terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Dez anos sem Hilda Hilst



Completam-se hoje dez anos da morte de Hilda Hilst, a 4 de fevereiro de 2004, em um hospital de Campinas. Trata-se de uma década sem aquela que foi um dos mais completos e importantes escritores brasileiros do pós-guerra. Esta percepção, sabemos, tardou a chegar e mesmo hoje é provável que não seja unânime. De qualquer forma, sabemos o que dizia Nelson Rodrigues da unanimidade, e creio que a própria Hilst não esperaria que certos concidadãos seus aceitassem ou compreendessem seu trabalho, especialmente nestes dias de fanatismo religioso e reação a avanços no campo de direitos humanos ligados à liberdade sexual.

Com a edição completa de sua obra poética, dramatúrgica e em prosa nos últimos anos, Hilda Hilst avulta-se para mim como um dos artistas mais fenomenais que este território gerou, servindo de exemplo e fonte inesgotável de aprendizagem para os escritores de minha geração e os novíssimos. Sua poesia de feitio clássico, em que a renovação e uso que faz da línguagem de Catulo está baseada não em qualquer formalismo classicista de ideologia, mas na compreensão de sua atualidade propiciatória para o misticismo carnal e telúrico que informava sua mente poética, tem poucos paralelos. No país da elegância minimalista, ainda que violenta, de Machado de Assis e Graciliano Ramos, sua obra desbordada e febril talvez encontre um antecessor apenas em Raul Pompeia. Seu trabalho pertence à linhagem de autores como Genet, Beckett e Bataille, que não fizeram exatamente escola entre nós. Uma obra como Qadós (1973) é um artefato inédito e assustador, demonstrando como dualidades e dicotomias que fizeram as delícias de nossa crítica uniam-se em cicatrizes e feridas violentas no trabalho de Hilst e alguns poucos outros. Sua poesia amorosa e satírica permanecem como exemplos de exuberância de linguagem e de inteligência raramente atingidas entre nós.

Descobri seu trabalho em 1997, graças a uma resenha sobre seu último romance, Estar sendo. Ter sido (1997). A resenha terminava com os versos finais do poema "Mula de Deus", que encerrava o livro: "Palha / Trapos / Uma só vez o musgo das fontes / O indizível casqueando o nada // Essa sou eu. // Poeta e mula.Nunca me esquecerei da febre sentida, de pé, lendo aquele poema numa livraria, sem dinheiro para comprar o livro. "Mula de Deus" é um dos grandes poemas dos anos 90. Vale lembrar que 1997 foi o ano de publicação da obra completa de João Cabral de Melo Neto, em dois volumes, o tempo dos louvores à secura, à economia, ao antilirismo, com a instituição e repetição ininterrupta destes conceitos como valores estéticos inquestionáveis, que ainda povoavam ensaios e resenhas até não muito tempo atrás. Parecia natural, neste ambiente, que poetas como Hilda Hilst ou Roberto Piva, entre outros, não encontrassem ouvidos atentos.

Entre meus amigos na USP naqueles anos, criou-se uma espécie de grupo de iniciados cultores de Hilst, assim como líamos Clarice Lispector feito instâncias de insuperável sutileza e violência políticas e est-é-ticas. Lembro-me que em 2003 e 2004, a diretora de teatro Verônica Veloso e eu planejávamos uma visita não-anunciada a Hilda Hilst na Casa do Sol, viagem que íamos protelando por timidez e falta de meios, até que recebemos a notícia de sua morte a 4 de fevereiro de 2004 e nos arrependemos amargamente de não ter conseguido fazer a viagem a Campinas. 

Restou-nos a obra da grande escritora e nossa satisifação em ver seu trabalho tornar-se aos poucos um dos momentos mais altos da escrita brasileira das últimas décadas, algo que vai se firmando cada vez mais.

A Modo de Usar & Co. já dedicou uma postagem a Hilda Hilst em fevereiro de 2009, com poemas e o conto "Teologia Natural". Retornamos a ela hoje, com esta pequena homenagem e mais textos da moradora da Casa do Sol.





MAIS TEXTOS DE HILDA HILST

Trecho de Qadós (1973)

Difícil de explicar, ia dizendo aos borbotões que essas coisas senhora são para fazer uma limpeza na minha alma devo começar por aí não sei se a senhora entende mas o branco é demais importante para começar as orações e acendendo as velas fica visível para a Excelência que sou eu mesmo que me acendo, matéria de amor etc. etc. A maioria revirava os olhos, torcia a boca, umas coçavam os cotovelos, a cintura, diziam: homem, se queres comida eu entendo mas não tenho, o resto é confusão, despacha-te. Às vezes davam-me panos pretos, ou alaranjados ou com listas ou vermelho com florzinhas, nunca o branco, Excelência, e como último recurso para conseguir os círios eu entrava numa loja aos solavancos, o olho girassol e gritava: duas velas por favor, a mãe agoniza, em nome do vosso nosso Deus duas velas para as duas mãos de mamãe. E saía como o raio, como o cão danado, como Tu mesmo que te evolas quando Te procuro, ai Sacrossanto por que me enganaste repetindo: hic est filius meus dilectos, in quo mihi bene complacui? Nudez e pobreza, humildade e mortificação, muito bem, Grande Obscuro, e alegria, é o que dizem os textos, humilde e mortificado tenho sido, mas alegre, mas alegre como posso? Se continuas a dar voltas à minha frente, estou quase chegando e já não estás e de repente Te ouço, bramindo: mata o rei, Qadós, o inteiro de carne e de pergunta, pára de andar atrás de mim como um filho imbecil. Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta? Como queres o meu ser humilde e mortificado se antes, muito antes do meu reconhecimento em humildade e mortificação, Tu mesmo e os outros me obrigam a ser humilde e mortificado? Como queres que eu me proponha ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de fogo já engoliu o melhor de mim e cuspiu as escórias, um amontoado de vazios, um nada vidrilhado, um broche de rameira diante de Ti, dentro de mim? E as gentes, Máscara do Nojo, como pensas que é possível viver entre as gentes e Te esquecer? O som sempre rugido da garganta, as mãos sempre fechadas, se pedes com brandura no meio da noite que te indiquem o caminho roubam-te tudo, te assaltam, e se não pedes te perseguem, se ficas parado te empurram mais para frente, pensas que vais a caminho da água, que todos vão, que mais adiante refrescarás pelo menos os pés e ali não há nada, apenas se comprimem um instante, bocejam, grunhem, olham ao redor, depois saem em disparada. Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros embaixo do braço, e se via alguém mais louco do que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, depois deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou, eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós. Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão. Não tenho não senhor, só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos. Sou quase sempre esse, matéria de vileza e confusão para os outros, para os Teus olhos um nada que te persegue, um nada que se agarra às tuas babas, e como é difícil te perseguir, nem o rasto, nem a estria brilhante (aquela que os caracóis deixam depois da chuva) eu vejo, pois é pois é, seria fácil para o teu inteiro gosma e fereza, o teu inteiro amoldável, me dar umas pequeninas alegrias e te mostrares um dia Grande Caracol baboso aguado brilhante, te mostrares um dia intimidade, vê Cão de Pedra, agora não sei, fui íntimo para um uma ou dois, nem me lembro, e a princípio como me trataram bem, cuidado na fala, langor no olhar, a minha palavra era véu dourado que pouco a pouco pousava, translúcido, luminosidade delicada, eu Qadós falava e o espaço era pérola, leite fresco, pistilo, um ou três relinchos para aquecer ainda mais tanta mornura, sorriam, lábio frouxo encantado, gula de me possuir inteiro, se era mulher ela me dizia isso mesmo gula de te possuir inteiro, Qadós, se era homem também, aí eu me escondia, dias e dias sobre Plotino, outros dias apenas flutuava sobre o verde dos parques, de longe me seguiam, eu de névoa transfixado, melindre dissolvência, Qadós O Inteiro Desejado.

§

O Poeta Inventa Viagem, Retorno e Morre de Saudade (I)

Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.

in Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974)

§

Dez Chamamentos Ao Amigo (I)

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

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Um comentário:

wilton disse...

Obrigado pela leitura. Fazia tempo que não lia sobre Hilda Hilst.

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