quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Poema recente de William Zeytounlian


passado

o que assoviar
quando se esquece
a última das
canções?

a aposta
absurda foi
para que não
precisássemos
mais delas

nesse ínterim,
pensar sobre
os rumos
da poesia
enquanto há
sem-teto
expatriados
ruínas
famintos
e nosso passado
e seus mortos
e nós, envergonhados de nossa responsabilidade sobre ele
e nós, envergonhados por não assumirmos nossa responsabilidade sobre ele
e nós, envergonhados de nossa vergonha,
incapazes de sentir a vergonha,
incapazes de vergonha
incapazes de qualquer capacidade
incapazes até de incapacidade
e envergonhados por isso,

enquanto se projeta o passado como uma sombra sob nossos pés
enquanto ele se estende interminável até perder-se de vista
olhamos para o passado como para uma sombra
mas nos enganamos
ele é uma sombra,
mas olhamos para ele como para um deserto
e ele é, de fato, um deserto
era,
é,
e no fundo inimaginável deste deserto a perder de vista
se aproxima a ideia de um inimigo
um inimigo a encarar
inimigo afrontável
um inimigo que é maior que qualquer inimigo, pois é gigantescamente ideia
uma ideia amiga sobre a qual nos enganamos
ideia amiga que tomamos por inimiga pois nos afronta
e nos envergonha

essa ideia:
nossa amiga

enquanto
procuramos
dinheiro e
trabalhamos
por comida.



São Paulo, 1988.

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