pequenina
de qualquer esquina,
e depois tomar um rabo
-de-galo
no boteco ao lado.
A editora paulista Companhia das Letras lança este mês um volume que reúne toda a poesia de Paulo Leminski, em edição comercial que recolocará em grande circulação aquele que nunca deixou de circular por nossas cabeças. Para celebrar, reposto aqui um texto que escrevi para a franquia eletrônica da Modo de Usar & Co. em julho de 2008, na séria "Sintonia de nossa sincronia".
Paulo Leminski (1944 - 1989)
Modo de Usar & Co., 30 de julho de 2008na série "Sintonia de nossa sincronia"
Paulo Leminski nasceu em Curitiba, como todos já deveriam saber, e aí mesmo morreu, pouco antes de completar 45 anos. É um dos poetas brasileiros, surgidos após a década de 50, de maior influência entre os poetas das décadas seguintes. À época de sua morte, já havia conquistado um lugar de destaque e relevo na poesia brasileira do pós-guerra.
Seus livros mais importantes foram publicados na década de 70, um momento de embate poético dualista, entrincheirado entre noções poéticas que passaram a ser narradas por muito tempo como se numa batalha por hegemonia, tanto por parte de poetas ligados às neovanguardas brasileiras do pós-guerra (baseados em grande parte em São Paulo), como por aqueles que ficaram conhecidos como poetas marginais, que poderíamos chamar de Grupo do Mimeógrafo, baseados no Rio de Janeiro. A insistência nestes rótulos faz cada vez menos sentido, mesmo que alguns poetas ainda dependam deles para manter sua narrativa dualista nos dias de hoje (especialmente em SP). Porém, para os que não estão interessados primordialmente em escolas e grupos, sabendo que uma contextualização crítica e est-É-tica precisa ir além disso, as décadas de 60 e 70 começam a mostrar-se em sua verdadeira complexidade. Como rotular, por exemplo, uma década como a de 60, quando surgiram na poesia brasileira poetas tão diferentes e independentes como Leonardo Fróes, Roberto Piva, Sebastião Nunes, Orides Fontela, Sebastião Uchoa Leite, Oliveira Silveira e Torquato Neto?
Ao final da década de 80 e através da década de 90, tentou-se instituir uma narrativa historiográfica que criava uma rivalidade razoavelmente fictícia na década de 70, numa luta por hegemonia crítica que por muito tempo fez da década o período oficial de um único grupo de poetas, ao qual foi dado o rótulo de "poesia marginal". No entanto, os poetas ativos naquela década e que hoje parecem mostrar a maior vitalidade poética aos olhos dos poetas mais jovens podem apenas com muito esforço, e em um discurso crítico que impede uma compreensão mais ampla de seus trabalhos, ser encaixotados juntos sob qualquer rótulo limitado, que invariavelmente apaga as diferenças que fazem dos poetas seres individuais, ainda que ligados a estéticas coletivas. É ainda hábito em certos setores, por exemplo, referir-se à poesia marginal, no singular, sem qualquer discernimento crítico que compreenda as características particulares de poetas como Ana Cristina César, Chacal, Eudoro Augusto ou Francisco Alvim, tão diferentes uns dos outros.
A obra de um poeta como Paulo Leminski já foi conectada pela crítica tanto aos poetas do pós-concretismo paulista, como aos marginais cariocas. Outros grupos contemporâneos têm reivindicado a candidatura e filiação de Leminski para seus partidos poéticos. Nada disso ajuda-nos a compreender a singularidade de sua poética, que passa por um texto denso e plurilingüista como o Catatau, e ainda por sua poesia conscientemente questionadora das trincheiras entre formalismo e informalidade, em livros como Caprichos e relaxos ou Distraídos venceremos, títulos bastante sugestivos da atitude artística de Leminski, que jamais cedeu a um experimentalismo racionalista estéril e conceitual, e é um dos poetas brasileiros do pós-guerra que melhor compreenderam a lição de Pound - a de que “only emotion endures”.
Se o agrupamento de poetas ajuda sua recepção crítica imediata, a longo prazo tal postura apenas nubla a compreensão crítica de suas obras, lançando às sombras muitas vezes os melhores poetas da manada. Já se passaram mais de 30 anos desde as estreias de alguns destes poetas da década de 70.
Porém, se apenas nos últimos anos começamos a saber separar e discernir entre nossa compreensão da obra de Haroldo de Campos e a de Augusto de Campos, e estas da obra de Décio Pignatari (enquanto as de Ronaldo Azeredo, Pedro Xisto e Edgard Braga, por exemplo, permanecem infelizmente como apêndices de núcleos), talvez precisemos esperar ainda 20 anos mais para vermos as obras de Paulo Leminski, Ana Cristina César, Francisco Alvim ou Afonso Henriques Neto compreendidas em suas particularidades.
Este discurso por rótulos e trincheiras precisa ser suprimido, pois só assim poderemos compreender e fazer justiça a uma década em que surgiram poetas tão importantes e diversos entre si, como Paulo Leminski, Wally Salomão, Duda Machado, Afonso Henriques Neto, Elisabeth Veiga, Ronaldo Brito, Eudoro Augusto, Ana Cristina César ou Júlio Castañon Guimarães, entre outros. Tal lista tampouco se quer como proposta canônica.
O que nos interessa em Paulo Leminski, o que nos parece útil como jovens poetas, é justamente sua capacidade inigualável de manter uma alta qualidade composicional, sem perder de vista o leitor com quem estabelece a sua poesia, em poemas que caminham na corda bamba e deliciosa como fronteira que ainda se faz sentir entre escrita e oralidade, com Leminski equilibrando-se entre o experimentalismo e o lirismo que remonta à tradição trovadoresca. Também por um motivo importante: Paulo Leminski fazia tudo com fúria e humor.
Não queremos saquear sua aura de autoridade, nem incluí-lo em antologias em que surgiríamos como seus herdeiros, legitimados por sua presença. Temos apenas a grande certeza de que Paulo Leminski é um dos poetas mais úteis e necessários da atualidade.
--- Ricardo Domeneck
§
TEXTOS E VÍDEOS DE PAULO LEMINSKI
(Documentário "Polaco Loco Paca". Direção: João Knijinik. 10'50")
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Primeiras páginas do Catatau
ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui presente, neste labirinto de enganos deleitáveis, — vejo o mar, vejo a baía e vejo as naus. Vejo mais. Já lá vão anos III me destaquei de Europa e a gente civil, lá morituro. Isso de “barbarus — non intellegor ulli” — dos exercícios de exílio de Ovídio é comigo. Do parque do príncipe, a lentes de luneta, CONTEMPLO A CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS ENIGMAS E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA. Desde verdes anos, via de regra, medito horizontal manhã cedo, só vindo à luz já sol meiodia. Estar, mister de deuses, na atual circunstância, presença no estanque dessa Vrijburg , gaza de mapas, taba rasa de humores, orto e zôo, oca de feras e casa de flores. Plantas sarcófagas e carnívoras atrapalham-se, um lugar ao sol e um tempo na sombra. Chacoalham, cintila a água gota a gota, efêmeros chocam enxames. Cocos fecham-se em copas, mamas ampliam: MAMÕES. O vapor umedece o bolor, abafa o mofo, asfixia e fermenta fragmentos de fragrâncias. Cheiro um palmo à frente do nariz, mim, imenso e imerso, bom. Bestas, feras entre flores festas circulam em jaula tripla — as piores, dupla as maiores; em gaiolas, as menores, à ventura — as melhores. Animais anormais engendra o equinócio, desleixo no eixo da terra, desvio das linhas de fato. Pouco mais que o nome o toupinambaoults lhes signou, suspensos apenas pelo nó do apelo. De longe, três pontos... Em foco, Tatu, esferas rolando de outras eras, escarafuncham mundos e fundos. Saem da mãe com setenta e um dentes, dos quais dez caem aí mesmo, vinte e cinco ao primeiro bocado de terra, vinte o vento leva, quatorze a água, e um desaparece num acidente. Um, na algaravia geral, por nome, Tamanduá, esparrama língua no pó de incerto inseto, fica de pé, zarolho de tão perto, cara a cara, ali, aí, esdruxula num acúmulo e se desfaz eclipsado em formigas. Pela ou na rama, voce mettalica longisonans, a araponga malha ferro frio, bentevi no mal-me-quer-bem-me-quer. A dois lances de pedra daqui, volta e meia, dois giros; meia volta, vultos a três por dois. De onde em onde, vão e vêm; de quando em vez, vêem o que tem. Perante o segundo elemento, a manada anda e desanda, papa e bebe, mama e baba. Depois da laguna, enchem a anterior lacuna. Anta, nunca a vi tão gorda. Nuvens que o gambá fede empalidecem o nariz das pacas. Capivara, estômago a sair pelas órbitas, ou, porque fartas se estatelam arrotando capinzais ou, como são sabem senão comer, jogam o gargalo para o alto, arreganhando a dentadura, tiriricas de estar sem fome. Ensy, joão chamado bobo, não tuge nem muge, não foge tiro, brilho nem barulho — gálbula, brachyptera, insectívora, taciturna, non scansoria, stupida — , para jogar sério a esmo. Monos se penteando espelham-se no banho das piranhas, cara quase rosto no quasequase das águas: agulhas fazem boa boca, botam mau olhado anulando-lhes a estampa, símios para sempre. Na aguada, o corpanzil réptil entretece lagartos e lagostas. Monstros da natura desvairada nestes ares, à tona, boquiaberta, à toa, cabisbaixa, o mesmo nenhum afã. Tira pestana ao sol uma jibóia que é só borboletas. Tucanos atrás dos canos, máscara sefardim, arcanos no tutano. Jibóia, no local do crime, desamarram espirais englobando cabras, ovelhas, bois. Chifres da boca para fora — esfinges bucefálicas entre aspas — decompõem pelos mangues o conteúdo: cospem cornos o dobro. Exorbitantes, duram contos de séculos, estabelece Marcgravf, na qualidade de profeta. Vegetam eternidades. Crias? Mudas? Cruzam e descruzam entre si? Não, esse pensamento, não, — é sístole dos climas e sintoma do calor em minha cabeça. Penso mas não compensa: a sibila me belisca, a pitonisa me hipnotiza, me obelisco, essa python medusa e visa, eu paro, viro paupau, pedrapedra. Dédalos de espelho de Elísio, torre babéu, hortus urbis diaboli, furores de Thule, delícias de Menrod, curral do pasmo, cada bicho silencia e seleciona andamentos e paramentos. Bichos bichando, comigo que se passa? Abrir meu coração a Artyczewski. Virá Artyczewski. Nossas manhãs de fala me faltam. Um papagaio pegou meu pensamento, amola palavras em polaco, imitando Articzewski (Cartepanie! Cartepanie!). Bestas geradas no mais aceso fogo do dia... Comer esses animais há de perturbar singularmente as coisas do pensar. Palmilho os dias entre essas bestas estranhas, meus sonhos se populam da estranha fauna e flora: o estalo de coisas, o estalido dos bichos, o estar interessante: a flora fagulha e a fauna floresce... Singulares excessos... In primis cogitationibus circa generationem animalium, de his omnibus non cogitavi. Na boca da espera, Articzewski demora como se o parisse, possesso desta erva de negros que me ministrou, — riamba, pemba, gingongó, chibaba, jererê, monofa, charula, ou pango, tabaqueação de toupinambaoults, gês e negros minas, segundo Marcgravf. Aspirar estes fumos de ervas, encher os peitos nos hálitos deste mato, a essência, a cabeça quieta, ofício de ofídio.
§
§
um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada
depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um eluárd um ginsberg
por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores
§
moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia
vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia
§
o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique
§
Círculo
cansei da frase polida
por anjos da cara pálida
palmeiras batendo palmas
ao passarem paradas
agora eu quero a pedrada
chuva de pedras palavras
distribuindo pauladas
§
enchantagem
de tanto não fazer nada
acabo de ser culpado de tudo
esperanças, cheguei
tarde demais como uma lágrima
de tanto fazer tudo
parecer perfeito
você pode ficar louco
ou para todos os efeitos
suspeito
de ser verbo sem sujeito
pense um pouco
beba bastante
depois me conte direito
que aconteça o contrário
custe o que custar
deseja
quem quer que seja
tem calendário de tristezas
celebrar
tanto evitar o inevitável
in vino veritas
me parece
verdade
o pau na vida
o vinagre
vinho suave
pense e te pareça
senão eu te invento por toda a eternidade
§
já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo
morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma
morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma
§
desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando
nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando
não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado
[aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando
nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormendo
§
eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito
eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões
em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois
§
Bem no Fundo
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
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