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terça-feira, 20 de julho de 2010

Entre a alegria e a alergia

Se eu um dia organizasse uma pequena antologia com minha lírica amorosa, pensei ontem ao cruzar a rua com a imaginação voltada para ele e sendo quase esmagado por um caminhão, eu a chamaria de Entre a Alegria e a Alergia: lírica amorosa. Pensei então mais uma vez em como é difícil escrever sobre a alegria, escrever a alegria. Escrever com alegria é matéria comum, tomados por aquele entusiasmo da composição. Robert Duncan dizia que, a partir de certo ponto, o entusiasmo do próprio poema tomava o controle e ele era apenas carregado pelas águas da composição poética.

Passei a tarde no parque com minha amiga Adelaide Ivánova, conversando sobre nossas paranóias amorosas, nossas catástrofes líricas, nossos desastres patrocinados por portadores dos cromossomos XY. Que vontade de alegria. Comecei a pensar nos poemas mais bonitos da alegria que eu conheço, e há dois que ocupam um lugar primordial em minha mitologia pessoal, por carregarem algumas cicatrizes, mas mesmo assim seguirem entoando pelos dias afora a taquicardia solar no plexo, no peito.

Um destes poemas é a canção "Iceblink Luck", de Elizabeth Fraser com o coletivo Cocteau Twins. É impossível, para mim, escutar este poema cantado sem ser tomado por uma forma estranhíssima de bliss.



Já escrevi sobre o trabalho poético-vocal de Elizabeth Fraser (uma de minhas antológicas Elizabeths) para a Modo de Usar & Co., a quem se interessar. Aqui, retorno a ela e a este texto por ser uma coisa linda, na maneira como ela expõe aos pássaros do mundo os frutos da alegria em sua garganta. Há algo de extático em cantar para alguém: You're the match of Jericho / That will burn this old madhouse down / And I'll throw open like a worn-out safe / More like a love that's a bottle of exquisite stuff, yes. escutar esta canção me alegra de imediato.

Iceblink Luck
Elizabeth Fraser, com o coletivo Cocteau Twins

I'm seemin' to be glad a lot
I'm happy again,
Caught, caught in time
This mustn't hurt or harm yourself
Well, me, I give in to your arms

You're the match of Jericho
That will burn this old madhouse down
And I'll throw open like a worn-out safe
More like a love that's a bottle of exquisite stuff, yes

You, yourself, and your father
Don't know him, so part in your own ways
You're really both bone setters
Thank you for mending me babies



Tomei minhas liberdades com o texto de Fraser na tradução abaixo, um texto, de qualquer forma, que esbanja indeterminação em tempos de poetics of indeterminacy.


Pareço estar alegre abundante
De novo feliz
Cativa, cativa no tempo
Isto não precisa doer ou delir
Bem, por mim, doo-me aos seus braços

Você é o fósforo de Jericó
Que há de incendiar este velho hospício
E eu abrirei de jato como um cofre desgastado
Mais como um amor que é garrafa de coisa exuberante, sim

Você, por si, e seu pai, não sei
Partam cada um por si
Vocês são ambos mecânicos de ossos
Obrigado por me remendarem, queridos


Há uma expressão nesta canção de Elizabeth Fraser que é importantíssima para mim: trata-se do momento em que ela canta, em plena alegria, caught, caught in time. Isso é central para noção da felicidade como o momento presente fugidio, na aceitação do agora, agora, agora. Isso tem um papel forte em toda a minha defesa do contextual, do histórico, contra o transcendente eternite, contra o trans-histórico abstrato, em favor de uma aceitação do momento presente, nem a nostalgia da presença, nem o elogio da ausência. Em um poema recente, publicado este ano na revista Celuzlose, escrevi:


(...)

Minha língua entre dentes
não se quer pantera
entre grades. Digo "aqui"
e ponho os pés
no chão; "eu",
e a cabeça entre as mãos;
"hoje", enchendo até doer
de ar
os pulmões. Certeza, não
de meio-dia ou meia-noite,
mas endereço de avião
em pleno voo

(...)


(fragmento do poema "Eu")


Este "caught in time" da canção dos Cocteau Twins ecoa no segundo poema da alegria mais importante em minha mitologia pessoal: o poema-livro Happily (2000), de Lyn Hejinian. A leitura e releitura obsessiva de Happily teve um impacto muito grande sobre minha vida, minha poética. Para mim, trata-se de um dos textos mais lindos deste início de século. Ele abre assim:

from "Happily"
Lyn Hejinian

Constantly I write this happily
Hazards that hope may break open my lips
What I feel is taking place, a large context, long yielding, and to doubt it would be a crime against it
I sense that in stating "this is happening"
Waiting for us?
It has existence in fact without that
We came when it arrived
Here I write with inexact straightness but into a place in place immediately passing between phrases of the imagination
Flowers optimistically going to seed, fluttering candles lapping the air, persevering saws swimming into boards, buckets taking dents, and the hands on the clock turning—they aren't melancholy



Tudo aqui aponta para uma alegria de quem põe os pés no chão, enche os pulmões de ar. É quase como se aquela mulher de "peignoir, and late / Coffee and oranges in a sunny chair", no belo "Sunday Morning", de Wallace Stevens, abandonasse por completo aquele "dark / Encroachment of that old catastrophe". Como Marjorie Perloff viria a fazer em seu excelente, realmente excelente ensaio sobre este Happily, de Hejinian, poderíamos citar o inescapável Wittgenstein e dizer que "somente um homem que não vive no tempo, mas no presente, é feliz". Isso marca grande parte da minha obsessão pelo contextual, meu elogio insistente do datado, justamente aquele que é o medo da grande maioria dos poetas. Eu não temo o datado, eu quero convidá-lo, o desafiar, o seduzir.

Na segunda estrofe do poema-livro, surge a expressão que dialoga em minha cabeça com o "caught in time" de Fraser. Trata-se do "launched in context" de Hejinian, assim como o belo "Context is the chance that time takes". Em um dos poemas da Carta aos anfíbios, eu me apropriei dele e o deformei nos versos "e no hino à possibilidade / escrevo `dois dados querem / sempre ocupar o / mesmo lugar no espaço´ / sabendo que contexto é o risco / que a alegria corre e aceita". A segunda estrofe do poema de Hejinian segue:


The day is promising
Along comes something — launched in context
In context to pass it the flow of humanity divides and on the other side unites
All gazing at the stars bound in a black bow
I am among them thinking thought through the thinking thought to no conclusion
Context is the chance that time takes
Our names tossed into the air scraped in the grass before having formed any opinion leaving people to say only that there was a man who happened on a cart and crossed a gnarled field and there was a woman who happened on a cart and crossed a gnarled field too
Is happiness the name for our (involuntary) complicity with chance?
Anything could happen
A boy in the sun drives nails into a fruit a sign (cloud) in the wind swings
A woman descends a ladder into mud it gives way
But today's thought is different



Linhas como "Is happiness the name for our (involuntary) complicity with chance?" viriam a causar um redemoinho em meu crânio. Estes textos viriam a ecoar em alguns poemas meus, entrando em diálogo com o poema-livro de Lyn Hejinian. Uma das transformações entre o Alto Modernismo oficial do Entre Guerras e nosso tempo (estou ciente de que tento instituir aqui um discurso) talvez seja uma maior aceitação do contextual, contingente? Destarte, do imanente? Talvez. Em meu "Poema começando `Quando´", cuja Musa é o Anjo da História benjaminiano, isso ressoa fortemente quando proponho esta narrativa histórica:

"Poema começando `Quando´"

Oitava faixa – 0:50

Prefiro no fundo,
a superfícies,
apêndices.
Consumir antes
da próxima
geração.
Adorno e engenho
substituídos pelo
fluxo do floema,
isto é, afinal
de contas,
uma emergência.
Mudança no
tempo imprevista.
O eterno seduz
tanto quanto
sempre
mas espera-se
adultos agora.
“O que
significa
isto?”
Leia a frase
toda.
Percorremos este
espaço de tempo
minuto a minuto
para vir do pavor
da idade do serrote
como infração do eterno
em Murilo Mendes
a esta aceitação
e deslizar no contingente
de Lyn Hejinian
em “persevering saws
swimming into boards”,
contentes, contentes.


(a cadela sem Logos. São Paulo: Cosac Naify, 2007)


Tenho tentado insistir que a crença na historicidade poética, em oposição à proposta do trans-histórico, implica não apenas diferentes formas de escrita, mas formas completamente distintas de vida. A discussão é muito mais que simplesmente artística. Este debate tem ângulos existenciais, éticos, políticos. Não se trata de defender o linear, o diacrônico. Mesmo estas oposições entre o diacrônico e o sincrônico são esquemáticas. Em seu livro Infância e História, Agamben defende com brilhantismo que toda sociedade vive em pêndulo entre estes extremos. É por isso que tento manter minha mitologia pessoal do ANFÍBIO, aquele que pode, em ciclos, abandonar a TERRA da HISTÓRIA, e voltar às águas primordiais para se reabastecer. Em Carta aos anfíbios (2005), isso habita muitos poemas, como este "Sem título":

(sem título)

quando finjo que me afogo
........... na banheira
.... ou a um metro
.................... da praia

........... louça e areia
seguras sob os ísquios

os pulmões dizem mais

.................... um pouco

e os dedos de mãos
............... e pés enrugam-se

num preparo à dissolução

........................ última

água: solvente universal

.................. coberto de escamas

............. e os pulmões dizem
.......... mais um pouco

............... e a cabeça
...................... emerge
......... como uma ilha
.........ou aquela

primeira célula

...................eu finjo tão bem
...................que a técnica
...................tomou o lugar
...................da prática

enxugue enxugue as mãos
os pés os cabelos de todo
desejo alinhe-se ao chão
entre cão e gato e repita
senhor quem me dera
ser coberto de pêlos



(Carta aos anfíbios. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)


Estou começando a sentir saudade das águas.

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quarta-feira, 14 de julho de 2010

Das canções favoritas: "Song to the siren"

A canção "Song to the siren" foi composta por Tim Buckley (1947 - 1975) sobre um texto de Larry Beckett, e gravada em seu álbum Starsailor, de 1970. Larry Beckett é um poeta californiano, nascido em 1947, mais conhecido, na verdade, por suas colaborações com Buckley.


Tim Buckley vocaliza a canção "Song to the siren" em um programa televisivo, em 1968.

Song to the siren
Tim Buckley/Larry Beckett


Long afloat on shipless oceans
I did all my best to smile
til your singing eyes and fingers
drew me loving into your isle.

And you sang: 
Sail to me, sail to me,
Let me enfold you.
Here I am, here I am,
waiting to hold you.

Did I dream you dreamed about me?
Were you hare when I was fox?
Now my foolish boat is leaning,
broken lovelorn on your rocks.

For you sang: 
Touch me not, touch me not,
Come back tomorrow.
Oh my heart, oh my heart 
shies from the sorrow.

I'm as puzzled as a newborn child.
I'm as riddled as the tide.
Should I stand amid the breakers?
Or shall I lie with death my bride?

Hear me sing: 
Swim to me, swim to me,
Let me enfold you.
Here I am, Here I am, 
waiting to hold you.



A canção viria a ser vocalizada por outros poetas orais, como na bela versão de Liz Fraser, em colaboração com This Mortal Coil, em 1983.


Vocalização de Liz Fraser, com This Mortal Coil, para a "Song to the siren", em 1983, que apareceu, entre outros, na trilha sonora do filme The Lovely Bones (2010).


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Robert Plant vocaliza "Song to the siren" em homenagem a Tim Buckley e seu filho Jeff Buckley, grande poeta oral que morreu também muito jovem.

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A canção foi vocalizada agora por uma de minhas artistas favoritas, a ensandecida cantora norte-americana Kevin Blechdom:


Vocalização de Kevin Blechdom para a "Song to the siren", deste ano.

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