segunda-feira, 8 de julho de 2013

Pequena conversa sobre Hadewijch de Antuérpia (1190 - 1240)



Hadewijch foi uma freira da Ordem das Beguinas, vivendo, acredita-se, no Ducado de Brabante (hoje sul dos Países Baixos e norte da Bélgica), nascida por volta de 1190 e falecida por volta de 1240. É possível que tenha nascido em Antuérpia, daí ser conhecida como Hadewijch de Antuérpia. A maior parte de seus textos foi escrita em flamengo antigo, a maioria dos manuscritos encontrada próximo a Bruxelas. Vivendo no tempo em que imperava na Europa a poesia cantada dos troubadours provençais e dos minnesänger germânicos, Hadewijch transformaria o amor cortês de seus contemporâneos em cantares de amor místico, com poemas estróficos, além de suas cartas e descrições de suas visões. Ainda que o amor carnal dos trovadores transforme-se em um amor frequentemente sublimado, há em Hadewijch uma consciência da corporalidade humana, implicando a grande parte das oposições e conflitos da existência em busca de transcendência, como ao escrever na estrofe:

Às vezes indulgentes e às vezes rudes,
às vezes tenebrosos e às vezes brilhantes:
ao liberar consolo, no medo coercitivo,
no aceitar e no dar,
devem aqueles que são
cavaleiros errantes no Amor
viver sempre aqui embaixo.


Escrevendo num período imediatamente posterior a Hildegarda de Bingen (Hildegard von Bingen, 1098 – 1179) e anterior a Juliana de Norwich (Julian of Norwich, 1342 – 1416), Hadewijch de Antuérpia está entre os poetas místicos mais importantes da Idade Média. Sua compreensão da dilaceração humana entre espiritualidade e carnalidade a levaria ao uso do oxímoro muito antes de sua prática frequente na poesia lírica, mas com um despojamento ascético a que sentimos a tentação de chamar, uma vez mais, de est-É-tico, por não se entregar a mera bula de parâmetros de qualidade poética, mas guiado por uma necessidade intrínseca a unir em si os próprios dualismos que tematiza.


Quem conquista o Amor é ele mesmo conquistado;
assim ele é servido;
e quando acalenta quem quer que seja
ele consuma
em nova moldura tudo o que possui.
Assim, sendo velho, aprende através do poder do Amor
conquistar a paz,
onde ele descobre que o preço do Amor
é a miséria.


Tal despojamento seria encontrado na poesia mística posterior de São João da Cruz (San Juan de la Cruz, 1542 – 1591), como nos versos do "Cântico Espiritual", ao escrever "Descobre tua presença / e mate-me tua vista e formosura; / olha que a doença / de amor, que não se cura / senão com a presença e a figura”, ou nas estrofes:

¡Ay, quién podrá sanarme!
Acaba de entregarte ya de vero;
no quieras enviarme
de hoy más ya mensajero,
que no saben decirme lo que quiero. 

Y todos cantos vagan,
de ti me van mil gracias refiriendo.
Y todos más me llagan,
y déjame muriendo
un no sé qué que quedan balbuciendo.

(San Juan de la Cruz, "Cántico espiritual", 1578)


Na língua portuguesa, ao ler a poesia mística de Hadewijch de Antuérpia, é difícil não pensar em certas passagens de Antônio Vieira (1608 - 1697), como no "Sermão do Mandato" (1643): "Se quando se rendem ao mesmo amor todos os contrários, será justo que lhe resistam os seus, e se na hora em que morre de amor sem remédio o mesmo amante, será bem que lhe faltem os corações daqueles por quem morre? Amemos a quem tanto nos amou, e não haja contrário tão poderoso que nos vença, para que não perseveremos em seu amor."

Em uma das estrofes de Hadewijch, lê-se:

O que é este suave peso do Amor
e seu jugo de suave sabor?
Será a nobre carga do espírito
com que o Amor toca a alma amante
e a une a ele numa só vontade
e em um só ser, sem retorno?

Assim, talvez grande parte da poesia mística ocidental balance-se entre a carnalidade espiritual do "Cântico dos cânticos", do Rei-poeta Salomão, e a sublimação transcendente, por exemplo, que encontramos na "I Espístola aos Coríntios", de Paulo. Na lírica profana, digamos, tal conflito encontraria inúmeras encarnações poéticas, talvez uma das mais belas em português na lírica de Luís de Camões (1524 - 1580), como nos famosíssimos: "É querer estar preso por vontade; / É servir a quem vence, o vencedor; / É ter com quem nos mata lealdade. / Mas como causar pode seu favor / Nos corações humanos amizade, / se tão contrário a si é o mesmo Amor?", remetendo-nos aos versos de Hadewijch citados na estrofe ao início deste texto: "Quem conquista o Amor é ele mesmo conquistado; / assim ele é servido;". Ora sublimação e transcendência, ora a aceitação dos "cavaleiros errantes no Amor / (de) viver sempre aqui embaixo", como em "The ecstasy", de John Donne: "This ecstasy doth unperplex / (We said) and tell us what we love; / We see by this, it was not sex ; / We see, we saw not, what did move: // But as all several souls contain / Mixture of things they know not what, / Love these mix'd souls doth mix again, / And makes both one, each this, and that."


Tal mística, em tempos mais recentes, se mostraria com força em uma de suas encarnações poéticas modernas mais fortes a partir da batalha espiritual que gerou em Rainer Maria Rilke (1875 - 1926) suas "Elegias de Duíno" (1922), aqui na tradução de Dora Ferreira da Silva: "Frutificarão afinal esses longínquos / sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se / do objeto amado e superá-lo, frementes? / Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo / mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém". Ou em Simone Weil (1909 - 1944), iniciando seu texto sobre o amor, mais tarde coligido em Gravidade e Graça (1942), com as palavras: "O amor é o sinal de nossa miséria. Deus pode tão-só amar-se a si mesmo. Nós podemos tão-só amar a outrem". 

Descobri o trabalho de Hadewijch de Antuérpia em relação à obra da portuguesa Maria Gabriela Llansol (1935 - 2008), que faz inúmeras referências a ela em seu Um Falcão no Punho (1985), tendo conversado a respeito das duas místicas com a poeta cearense Érica Zíngano em Lisboa. E é pensando nestas mulheres todas que termino este texto de apresentação com um poema de Hilda Hilst (1930 - 2004):

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

(Hilda Hilst, Cantares do Sem Nome e de Partidas, 1995)


Abaixo, um dos "Poemas espirituais" de Hadewijch de Antuérpia, em tradução do português João Barrento.


POEMA DE HADEWIJCH DE ANTUÉRPIA

I

Por mais tristes que estejam a estação e as avezinhas,
não pode está-lo o nobre coração.
Mas quem quiser afrontar os trabalhos de Amor
d´Ele só terá de aprender
- doçura e crueza,
alegria e dor –
o que é preciso experimentar para amar.


II

As almas orgulhosas que cresceram na dilecção
e sabem amar sem que nada as acalme,
devem ser em todos os tempos
fortes e ousadas,
sempre prontas a receber
consolo ou aflição
por bem de Amor apenas.


III

Estranhas são as vias do Amor:
e bem o sabe quem as quer seguir:
muitas vezes ele perturba o coração seguro:
quem ama não encontra constância.
Aquele a quem a Caridade
toca no fundo da alma
conhecerá muita hora de desolação.


IV

Ora ardendo, ora frio,
agora tímido e ainda há pouco ousado,
numerosos são os caprichos do Amor.
Mas a toda a hora ele nos lembra
a nossa imensa dívida
para com o seu alto poder,
que nos atrai e só a Ele nos destina.


V

Ora gracioso, ora terrível,
agora próximo e ainda há pouco distante:
para quem o conhece e nele confia
isto mesmo é alegria maior.
Como Amor
num só acto
fere e abraça!


VI

Ora humilhado, ora exaltado,
agora escondido, manifesto ainda há pouco,
para se ser um dia atingido pela dilecção
é preciso arriscar muita aventura –
antes de alcançar
aquele ponto em que se desfruta
da pura essência do Amor.


VII

Ora leve, ora pesado,
sombrio agora e claro ainda há pouco,
na doce paz, na sufocante angústia,
dando e recebendo –
dupla vida,
serve aos espíritos
que se perdem no amor.


(tradução de João Barrento)




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