Existem histórias ainda por ser contadas sobre as literaturas e o Brasil, como a da escrita brasileira produzida fora do país, algo conhecida, mas também a das escritas estrangeiras produzidas no território brasileiro. No primeiro caso, sabemos que muitos escritores compuseram seus livros durante suas passagens por outros países, em grande parte por conta de suas carreiras diplomáticas, como Raul Bopp e João Cabral de Melo Neto, entre outros. Clarice Lispector, ela própria uma imigrante, produziria vários livros fora do Brasil por seu casamento com um diplomata. A experiência de Érico Veríssimo nos Estados Unidos desaguaria no livro Gato preto em campo de neve (1941), e o meu poema favorito de Vinicius de Moraes, "A última elegia", foi escrito na Inglaterra.
"O ROOFS OF CHELSEA
Greenish, newish roofs of Chelsea
Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis
Forlornando baladas para nunca mais!
Ó imortal landscape
no anticlímax da aurora!
ô joy for ever!
Na hora da nossa morte et nunc et semper
Na minha vida em lágrimas!
uer ar iú
Ó fenesuites, calmo atlas do fog
Impassévido devorador das esterlúridas?
Darling, darkling I listen...
“... it is, my soul, it is
Her gracious self...”
murmura adormecida
É meu nome!...
sou eu, sou eu, Nabucodonosor!"
__ Vinicius de Moraes, excerto de "A última elegia", in Cinco elegias (1943).
§
Hoje em dia, poderíamos citar Zuca Sardan, que vive em Hamburgo. Ederval Fernandes vive em Lisboa, e Luca Argel, no Porto. Vivem em Londres Bruno Verner & Eliete Mejorado, do duo Tetine, assim como Karinna Alves Gulias. Barbara Marcel, Érica Zíngano (até pouco tempo) e eu vivemos em Berlim. São alguns exemplos.
"O ROOFS OF CHELSEA
Greenish, newish roofs of Chelsea
Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis
Forlornando baladas para nunca mais!
Ó imortal landscape
no anticlímax da aurora!
ô joy for ever!
Na hora da nossa morte et nunc et semper
Na minha vida em lágrimas!
uer ar iú
Ó fenesuites, calmo atlas do fog
Impassévido devorador das esterlúridas?
Darling, darkling I listen...
“... it is, my soul, it is
Her gracious self...”
murmura adormecida
É meu nome!...
sou eu, sou eu, Nabucodonosor!"
__ Vinicius de Moraes, excerto de "A última elegia", in Cinco elegias (1943).
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Hoje em dia, poderíamos citar Zuca Sardan, que vive em Hamburgo. Ederval Fernandes vive em Lisboa, e Luca Argel, no Porto. Vivem em Londres Bruno Verner & Eliete Mejorado, do duo Tetine, assim como Karinna Alves Gulias. Barbara Marcel, Érica Zíngano (até pouco tempo) e eu vivemos em Berlim. São alguns exemplos.
Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto na Espanha
Já a produção literária de estrangeiros no país tem uma história ainda por contar e menos conhecida. É famosa, é claro, a passagem de Stefan Zweig pelo Brasil e seu suicídio em Petrópolis, o famoso-infame Brasil: País do Futuro (1941).
Também tem caráter já quase lendário o longo período da vida de Elizabeth Bishop no Rio de Janeiro, em Petrópolis e mais tarde em Ouro Preto.
Mario Pedrosa e Benjamin Péret eram cunhados. O filho de Péret e Houston, Geyser, havia nascido no Rio de Janeiro há poucos meses quando o casal foi obrigado a voltar à França. Péret seguiria fascinado pelo Brasil, e deixou textos pioneiros sobre o candomblé e sobre artistas brasileiros como Maria Martins.
Entre os latino-americanos, o caso mais recente e importante foi o do argentino Néstor Perlongher, que viveu exilado em São Paulo e aí escreveu praticamente toda a sua obra, de Alambres (1987) a El chorreo de las iluminaciones (1992), assim como sua pesquisa em O negócio do michê: Prostituição viril em São Paulo, publicada pela Brasiliense em 1987. Por sua vez, foi da Argentina que o galego Lorenzo Varela manteve contacto intenso com os intelectuais brasileiros das décadas de 1950 e 1960, exilado por Franco, e foi ali que Ferreira Gullar escreveu a maior parte de seu Poema Sujo (1976), exilado pela Ditadura Militar.
Também tem caráter já quase lendário o longo período da vida de Elizabeth Bishop no Rio de Janeiro, em Petrópolis e mais tarde em Ouro Preto.
Cadela rosada [Rio de Janeiro]
Elizabeth Bishop
Sol forte, céu azul. O Rio sua.
Praia apinhada de barracas. Nua,
passo apressado, você cruza a rua.
Nunca vi um cão tão nu, tão sem nada,
sem pêlo, pele tão avermelhada...
Quem a vê até troca de calçada.
Têm medo da raiva. Mas isso não
é hidrofobia — é sarna. O olhar é são
e esperto. E os seus filhotes, onde estão?
(Tetas cheias de leite.) Em que favela
você os escondeu, em que ruela,
pra viver sua vida de cadela?
Você não sabia? Deu no jornal:
pra resolver o problema social,
estão jogando os mendigos num canal.
E não são só pedintes os lançados
no rio da Guarda: idiotas, aleijados,
vagabundos, alcoólatras, drogados.
Se fazem isso com gente, os estúpidos,
com pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,
o que não fariam com um quadrúpede?
A piada mais contada hoje em dia
é que os mendigos, em vez de comida,
andam comprando bóias salva-vidas.
Você, no estado em que está, com esses peitos,
jogada no rio, afundava feito
parafuso. Falando sério, o jeito
mesmo é vestir alguma fantasia.
Não dá pra você ficar por aí à
toa com essa cara. Você devia
pôr uma máscara qualquer. Que tal?
Até a quarta-feira, é Carnaval!
Dance um samba! Abaixo o baixo-astral!
Dizem que o Carnaval está acabando,
culpa do rádio, dos americanos...
Dizem a mesma bobagem todo ano.
O Carnaval está cada vez melhor!
Agora, um cão pelado é mesmo um horror...
Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô...!
(tradução de Paulo Henriques Britto)
A poeta estadunidense Elizabeth Bishop na entrada de seu estúdio
na casa de Samambaia em Petrópolis, onde viveu com Lota de Macedo Soares.
E se escritores brasileiros deram seu próprio "brado do Ipiranga" no centenário do brado de Dom Pedro I, imigrantes como Otto Maria Carpeaux, Anatol Rosenfeld e Paulo Rónai foram importantíssimos para a abertura da vida intelectual do país. Outro exilado germânico menos conhecido foi Herbert Caro, que fixou residência em Porto Alegre, onde traduziu vários alemães para o português. Pouco lembrados também são o mexicano Alfonso Reyes e a chilena Gabriela Mistral, que tiveram funções diplomáticas no Brasil.
Se é muito conhecida a estadia do suíço Blaise Cendrars entre nós, fazendo já parte do quase-folclore em torno do nosso Movimento Modernista, como me lembrou Rafael Cardoso é menos mencionado o caso do surrealista francês Benjamin Péret. Casado com a cantora brasileira Elsie Houston, ele viveu no Rio de Janeiro entre 1929 e 1931, quando foi preso e expulso do país por Getúlio Vargas por sua militância comunista e participação ao lado de Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Aristides Lobo no grupo Oposição de Esquerda.
Gabriela Mistral e Cecília Meireles no Rio de Janeiro, década de 1940.
Patrícia Galvão (Pagu), Anita Malfatti, Benjamin Péret, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade,
Elsie Houston, Álvaro Moreyra, Eugênia Moreira e Maximilien Gauthier.
Mario Pedrosa e Benjamin Péret eram cunhados. O filho de Péret e Houston, Geyser, havia nascido no Rio de Janeiro há poucos meses quando o casal foi obrigado a voltar à França. Péret seguiria fascinado pelo Brasil, e deixou textos pioneiros sobre o candomblé e sobre artistas brasileiros como Maria Martins.
Entre os latino-americanos, o caso mais recente e importante foi o do argentino Néstor Perlongher, que viveu exilado em São Paulo e aí escreveu praticamente toda a sua obra, de Alambres (1987) a El chorreo de las iluminaciones (1992), assim como sua pesquisa em O negócio do michê: Prostituição viril em São Paulo, publicada pela Brasiliense em 1987. Por sua vez, foi da Argentina que o galego Lorenzo Varela manteve contacto intenso com os intelectuais brasileiros das décadas de 1950 e 1960, exilado por Franco, e foi ali que Ferreira Gullar escreveu a maior parte de seu Poema Sujo (1976), exilado pela Ditadura Militar.
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Não pode ser uma questão apenas de língua e tradução o que dificulta essa história. Afinal, basta procurarmos em livrarias brasileiras os trabalhos de portugueses como Jorge de Sena e João Apolinário, da moçambicana Noémia de Sousa ou do cabo-verdiano Luís Romano, lusófonos estrangeiros que viveram no país, para percebermos como ignoramos até mesmo os autores de nossa própria língua que passaram por este país gigantesco, mais plural em suas experiências linguísticas do que costumamos papaguear por aí.
No ano passado, o governo de Cabo Verde condecorou a Marinha brasileira com a medalha do Mérito Cultural por contribuir no repatriamento do acervo do escritor Luís Romano às ilhas de nossa irmandade lusófona, ele que também escreveu em crioulo cabo-veridano e viveu por cinco décadas em Natal, no Rio Grande do Norte. Oxalá fosse esta uma das únicas funções das marinhas do mundo: transportar bibliotecas.
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Não pode ser uma questão apenas de língua e tradução o que dificulta essa história. Afinal, basta procurarmos em livrarias brasileiras os trabalhos de portugueses como Jorge de Sena e João Apolinário, da moçambicana Noémia de Sousa ou do cabo-verdiano Luís Romano, lusófonos estrangeiros que viveram no país, para percebermos como ignoramos até mesmo os autores de nossa própria língua que passaram por este país gigantesco, mais plural em suas experiências linguísticas do que costumamos papaguear por aí.
Ficha de imigração do escritor cabo-verdiano Luís Romano (Cabo Verde, 1922 – Brasil, 2010)
No ano passado, o governo de Cabo Verde condecorou a Marinha brasileira com a medalha do Mérito Cultural por contribuir no repatriamento do acervo do escritor Luís Romano às ilhas de nossa irmandade lusófona, ele que também escreveu em crioulo cabo-veridano e viveu por cinco décadas em Natal, no Rio Grande do Norte. Oxalá fosse esta uma das únicas funções das marinhas do mundo: transportar bibliotecas.
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E há também descobertas por fazer, algumas complicadas sim pela questão da tradução. Em 2014 soube através do meu amigo, o poeta e romancista ucraniano Andriy Lyubka, que Wira Wowk, uma das mais importantes poetas ucranianas do século XX vivia no Rio de Janeiro há décadas. Escrevi sobre um encontro com ela, ao lado de Lyubka, em uma crônica para a DW.
Os ucranianos Wira Wowk e Andriy Lyubka no Rio de Janeiro em 2014
A última descoberta, no meu caso, foi o russo Valery Pereleshin (Irkutsk, Rússia, 1913 – Rio de Janeiro, Brasil, 1992). Nascido na Sibéria, ele emigrou primeiramente para a China, onde começou sua obra, e em 1952 veio com a mãe para o Brasil, onde produziu a maior parte de sua poesia. Em um ensaio, seu tradutor americano Simon Karlinsky escreveria que o poeta se considerava "poeta brasileiro que escreve em russo".
Mas Pereliéchin escreveu também em português. Luci Ramos Mendes me informou que sua obra lusófona será lançada em breve pela Editora Dybukk. Foi ela quem me enviou o poema abaixo. Espero que a poesia russa do autor seja também traduzida e lançada em algum momento. Com certeza incluirei seu trabalho na antologia homoerótica internacional que estou organizando.
O poeta russo naturalizado brasileiro Valério Pereliéchin
(década de 1970)
Mas Pereliéchin escreveu também em português. Luci Ramos Mendes me informou que sua obra lusófona será lançada em breve pela Editora Dybukk. Foi ela quem me enviou o poema abaixo. Espero que a poesia russa do autor seja também traduzida e lançada em algum momento. Com certeza incluirei seu trabalho na antologia homoerótica internacional que estou organizando.
Poema homoerótico lusófono de Valério Pereliéchin
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Essa história não acabou, é claro. Há/houve ainda os casos do argentino Aníbal Cristobo, da alemã Sabine Scho, da estadunidense Farnoosh Fathi, das portuguesas Matilde Campilho e Alexandra Lucas Coelho, dos britânicos Sarah Rebecca Kersley e Rob Packer, da suíça Prisca Agustoni. Um tema bastante interessante para uma pesquisa. Há com certeza quem já esteja se dedicando a ela.
E também para uma discussão saudável sobre a ideia de "nacional" que ainda rege nossa historiografia literária, apagando até mesmo autores nascidos no Brasil por não se adequarem a certas narrativas e dificultando nosso conhecimento e aprendizado também dos orikis de matriz africana e da poesia ameríndia do território.
Essa história não acabou, é claro. Há/houve ainda os casos do argentino Aníbal Cristobo, da alemã Sabine Scho, da estadunidense Farnoosh Fathi, das portuguesas Matilde Campilho e Alexandra Lucas Coelho, dos britânicos Sarah Rebecca Kersley e Rob Packer, da suíça Prisca Agustoni. Um tema bastante interessante para uma pesquisa. Há com certeza quem já esteja se dedicando a ela.
E também para uma discussão saudável sobre a ideia de "nacional" que ainda rege nossa historiografia literária, apagando até mesmo autores nascidos no Brasil por não se adequarem a certas narrativas e dificultando nosso conhecimento e aprendizado também dos orikis de matriz africana e da poesia ameríndia do território.
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