quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Muxoxo sobre gerações, grupos e escolas literárias

Em 1926 nasceram Max Martins e Maria Ângela Alvim. 

Em 1927 nasceram Wlademir Dias-Pino e Décio Pignatari. 

Em 1928 nasceu Affonso Ávila e, em 1929, Haroldo de Campos. 

Em 1930 nasceram Hilda Hilst e Ferreira Gullar. 

Em 1931, Renata Pallottini, Augusto de Campos e ainda Alberto da Costa e Silva. 

Em 1932, Maria Lúcia Alvim, Alexandre Eulalio e Erthos Albino de Souza. 

Em 1933, Mário Chamie e Zuca Sardan.

Mas... ó... você só pode escolher um ou dois, senão atrapalha os manuais escolares, os jornalistas dos suplementos culturais e o ENEM de 2030.

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sábado, 23 de janeiro de 2021

90 anos de Renata Pallottini


Uma das figuras mais importantes da escrita queer nacional, a poeta e dramaturga Renata Pallottini completou 90 anos esta semana. Autora de peças como O crime da cabra (1965) e Pedro Pedreiro (1967) – que contou com canções de Chico Buarque de Holanda, a paulistana é também autora de belos poemas da lírica amorosa brasileira do pós-guerra.

POEMAS DE RENATA PALLOTTINI

NOITE AFORA


A quem devo dizer que em tua carne
se sobreleva o tempo e o duradouro,
mancha de óleo no azul, alaga e intensifica
o contratempo a que chamei amor?

A quem devo dizer dos meus perigos
quando, o corcel furioso, olhei ao longe
e não vi mais limites que o oceano
nem mais convites que o das ondas frias?

Como antepor o corte nas montanhas
— Liberdade — ao dever que a si mesma impõe a terra
de estender-se conforme o espaço havido?

Malícia do destino, ardil composto outrora...
Arde a grama da noite em que te vais embora,
e essa chama caminha, essa chama, essas vinhas,

essas uvas, cortadas noite afora.

*

PRIMEIRO FOI A NOITE

"No princípio criou Deus o céu e a terra.”
Gênesis, 1:1

Primeiro foi a noite. E a noite feita,
desta engendrou-se a luz, julgada boa.
Depois, fez-se o agudo desespero do céu.
E a terra. E as águas separadas.

E um mar se fez, da lúcida colheita
das águas inferiores. A coroa
tornou-se firmamento. "Haja luzeiros" —
ordenou-se às estrelas debulhadas.

Houve flores estáticas e flores
que procuravam flores; e houve a fome
de carne e amor e dessa fome as dores

e das dores o Homem. Deste, esquiva,
toda fome, sua fêmea, e no seu sexo,
mais uma vez a noite primitiva.

*

VESTIBULAR

De novo acomodo o corpo
(que de novo me incomoda)
na carteira de pau áspero;
de novo tomo a caneta.

De novo passo entre as filas
ponho a mão no ombro trêmulo
de alguma estudante tímida
(e agora sou professora).

De novo é aquela angústia,
não saber o que se sabe
ser de novo examinada
e de novo posta à prova.

De novo adivinho o amor,
olho-me e olho; já fui
o que hoje sou. Já sofri
o que sofro. E vem de novo

esse temor, como novo.
Ensino, ou sou ensinada?
Estou acima, ou me afogo?
De novo perco o respiro
ou já domino a questão?

De novo sofro e transpiro
porque hoje sou a mestra
tão escassa como sempre
e como sempre carente.

Olho-me quieta de novo
e vejo toda essa gente.
Passas de novo a meu lado
e me pões a mão no ombro

e me marcas com teu sopro
e me deixas tua sombra.

*

OLHA, QUE NO VERÃO

Olha, que no verão a lua nasce
vermelha dentro d'água
nesta praia.
Acendamos o fogo para vê-la
e para ver-nos. Já é quase noite
o mar só faz de conta com sua água múltipla
breve virá o rastro de ouro e sangue.

A lua sempre comoveu mulheres
seus ciclos, suas datas,
seus períodos
a lua sempre motivou os gatos
maré de bons resquícios
sexo e fluido;

gemendo nos amamos
e gemendo explodimos nos sismos do parto.
As mulheres são fossos onde a lua dorme
e desperta furiosa
a cada quatro casas.

Nada mais do que sou
me basta
neste instante;
o que fui já passou há muito tempo;
não devemos voltar nem pra recolher os destroços
fossem de ouro os restos
não voltemos;

deixa na praia os pedaços de troncos
ou joga-os na fogueira
de areia e ossos.

Pode tardar a lua; a hora não importa
à senhora dos sulcos e das lavras do mar.
Ela tem o seu tempo, o tempo das crateras
o lívido da pele do seu centro
o ouro do seu carmim
no nascimento.

Pode tardar a lua
Vem
O fogo
é dentro

*

SALVO

Salvo
a falácia da queda e o seu após
nada tenho a constatar
do que caiu sobre nós.
Digo-te qual suponho:
o que passou, passou.
Não ponho sobre ti o peso do meu sonho,
nem do que velo, nem do que findou.
Salvo a falácia do erro
tudo o mais fui eu:
quem nasceu e se pôs de pé,
quem cresceu e não cresceu,
quem humilhou e perdoou,
quem finalmente morreu
e hoje chora ao pé da cova
pelo dorido do que aconteceu.

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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O baú de ossos e de espantos da poesia brasileira [com poemas de Pio Vargas]

A Literatura Brasileira tem dois livros importantes com a palavra "baú" nos títulos. Um deles é o primeiro volume das memórias do mineiro Pedro Nava (1903–1984), seu Baú de ossos (1972). O outro é o volume de poemas do gaúcho Mário Quintana (1906–1994), seu Baú de espantos (1986). Minha memória invocou esses títulos hoje quando eu pensava sobre o trabalho de pesquisa para desenterrar certos autores que, por motivos vários – políticos, regionais – não alcançam atenção nacional. Somos uma República que ainda não fez jus a seu nome, seja como república em si, ou no adjetivo que a segue no nome oficial do país, federativa. 




Digo tudo isso para fazer agora meu joguinho de palavras: será decisão nossa, de críticos, editores, escritores e leitores, se a Literatura Brasileira será um baú de ossos ou de espantos. O trabalho é coletivo. Alguns poetas e críticos apreciam-se escrita de certos autores e buscam chamar a atenção dos concidadãos. Vocês me perdoem, mas eu sou extremamente sentimental com algumas dessas palavras: república, federação, concidadão. Essas coisas importam. 

E o esforço de compartilhamento se dá em vários níveis. Foi graças à publicação inicial de dois poemas de Hilda Machado (1951–2007) na revista Inimigo Rumor que meu périplo em busca de mais material levaria à publicação de 'Nuvens' em 2018 pela Editora 34. Foi graças à descoberta e atenção de Guilherme Gontijo Flores, ao ler com acuidade crítica o volume Vivenda de Maria Lúcia Alvim, que pude me unir a ele e à Relicário Edições para que todos nós agora tenhamos essa belezura que é Batendo pasto. E graças ainda a Paulo Henriques Britto, que guardara o manuscrito. E serei eternamente grato à Ciclo Contínuo Editorial  por nos trazer de volta a poesia de Paulo Colina. 

E há outras figuras tão interessantes das culturas brasileiras que mereceriam mais de nossa atenção. Porque nossas vidas seriam menos miseráveis com os poemas e contos destes... ah, a palavra de novo ... concidadãos. Não importa se os autores têm obras monumentais de 20 volumes. Um belo livro não é já uma grande contribuição à pólis? Um belo poema apenas já não é isso? 

Há os casos de poetas que são respeitados, premiados, mas estranhamente não são lidos, não comparecem nas conversas apaixonadas e bêbadas de boteco (elas também contam), nas epígrafes, nas homenagens. E nem mesmo o nascimento em estados que monopolizam a atenção nacional por vezes ajuda, bastaria pensarmos nos casos de Hilda Hilst e Roberto Piva, ignorados por tanto tempo. Ou pensem nesse caso: não é fascinante que São Paulo tenha gerado, nascidos no mesmo ano de 1931, dois poetas tão diversos quanto Augusto de Campos e Alberto da Costa e Silva, ambos vivos e prestes a completar 90 anos? Por que um intelectual do porte de Alberto da Costa e Silva, com poemas que me parecem deslumbrantes, não aparece com mais frequência em nossas conversas?




Mas há sim os problemas de desequilíbrio regional, e muito disso se dá por grandes jornais de circulação nacional se esconderem sob a égide de "jornal local", com os nomes de suas sedes estaduais ou municipais nos seus nomes, mas que então ignoram por completo as RESPONSABILIDADES REPUBLICANAS E FEDERATIVAS que incorrem no momento em que passam a ter circulação nacional.

Esta semana tive duas descobertas, uma foi fruto de partilha republicana do bem comum quando Leonardo Gandolfi chamou minha atenção para o trabalho do baiano Jônatas Conceição da Silva (1952-2009). A outra foi por esforços pessoais de pesquisa sobre a poesia produzida no Centro-Oeste, esta que talvez seja a região mais verdadeiramente ignorada do país, ao lado do Norte. E aqui chego ao motivo dessa postagem: chamar a atenção de vocês, meus queridos concidadãos, para a poesia deste jovem goiano, Pio Vargas (1964-1991). Nascido na pequena Iporá e morto com apenas 26 anos por uma overdose na também pequena Turvelândia, sua poesia ficou por aí nos baús de ossos e espantos. Nem mesmo nossa ansiedade hagiográfica por nossos meninos e meninas mortas da Poesia Brasileira o deu um público maior.

Pio Vargas (Goiás, 1964-1991)

Sua poesia foi porém editada por Carlos Willian Leite, e o poeta dá nome à biblioteca do Centro Cultural Marieta Telles Machado em Goiânia. Num artigo para a revista 'Bula', na qual há um par de outros textos sobre o goiano, C. W. Leite cita uma declaração de Paulo Leminski sobre o poeta: “Pio Vargas tem um ‘eu’ coletivo tão forte que chego a vê-lo muitos. De sua poesia consigo extrair a certeza do que digo, insistente: há uma geração recente que usa e abusa da modernidade, fazendo dela o principal elemento a interferir na criação. Este Pio Vargas me trouxe uma poesia fascinante que não se atrela a falsos modelos de invenção, mas flutua, inventiva, com os mais amplos e possíveis signos do fazer poético.”

Pio Vargas publicou os livros Anatomia do gesto (1989) e Os novelos do acaso (1991). Nos poemas que encontrei na rede e que reúno e compartilho aqui, percebo um jovem poeta de talento inegável, com belos poemas, imagens fortes, uma musicalidade potente. Se também percebo em certos momentos algo de juvenil no gosto augusto-angelical por um vocabulário científico e certas palavras talvez grandiloqüentes demais, mesmo essas se transformam em música nas mãos desse jovem bastante habilidoso.




PIO VARGAS (Goiás, 1964–1991)

DESPERTÁCULO

Es­tou pron­to
pa­ra a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do:

bo­tei vi­gia nos sen­ti­dos
e ilu­di com com­pri­mi­dos
ou­tros se­res a meu bor­do.
Aban­do­nei o ví­cio
de es­tar sem­pre
a so­le­trar ru­í­nas,
dei li­ber­da­de a meus de­ten­tos
mi­nha pres­sa di­lu­iu nos pas­sos len­tos
e ras­guei
meu ca­len­dá­rio de ro­ti­nas.

In­ver­ti a or­dem.

Já não saio por aí
a de­vo­rar com­pro­mis­sos,
to­mei pos­se no go­ver­no de mi mes­mo
e der­ro­tei os meus omis­sos.

Ven­ci a ba­ta­lhas
de ter que es­tar sem­pre por per­to,
às ve­zes voo pa­ra den­tro
do meu so­nho a céu aber­to.

Es­tou pron­to:

eu já con­cor­do
com a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do.

*

OS SONS DO OFÍCIO 

É por­que re­co­lho o vá­rio
no avi­á­rio das vér­te­bras
e me há um si­lo de cé­lu­las
e me há um qua­se-aquá­rio,
que o po­e­ma se me che­ga,
es­tu­á­rio.

Que me im­por­ta
a si­na ju­gu­lar das fa­ses,
a vi­da con­ju­gal das fra­ses
e o sem­blan­te cí­ni­co
das fe­zes,
se não fa­ço po­e­mas
co­mo quem de­fen­de tes­es.

Fa­ço po­e­mas
pa­ra que pas­sem os di­as
e pas­cem os re­ba­nhos
e os oce­a­nos pas­mem
an­te o nau­frá­gio
de to­das as da­tas
no ca­len­dá­rio-la­nho.

Ou se­ja, fa­ço-os
co­mo quem vi­ce­ja
os la­ços do ar­re­mes­so
co­mo quem vis­lum­bra
si­lên­cio nos en­tu­lhos
e apren­deu a es­tru­tu­ra ide­al
pa­ra mon­tar ba­ru­lhos
sob a lín­gua mais ba­nal.

Fa­ço-os
co­mo quem lam­be oá­sis no pla­nal­to,
dei­xa­do pe­las ba­ses
de um sim­ples so­bres­sal­to.

É co­mo se o ego
cou­bes­se in­tei­ro
na de­ter­mi­na­ção de um pre­go
que me fi­xa exí­li­os sob a car­ne
mas que tam­bém acio­na
os ga­ti­lhos do alar­me.

*

SUCESSÃO

Depois que eu voltar
de dentro das molduras
apago os meus retratos
invento outras figuras

convoco os meus fantasmas
convido mil demônios
e dou posse a todos eles
no governo dos neurônios.

*

ODE ANALGÉSICA

I

a pátria é o embaixo das roupas.

é lá que dói e se desfazem
as linhas mínimas do ventre
o lacre avesso do silêncio
e o destino de selo intêmpere.

é lá o magazine de medos
onde quem sabe há calado
na caricatura de seus becos
ou no domicílio de seus fados.

II

eu não sei o que floresce
no abandono das pedras
e não me ocorre saber
que objetos compõem
as neuronias vitrines
da dor e suas glebas.

há mais de sabor
em não saber
e mais de ardor
em não urdir
o que vai pelas covas
do promontório,
o que fica de espanto
nesse alento provisório.

não me ocorre o que fenece
nestes dias rotundos.
o possível deus que me parece
é outro — a réplica do fundo.
ao milagre de ser vário,
o abismo : albergue estacionário.

*

CONCEPÇÃO TUMULAR PARA QUE NINGUÉM ALEGUE IGNORÂNCIA 

Quando eu morrer
escrevam no meu túmulo:
aqui dorme pio
que era poeta nas horas vagas.
O que distanciou de tudo
pra continuar mudo
com suas amarras

Aqui dorme alguém
que era de todos
e pertenceu a ninguém
que imaginava muito
mas só tinha um corpo
que casualmente se tem
que fazia poemas
só para esquecer os dilemas
do que era um e quis ser cem.

Pensando bem
escrevam mais:
aqui dorme pio
o que em sendo um
foi quase mil.

*

O FOGO NAS VÍSCERAS 

I

pode haver o momento
de transportar o súbito fogo
sem haver a ruptura
de gesto e culpa,
flancos do mesmo jogo.

o tédio se derrama
em todas as direções
e como flagelo
é incenso nos sentidos
ou fragmento de opções?
pode haver
o súbito fogo
em sendo mero silêncio.
O tédio é bélico:
Ogiava de alvo pênsil.

II

o que pode haver
de humano no sentimento
senão a inquietação?
todo o resto
é crochê de desejo
desenhando caminhos
na hipótese da emoção.

se o flagrante
é uma colisão de evidências
pode haver o momento
de transportar o súbito fogo
no porão de fugas pensas.

III

o fogo e o tédio
são produtos sem mídia,
salvo suas cores
pródigas e ingênuas
no painel de dores tíbias.

pode haver o momento
de palavras ajustáveis
em cada frase,

o momento de sombras
em transparente corpoquase
sem que isto denuncie
ruptura de gesto e culpa,
extremos de mesma base.

IV

cada um se mata
o suficiente
para continuar vivo.

cada um possui
a duopção de fogo e tédio,
esses alheios do alívio.

contudo,
na dor e seu compêndio,
resta saber
quem existirá depois do incêncio.

*

ANALEPSIA DO ABISMO

I

enterro vivo meu gesto.

até aqui trouxe dias e palavras
         como signos ambíguos
         débeis mapas
         argumentos evasivos
         o resumo inconcluso
do que julguei abismo
                   e superfície.

habita o âmago
no mais raso da face:
         por isso trago à tona,
         elo de sangue e aspereza,
         a pugna de meus retratos
                   atônitos.

II

mantenho obtuso meu traço.

a memória constrói
espúmeos fantasmas
com os quais divirto
o inverno de meu plasma.

esse cotidiano agrário
foi o que sobrou como futuro
o meu sangue sem calvário
regando vales no escuro.

III

interno e vasto é meu grito.

até aqui trouxe dois olhos
e a visão cíclope dos pesadelos
como quem espalhou lâmina e dilúvio
para envenenar
o próprio espelho
ou se ferir em gumes turvos.

viver é um risco
na ordem dos calendários.

por isso abrigo incerto mangue,
condomínio de alheios viventes,
para manter a humanidade mesma
nos outros eus mais diferentes.

IV

mantenho obscura entrega.
pouco importa
um punhado de vales
para o adejo da carne.

é bem outra
a personagem que me assombra:
         a dor em vestes dúbias
         no endereço noturno
         da face plúmbea.

*

ÁSPERAS ASPAS

nenhuma treva me basta
se me desaba o teto a casa
meu ventre em viagem casta
e meu voo de corpo sem asa

minhas vírgulas como degraus
a entalhar ásperas aspas
o texto-hangar de minhas naus
o nu teclado de outras harpas

o império de meus ampares
nos tantos poros térmicos
os sinais que somam seres
nos andares epidérmicos



VAGA LITÚRGICA 

o volume da chuva
é que decifra o dilúvio
como no corpo eflúvio
é âmbar a dúvida

a porta que mais vence
é a que aberta permanece
e o corpo que mais sente
é nem sempre o que adoece

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