntá-las;
tempo de abraçar,
e tempo de se separar."


Recentemente, lendo a antologia Revolution of the Word: A New Gathering of American Avant Garde Poetry 1914 - 1945, editada por Jerome Rothenberg, li um poema de Kenneth Rexroth em que ele também recorre à holotúria (ou pepino-do-mar), usando quase o mesmo fraseado de Szymborska, levando-me a perguntar se seria uma colagem ou fragmento de que Szymborska e Rexroth se apropriaram a partir de alguma enciclopédia. O poema de Rexroth chama-se "Fundamental disagreement with two contemporaries", um texto longo de cerca de 6 páginas e várias partes, no qual se encontra o seguinte fragmento em prosa e entre aspas:

"The sea cucumber when in danger of being eaten, eviscerates itself, shooting out its soft internal organs as a sop to the enemy while the body wall escapes and is able to regenerate a new set of viscera."

Pensando no texto de Szymborska, li outras páginas sobre estas holotúrias que já se enroscaram em minha mente, encontrando textos parecidos:

"When threatened, some sea cucumbers discharge sticky threads to ensnare their enemies. Others can mutilate their own bodies as a defense mechanism. They violently contract their muscles and jettison some of their internal organs out of their anus. The missing body parts are quickly regenerated.

ou

"A remarkable feature of these animals is the catch collagen that forms their body wall. This can be loosened and tightened at will and if the animal wants to squeeze through a small gap it can essentially liquefy its body and pout into the space. To keep itself safe in these crevices and cracks the sea cucumber hooks up all its collagen fibres to make its body firm again.[3]

Some species of coral-reef sea cucumbers within the order Aspidochirotida can defend themselves by expelling their sticky cuvierian tubules (enlargements of the respiratory tree that float freely in the coelom) to entangle potential predators. When startled, these cucumbers may expel some of them through a tear in the wall of the cloaca in an autotomic process known as evisceration."


§

Mutilar-se como sistema de defesa contra ilustríssimo predador. Expelir certos órgãos supérfluos em dissimulação, baile de máscaras de uma sexta-feira em filmes de medo, medo. Plano de fuga: ejetar-me as vísceras. Que holothuroidea formidável.

Pequenos pedaçoilos de moi-même em tupperwares ao honorável monsenhor predador, a tapar o ar que desperdiço do seu ambiente.

Meu Jack the ripper, com os cascos sobre o meu crânio, permaneça sempiterno no andar de cima da cadeia alimentar, enquanto a sustento com meus ombros e outras partes de minha anatomia renovável.

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.
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Poemas que continuam salvando minha vida: "Autotomia", de Wislawa Szymborska
segunda-feira, 12 de setembro de 2011


Alguns talvez digam que é exagero, ora, como assim um poema salvar a vida de alguém? Mas não se trata de glamourização de poeta, nem conversa pseudo-xamânica sobre mágica arcaica ou qualquer falcatrua soteriológica. Em minha vida, é a mistura de fato e ato. Nesta série, quero repostar – já discuti vários deles aqui – poemas que lateral e literalmente salvaram minha cota de oxigênio e seguem mantendo minha sanidade em um nível aceitável de equilíbrio diante de certas catástrofes. Quando descobrimos um poema com este poder, ele praticamente entra em nosso sistema de defesa e passa a ser parte dos nossos anticorpos contra os demônios ensandecidos, contra os inimigos da lucidez, contra o vírus do suicídio. Hoje, no parque minúsculo e favorito aqui no meu bairro berlinense, sentado na grama, com o vento meio gelado embaraçando os cabelos que já começam a ficar brancos, eu fechei os olhos e sussurrei de novo, várias vezes, como fizera em outros momentos de necessidade:


"Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou."


São versos do poema "Autotomia", da polonesa Wislawa Szymborska. Não se trata de um de seus mais famosos, algo que nunca entendi. Tenho antologias de poemas dela em alemão e inglês que não trazem este poema específico. E, no entanto, eu já não sei se seria capaz de viver sem ele na memória. Nada que as beatas da materialidade possam entender, já que não compreendem como hedonismo e ascese se confundem em nossa miséria extrema.



Autotomia
Wislawa Szymborska

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o
Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.



(tradução coletiva, publicada na revista Inimigo Rumor número 10)


§


Soube através de Carlito Azevedo que a Companhia das Letras está lançando a primeira antologia de Wislawa Szymborska no Brasil, uma notícia que é simplesmente radiante.




Em novembro de 2008, Marília Garcia e eu preparamos uma postagem sobre a poeta polonesa, ganhadora do Nobel em 1996 (quando a descobri), para a Modo de Usar & Co., da qual vocês podem ler o artigo introdutório abaixo.



WISLAWA SZYMBORSKA

Wislawa Szymborska nasceu em 1923, na cidade de Kórnik, na Polônia. Quando ainda criança, sua família mudou-se para Cracóvia, um dos mais ativos centros culturais da Polônia, e a poeta cresceria e permaneceria toda a sua vida nesta cidade. Sua vida literária e artística inicia-se durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto segue com sua educação nos anos subterrâneos da resistência cultural polonesa contra a ocupação nazista. Com o fim da guerra, passa a estudar sociologia, além de língua e literatura polonesas, na Universidade de Cracóvia.

Seu primeiro livro é proibido pela censura do regime comunista por não estar de acordo com os regulamentos da literatura socialista. Tenta conformar-se às regras para conseguir publicar, rejeitando mais tarde, a partir da década de 50, a ideologia político-estética socialista. Nega seus dois primeiros livros e “reinicia” sua obra com o volume Wołanie do Yeti (Chamando Yeti), de 1957. Em 1962, chama a atenção da comunidade poética polonesa com o pequeno volume Sól (Sal). Desde então, seu trabalho espraia-se por pouco mais de 10 volumes de poemas, o último tendo sido publicado em 2005, com o título Dwukropek, “Dois pontos”, como no sinal de pontuação (nota: desde então, a poeta publicou em 2009 o volume Tutaj, "Aqui"). Wislawa Szymborska era uma discreta poeta polonesa até tornar-se mundialmente conhecida em 1996, ao vencer o Prêmio Nobel de Literatura.



Para contextualizarmos o trabalho de Wislawa Szymborska em seu momento histórico-poético, teríamos que compreender que este surge em um período confuso e de classificação ainda polêmica quando, no pós-guerra, muitos poetas modernistas ainda estavam vivos e produzindo suas maiores obras, e uma nova geração começava a formar-se, alguns buscando ser ainda "altos modernistas", outros seguindo tendências menos conhecidas dos movimentos de vanguarda e retaguarda do início do século XX. Wislawa Szymborska é contemporânea de poetas como João Cabral de Melo Neto, Paul Celan, Frank O´Hara, Robert Creeley e Ingeborg Bachmann, que retomam o trabalho literário dos primeiros modernistas. Ao mesmo tempo, é contemporânea de poetas experimentais como Henri Chopin e Bob Cobbing, mostrando a pluralidade poética do pós-guerra como algo muito mais complexo do que nossa tentativa de abarcá-la sob a sombrinha do conceito de "pós-modernismo".

Talvez seja uma das últimas representantes de algumas das tendências do que geralmente chamamos, no singular, de Alto Modernismo. Com um humor muitas vezes auto-depreciativo, a ironia é uma de suas ferramentas favoritas. Há um texto interessante de W.H. Auden em que ele discute traduções do trabalho de Konstantínos Kaváfis para o inglês, comentando o módulo de pensamento do poeta grego que, segundo Auden, permitia reconhecermos um poema de Kaváfis em qualquer língua, não por um estilo específico do que nós hoje chamaríamos de materialidade sígnica de sua linguagem poética, mas por certo tom e forma de pensamento que tornavam seus poemas únicos e ao mesmo tempo compreensíveis em outras culturas e línguas. Sem conhecer polonês, torna-se impossível julgar a materialidade sígnica da poesia de Wislawa Szymborska. Pergunto-me, porém, se poderíamos falar de seu trabalho em termos parecidos aos de Auden sobre Kaváfis. Tendo lido traduções para poemas da polonesa em português, inglês, espanhol e alemão, e reconhecendo sempre este "módulo de pensamento", este "tom" inconfundível, poderia dizer que Szymborska é um belíssimo exemplo do "verso livre" que depende de um talento poético invulgar em seus mais sutis artifícios.


Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co., 3 de novembro de 2008

§
§

PEQUENA ANTOLOGIA DE POEMAS DE WISLAWA SZYMBORSKA


A mulher de Lot

Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.


(tradução de Regina Przybycien)

§

Gente na ponte

Estranho planeta e nele essa gente estranha.
Sujeita ao tempo, não o reconhece.
Tem seu jeito de expressar seu desagrado.
Faz pequenas pinturas assim como esta:

Nada especial à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma das suas margens.
Vê-se uma canoa forçando seu curso contra a corrente.
Vê-se uma ponte sobre a água e vê-se gente na ponte.
Essa gente claramente apressa o passo,
porque de uma nuvem escura
começou a cair uma bruta chuva.

A questão é que ali nada mais acontece.
A nuvem não muda a cor nem a forma.
A chuva nem aumenta nem cessa.
A canoa navega sem se mover.
A gente na ponte corre
no mesmo lugar de ainda há pouco.

É difícil passar sem um comentário:
Esse não é de modo algum um quadro inocente.
Aqui o tempo foi suspenso.
Deixou-se de levar em conta suas leis.

Foi privado da influência no curso dos eventos.
Foi desrespeitado e insultado.

Por causa de um rebelde
um tal Hiroshige Utagawa
(um ser que por sinal,
como sói acontecer, faz muito que se foi),
o tempo tropeçou e caiu.

Talvez seja só uma simples brincadeira,
uma travessura na escala de um par de galáxias,
em todo caso porém
acrescentemos o seguinte:

Tem sido de bom-tom há gerações
ter a obra em alta conta,
deslumbrar-se e comover-se com ela.

Tem aqueles para quem nem isso basta.
Ouvem até o barulho da chuva,
sentem as gotas frias no pescoço e nas costas,
olham a ponte e as pessoas,
como se lá também se vissem,
na mesma corrida que nunca termina
na estrada sem fim, eternamente à frente
e acreditam, na sua desfaçatez,
que de fato é assim.

(tradução de Regina Przybycien)

§

Abaixo, poemas em tradução de Júlio Sousa Gomes

Amor à primeira vista

Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.

Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram —
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
— mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.

Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.

Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.

Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?

Punhos de poeta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.

§§§

Estação

Foi com pontualidade
que não cheguei à cidade de N.

Uma carta por enviar
te avisara.

Conseguiste não chegar
à hora prevista.

O comboio parou na linha n. 3.
Saiu imensa gente.

Seguiu na multidão para a saída
a minha ausência.

Tomou apressadamente o meu lugar
um grupo de mulheres
em toda aquela pressa.

Correu para uma delas
alguém que desconheço,
mas que ela reconheceu
de imediato.

Trocaram então ambos
um beijo que não nosso
durante o qual levou sumiço
a mala que não minha.

A estação da cidade de N.
passou sem problemas o exame
de existência objetiva.

Permaneceu no seu lugar o todo,
moveram-se os detalhes
pelos carris previstos.

Chegou mesmo a efectuar-se
o combinado encontro.

Fora do alcance
da nossa presença.

No paraíso perdido
da verossimilhança.

Noutro lugar.
Noutro lugar.
Como elas vibram, estas palavritas.


§§§


Na torre de Babel

Que horas são? — Sim, estou feliz
e só me falta um guizo no pescoço
para enquanto tu dormes ele retinir sobre ti.
Não ouviste então a tempestade? O vento assolou as muralhas,
a torre urrou como um leão pelo portão
a ranger nas dobradiças.
— Como é que podes não te lembrar?
Eu trazia um vestido cinzento muito simples
de abotoar nos ombros. — E logo a seguir
o céu explodiu em mil clarões.
— Como é que eu podia entrar
se tu não estavas sozinho! — E vi de súbito
as cores de antes de haver olhar.
— É pena
que não possas perdoar-me. — Tens toda a razão,
foi um sonho de certeza.
— Por que é que mentes?
Por que me tratas pelo nome dela?
Amá-la ainda? — Sim! Queria muito
que ficasses comigo.
— Não estou triste,
eu devia ter adivinhado.
Ainda pensar nele? — Não estou a chorar!
E é tudo? — De ninguém como de ti.
Pelo menos és sincera. — Fica tranquilo,
vou-me embora da cidade. — Fica tranquilo,
eu vou-me embora daqui.
— Tens umas mãos tão bonitas.
É uma velha história. Foi duro
mas passou sem deixar mossas.
— Não tem de quê,
meu caro, não tem de quê. — Não sei
que horas são e nem quero saber.


§§§


Alguns gostam de poesia

Alguns —
quer dizer que nem todos.
Nem sequer a maior parte mas sim uma minoria.
Não contando as escolas onde se tem que,
e quanto a poetas,
dessas pessoas, em mil, haverá duas.

Gostam —
mas gosta-se também de sopa de espaguete,
dos galanteios e da cor azul,
do velho cachecol,
brindar à nossa gente,
fazer festas ao cão.

De poesia —
mas que é isso a poesia?
Muitas e vacilantes respostas
já foram dadas à questão.
Por mim não sei e insisto que não sei
e esta insistência é corrimão que me salva.

§§§

Gente na ponte

Estranho planeta e nele estranha gente.
Cedem ao tempo e não o querem reconhecer.
Têm maneiras de mostrar como se opõem.
Fazem desenhos como o que se segue:

Nada de especial à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma de suas margens.
Uma canoa que com dificuldade avança na corrente.
Sobre a água uma ponte e gente nessa ponte.
Gente que nitidamente acelera o passo
porque de uma nuvem negra
a chuva desatou forte a fustigar.

O que há nisto de especial é que isto é tudo.
A nuvem não muda de forma nem de cor.
A chuva não cai mais forte nem se interrompe.
A canoa navega imobilizada.
Essa gente na ponte vai correndo
no exacto lugar de há um bocado.

É difícil deixar de comentar:
Não é de modo algum um desenho inocente.
Aqui o tempo foi suspenso.
Deixaram de contar com os seus direitos.
Privaram-no de influência sobre os acontecimentos.
Menosprezam-no e insultaram-no.

Por conta de um rebelde,
um tal de Hiroshige Utagawy
(ser este que de resto
já há muito e como devia ser se foi)
o tempo tropeçou e caiu.

Talvez se trate só de uma partida insignificante,
um cisco apenas à escala das galáxias,
pelo sim, contudo, e pelo não
acrescentemos o que segue:

Revela-se aqui ser de bom-tom
apreciar devidamente este desenho,
fascinar-se a gente com ele e comover-se há gerações.

Há aqueles para os quais nem isto basta.
Chegam até a ouvir a chuva murmurar,
sentem-lhe o frio nas costas e pescoços,
olham a gente e a ponte
como se também se vissem nela,
no mesmo correr para o que nunca é mais que isso,
uma estrada sem fim, a vencer pelos séculos,
e crêem na sua desfaçatez
que é isso na realidade o que acontece.



Traduções de Júlio Sousa Gomes, publicadas no livro Paisagem com Grão de Areia, Lisboa: Relógio d’água, 1996.

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Um comentário:

Ravi disse...

nossa como a tradução do Júlio Sousa Gomes para "Alguns gostam de poesia" é mais limpa e segura do que no livro "Poemas". Sempre achei essas questões da tradução muito frágil, queria muito ler Wislawa na sua língua, deve ser sublime.

Obrigado por trazer essa outra possibilidade.

Abraço.

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