Não há muito o que dizer desta canção que ela já não diga em píncaros e abismos, essa canção que é uma prece, mais que um hino. Que só poderia mesmo nascer da coragem e generosidade daqueles irmãos africanos sequestrados, torturados e escravizados nas terras do Velho Novo Mundo. A performance de Mahalia Jackson é tingida de duende em cada célula, por todos os pontos cardeais.
Como os leitores generosos e os anônimos machucados já perceberam, as coisas aqui funcionam só e tão-só por compulsão obsessiva. Então, hoje dedico a todos a canção dos Kinks rodando ad infinitum / in loop aqui entre as minhas quatro paredes. A propósito, não estou postando o original dos Kinks de propósito; é como um recado est-É-tico (risos) para alguns anônimos muito machos que frequentam este espaço, ainda que eu não espere que eles entendam as implicações. Afinal, macho-alfa não tem tempo a perder com essas coisas, precisa correr atrás do mamute, matar o Tiranossauro, caçar o dente-de-sabres, e tudo isso enquanto compara o tamanho da flecha com a dos companheiros. Ah, mas como é linda esta canção!
I Go To Sleep Ray Davies
When I look up from my pillow I dream you are there with me Though you are far away I know you'll always be near to me
I go to sleep and imagine that you're there with me I go to sleep and imagine that you're there with me
I look around me and feel you are ever so close to me Each tear that flows from my eye brings back memories of you to me
I go to sleep and imagine that you're there with me I go to sleep and imagine that you're there with me
I was wrong, I will cry, I will love you till the day I die You were all, you alone and no one else, You were meant for me
When morning comes again I have the loneliness you left me Each day drags by until finally my time descends on me
I go to sleep And imagine that you're there with me I go to sleep And imagine that you're there with me
Quanto mais penso nesta canção, "Tive sim", mais ela me parece uma das canções de amor mais cruéis do cancioneiro brasileiro. Se alguém me dissesse estas palavras, eu sinceramente entraria em parafuso de paranóia do medo da perda. Pense bem, dizer a quem você ama agora que já amou outrem, e com esta pessoa também foi feliz e nutriu sonhos, como se quisesse dizer: este também pode ser o seu fim, meu amor. Cartola era de uma lucidez incrível, mas há também uma certa acidez em suas canções. "O mundo é um moinho" é outra de suas bolhas latejantes de lucidez ácida. Posto abaixo as duas, duas de minhas coisas favoritas neste mundo.
Tive sim Angenor de Oliveira, o Cartola
Tive sim Outro grande amor antes do teu Tive, sim O que ela sonhava eram os meus sonhos e assim Íamos vivendo em paz Nosso lar, em nosso lar sempre houve alegria E eu vivia tão contente Como contente ao teu lado estou Tive sim Mas comparar com o teu amor seria o fim Eu vou calar Pois não pretendo, amor, te magoar
§
O mundo é um moinho Angenor de Oliveira, o Cartola
Ainda é cedo, amor Mal começaste a conhecer a vida Já anuncias a hora da partida Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção, querida Embora eu saiba que estás resolvida Em cada esquina cai um pouco tua vida Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor Preste atenção, o mundo é um moinho Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida Em cada amor tu herdarás só o cinismo Quando notares estás à beira do abismo Abismo que cavaste com teus pés
"Dear Darkness" é uma das canções mais belas e tristes de um dos álbuns mais belos e tristes de Polly Jean Harvey (Dorset, sul da Inglaterra, 1969), intitulado White Chalk (2007). Eu sou admirador declarado da escrita e música da trobairitz inglesa. Conheço poucos capazes de tamanha agressividade em sua tristeza. Ela foi certamente uma influência sobre mim. Mas, se em canções da década de 90 como "Rid of me" ou "Rub till it bleeds", ela esposava uma melancolia raivosa sem muitos paralelos em sua concisão pontiaguda, em várias entrevistas após o lançamento de White Chalk (penso nas implicações de depuração e míngua deste título), PJ Harvey comentou alguns dos infernos pessoais que levaram à escrita de canções como esta "Dear Darkness" ou "The Devil". A simplicidade aqui não é mero estilo, não é o deserto estiloso dos epígonos de Cabral. É o deserto vivido e legítimo do próprio Cabral, como também penso na incisão (mais que concisão) dos textos de Emily Dickinson ou Lorine Niedecker, se pensarmos na língua inglesa, ou em Orides Fontela dentro da poesia brasileira. O texto me pega já em seu título, que se transforma nos primeiros versos: há algo de vulnerabilidade extrema nas palavras "dear darkness", sem mencionar os versos finais, que me parecem uma coisa de tirar o fôlego: "Dear darkness / Now it's your time to look after us / 'Cause we kept you clothed / We kept you in business / When everyone else was having good luck // So now it's your time / Time to pay / To pay me and the one I love / With the worldly goods you've stashed away / With all the things you / Took from us". Pelo menos, tiram o meu. Cito esta canção em um poema do meu próximo livro. Foi inevitável roubar de Polly Jean.
Dear Darkness Polly Jean Harvey
Dear darkness Dear darkness Won't you cover, cover Me again?
Dear darkness Dear I've been your friend For many years
Won't you do this for me? Dearest darkness And cover me from the sun
And the words tightening The words are tightening Around my throat
And And
Around the throat Of the one I love Tightening
Dear darkness Dear darkness Now it's your time To look after us 'Cause we kept you clothed We kept you in business When everyone else was having good luck
So now it's your time Time to pay To pay me and the one I love With the worldly goods you've stashed away With all the things you Took from us
Esta foi a canção que ouvi obsessivamente ontem durante o dia. É uma das minhas favoritas, não apenas dentre as dos Beatles, como de qualquer tempo ou banda. Sei que eles talvez tenham composições e letras muito mais sofisticadas, mas a mim esta canção parece uma coisa muito linda, diz tanto com tão parcos recursos, é triste demais e tão cheia de alegria ao mesmo tempo, daquela esperança do "bola para a frente, meu velho".
Foi lançada como single em 1967, escrita por Paul McCartney.
Hello, Goodbye Paul McCartney
You say yes, I say no You say stop and I say go, go, go Oh, no You say goodbye and I say hello Hello, hello I don't know why you say goodbye I say hello Hello, hello I don't know why you say goodbye I say hello
I say high, you say low You say why, and I say I don't know Oh, no You say goodbye and I say hello Hello, hello I don't know why you say goodbye I say hello Hello, hello I don't know why you say goodbye I say hello
Why, why, why, why, why, why Do you say good bye Goodbye, bye, bye, bye, bye
Oh, no You say goodbye and I say hello Hello, hello I don't know why you say goodbye I say hello Hello, hello I don't know why you say goodbye I say hello hello, hello I don't know why you say goodbye I say hello Hello
Um amigo que conheci recentemente me deu de presente uma compilação de canções, com vários artistas que eu não conhecia. Gosto muito de presentes assim, sem mencionar que é uma maneira muito legal de conhecer um pouco mais alguém novo em nossa vida. Uma das canções chama-se "Heart Full of Wine", da dupla de irmãos australianos Angus & Julia Stone. Muito bonita a canção, sem mencionar o fato de que os dois músicos são verdadeiras visões de beleza física. Quis compartilhar.
"Heart Full of Wine", do EP de mesmo nome, lançado em 2007.
Tive uma conversa muito boa ontem com o artista chileno Pablo Zuleta Zahr no nosso clube Neue Berliner Initiative, durante a SHADE inc. Foi durante esta conversa que ele me falou desta canção da Violeta Parra (1917 - 1967), chamada "Maldigo del alto cielo". Fácil imaginar sobre o que girava a conversa. Eu não conhecia a canção. Foi gravada logo antes do suicídio da poeta chilena, lançada em seu álbum Las Últimas Composiciones (1966), pouco tempo antes de meter uma bala na cabeça – após ser abandonada pelo homem que amava e que não nomearemos aqui porque machos que vão embora merecem o esquecimento e o anonimato. Como Pablo e eu concordamos ontem, há também o momento certo em que, por legítima defesa, se deve aceitar a maré alta da raiva. Este texto é um dos poemas mais potentes que passaram por meus ouvidos e olhos nos últimos tempos.
Maldigo del alto cielo
Violeta Parra
Maldigo del alto cielo la estrella con su reflejo, maldigo los azulejos destellos del arroyuelo, maldigo del bajo suelo la piedra con su contorno, maldigo el fuego del horno porque mi alma está de luto, maldigo los estatutos del tiempo con sus bochornos, cuánto será mi dolor.
Maldigo la cordillera de los Andes y La Costa, maldigo, señor, la angosta y larga faja de tierra, también la paz y la guerra, lo franco y lo veleidoso, maldigo lo perfumoso porque mi anhelo está muerto, maldigo todo lo cierto y lo falso con lo dudoso, cuánto será mi dolor.
Maldigo la primavera con sus jardines en flor y del otoño el color yo lo maldigo de veras; a la nube pasajera la maldigo tanto y tanto porque me asiste un quebranto. Maldigo el invierno entero con el verano embustero, maldigo profano y santo, cuánto será mi dolor.
Maldigo a la solitaria figura de la bandera, maldigo cualquier emblema, la Venus y la Araucaria, el trino de la canaria, el cosmos y sus planetas, la tierra y todas sus grietas porque me aqueja un pesar, maldigo del ancho mar sus puertos y sus caletas, cuánto será mi dolor.
Maldigo luna y paisaje, los valles y los desiertos, maldigo muerto por muerto y el vivo de rey a paje, el ave con su plumaje yo la maldigo a porfía, las aulas, las sacristías porque me aflige un dolor, maldigo el vocablo amor con toda su porquería, cuánto será mi dolor.
Maldigo por fin lo blanco, lo negro con lo amarillo, obispos y monaguillos, ministros y predicandos yo los maldigo llorando; lo libre y lo prisionero, lo dulce y lo pendenciero le pongo mi maldición en griego y en español por culpa de un traicionero, cuánto será mi dolor.
Capa do álbum Ágætis byrjun (1999), da banda islandesa Sigur Rós
Tem-se falado muito ultimamente sobre o tal material a ser apresentado em escolas, para tentar começar a quebrar os séculos de preconceito e intolerância na cultura ibérica (não só nela, mas a nossa tem características específicas, eu diria), que ainda regem a educação de crianças em lares dominados por machos-alfa ignorantes, estes que fazem do Brasil um país extremamente perigoso para mulheres e homossexuais. Me assombra a falta de vergonha em nossa República pelos números da violência sexual no país. No Ocidente, sabemos que há inúmeros países onde a punição por um assalto a um banco é muito mais severa que a punição por um estupro. As prioridades são claras. No Brasil, onde a violência contra homossexuais é tão corriqueira que não parece merecer qualquer indignação, é como se, ao desviar-se da norma sexual vigente – a do macho-alfa heterossexual, um cidadão abrisse mão de parte de seus direitos constitucionais, a única explicação para a maneira como homossexuais são tratados nesta República: como cidadãos de segunda categoria. Sabemos que a laicidade da Constituição brasileira é uma ilusão, mas isso apenas torna ainda mais urgente que esta laicidade seja efetivada o mais rápido possível.
Vi algo do material proposto, mostrado por algumas pessoas nas redes sociais eletrônicas. Não quero opinar antes de conhecer tudo. Tenho minhas dúvidas, mas talvez se deva a meu desconhecimento de todo o programa.
Para mim, a prioridade não deveria ser tanto educar as crianças e adolescentes heterossexuais quanto encontrar uma maneira de proteger e apoiar as crianças e adolescentes homossexuais. Eles são a prioridade. As crianças e adolescentes homossexuais, que sofrem horrores por acreditarem que vivem/existem em um mundo que os odeia. É muito sofrimento para uma criança ou mesmo para um adolescente. Daí o altíssimo número de suicídios entre adolescentes homossexuais. É monstruoso tratá-los assim. Fazer com que crianças e adolescentes cresçam achando que a vida deles acabará quando todos descobrirem "o que são". É desumano fazer com que crianças e adolescentes se sintam desta maneira. É um horror e há algo de muito errado com uma sociedade que não se horroriza com isto, não com o que cidadãos adultos fazem de sua vida e de seus corpos em uma República que se diz democrática e laica.
Vendo algo do material, não pude deixar de pensar neste vídeo maravilhoso da banda islandesa Sigur Rós, que tem à sua frente, como se sabe, o poeta Jón Þór Birgisson, que é homossexual. O vídeo foi criado para a canção "Viðrar vel til loftárása", que parece significar "clima bom para um bombardeio", e gerou polêmica, como sempre é o caso com os machos-alfa do mundo, tão zelosos e ciosos da impenetrabilidade de seu ânus, onde parecem estocar sua masculinidade, como se esta fosse uma flor-de-lótus de cristal delicadíssimo, muito frágil.
A canção está no segundo álbum da banda, intitulado Ágætis byrjun (1999), com o qual ficou famosa. Eu tinha 21 anos quando vi o vídeo pela primeira vez. Sozinho na sala de casa, na casa onde tinha tanto medo que descobrissem o que eu sentia. Lembro de ter chorado. Hoje, morando no exterior, onde uma criança ou adolescente não é tão massacrado e humilhado por ser diferente, onde os pais não se comportam como se fossem carrascos sexuais, eu me pergunto: até quando vamos humilhar crianças e adolescentes no Brasil por serem diferentes do que se costuma esperar de uma norma sexual? Até quando não vamos sentir vergonha do alto índice de suicídio entre adolescentes homossexuais no mundo? A adolescência já é um período tão difícil, por que o tornar ainda mais traumatizante para os que são diferentes, para os que não se encaixam nas expectativas de reprodução da espécie?
Aos meus amigos cristãos (dentre os quais me incluo), eu posso apenas dizer: lembrem-se, meus caros, que a sua luta não é contra carne ou sangue.
Mas meu cristianismo é o que guiava Pasolini.
Este vídeo até hoje é um dos meus favoritos. A canção é linda, a voz de Birgisson é sublime, o vídeo é de uma delicadeza quase violenta. Ele deveria ser mostrado nas escolas brasileiras. Ajudaria talvez a começar uma discussão sobre os preconceitos que as crianças trazem de casa. E ainda as apresentaria à música de uma banda simplesmente primorosa.
Sigur Rós, "Viðrar vel til loftárása", do álbum Ágætis byrjun (1999)
"I will dare" é a canção que abre o álbum Let It Be (1984), terceiro da banda de Minneapolis, formada em 1979 e ativa até 1991. Vocês podem escutá-la abaixo. A imagem é a capa do álbum, também gosto muito dela, não sei bem o porquê. A discografia do grupo é formada por Sorry Ma, Forgot to Take Out the Trash (1981), Hootenanny (1983), Let It Be (1984), Tim (1985), Pleased to Meet Me (1987), Don't Tell a Soul (1989) e All Shook Down (1990).
"I will dare", do álbum Let It Be (1984), The Replacements
O vocalista e letrista Paul Westerberg (n. 1959) é um dos meus cantores favoritos no rock, e seus textos são muito legais, inteligentes, simples, diretos. Quis compartilhá-la, caso alguém não a conheça, ou talvez não a tenha escutado há muito tempo. Abaixo, uma apresentação ao vivo, com Westerberg à frente.
I will dare Paul Westerberg (The Replacements)
How young are you? How old am I? Let's count the rings around my eyes
How smart are you? How dumb am I? Don't count any of my advice
Oh, meet me anyplace or anywhere or anytime Now I don't care, meet me tonight If you will dare, I might dare
Call me on Thursday, if you will Or call me on Wednesday, better still Ain't lost yet, so I gotta be a winner Fingernails and a cigarette's a lousy dinner Young, are you?
Meet me anyplace or anywhere or anytime Now, I don't care, meet me tonight If you will dare, I will dare
É muito difícil escolher uma canção favorita dentre as compostas por P.J. Harvey. Ela é muito fundamental na minha vida, mesmo em meu trabalho como poeta. Sempre considerei seus textos muito bons, exemplo de uma songwriter que mantém uma consciência textual. Além disso, seus momentos de minimalismo jamais foram marcados por qualquer esterilidade emocional, como entre os poetas cabralistas dos últimos 25 anos, que, para evitarem o sentimentalismo precisavam obliterar a emoção. Poucos poetas vocais expressam o que chamo de tristeza raivosa como ela. Um poeta-escritor pode aprender uma coisa ou outra com seus poemas vocais. Quero falar sobre algumas de suas canções e seus textos, os que tiveram maior impacto sobre mim.
Para começar, escolhi uma canção menos discutida, mas que me parece maravilhosa: trata-se de "Is this desire", que está justamente no álbum de P.J. Harvey chamado Is This Desire?, lançado em 1998, seu quarto trabalho. O texto poderia ser visto como um poema narrativo extremamente elíptico, mesmo assim de uma eficiência fanopaica incrível, algo que vemos também em uma canção como "This charming man", de Morrissey com os Smiths.
PJ Harvey vocaliza seu "Is this desire".
Is This Desire
Joseph walked on and on The sunset Went down and down Coldness Cooled their desire And Dawn said "Let's build a fire"
The sun dressed the trees in green And Joe said "Dawn I feel like a king" And Dawn's neck and her feet were bare Sweetness in her golden hair
Said "I'm not scared" Turned to her and smiled Secrets in his eyes Sweetness of desire
Is this desire, enough enough To lift us higher, to lift above ?
Hour long By hour, may we two stand When we're dead, between these lands The sun set behind his eyes And Joe said : "Is this desire"
Is this desire, enough enough To lift us higher, to lift above ?
Is this desire, enough enough Enough inside, is this desire ?
O texto une novamente de forma eficiente a velha junção entre Eros e Tânatos. Ousa rimar sexy com eerie. A canção me parece assustadora, marcada por nosso desejo desesperado de transcendência. Nosso desespero entre o hedonismo e a ascese.
PJ Harvey tem outras canções que me ensinaram muito sobre tom, sobre ironia, sobre self-deprecation, sobre a tristeza raivosa. Quantos textos dos últimos 20 anos alcançam tal carga emotiva como "Rid of me"? Esta canção - tudo, seu texto, sua música, a voz de Harvey - me parece uma coisa deslumbrante. A encarnação de Medeia. Esta canção teve uma influência muito grande sobre minha personalidade, minha vida, minha poesia.
Rid Of Me PJ Harvey
Tie yourself to me No one else No, you're not rid of me Hmm you're not rid of me
Night and day I breathe Ah hah ay Hey, you're not rid of me Yeah, you're not rid of me No, you're not rid of me
I beg you, my darling Don't leave me, I'm hurting
Lick my legs I'm on fire Lick my legs of desire
I'll tie your legs Keep you against my chest Oh, you're not rid of me Yeah, you're not rid of me I'll make you lick my injuries I'm gonna twist your head off, see
Till you say don't you wish you never never met her? Don't you don't you wish you never never met her? Don't you don't you wish you never never met her? Don't you don't you wish you never never met her?
I beg you my darling Don't leave me, I'm hurting Big lonely above everything Above everyday, I'm hurting
Lick my legs, I'm on fire Lick my legs of desire Yeah, you're not rid of me I'll make you lick my injuries I'm gonna twist your head off, see
Till you say don't you wish you never never met her Don't you don't you wish you never never met her
Lick my legs I'm on fire Lick my legs of desire
"Rid of me" está no álbum de mesmo nome, lançado em 1993, seu segundo. O álbum é excelente. Nele há outra canção também marcada pela tristeza raivosa de Medeia que marca a textualidade vocal de PJ Harvey. Trata-se de "Rub till it bleeds":
Rub 'Til It Bleeds PJ Harvey
Speak, I'm listening Baby, I'm your sweet thing Believe what I'm saying God's truth, I'm not lying
I lie steady Rest your head on me I'll smooth it nicely Rub it better 'till it bleeds
And you'll believe me Caught out again I'm calling you weak Getting even
And I, I was joking Sweet babe, let me stroke it Take, I'm giving God's truth, I'm not lying
And you'll believe me I, I, I'm calling you in And I'll make it better I'll rub 'till it bleeds
PJ Harvey encerraria a década e o século com um álbum muito bom, chamado Stories from the City, Stories from the Sea (2000). Na década passada, PJ Harvey produziu bem menos. Após lançar um álbum regular como Uh Huh Her (2004), voltou com o deslumbrante White Chalk (2007), um álbum intimista, maduro, com canções de textos maravilhosos, pungentes, tristes. Minha canção favorita é "Dear Darkness".
Dear Darkness PJ Harvey
Dear darkness Dear darkness Won't you cover, cover Me again?
Dear darkness Dear I've been your friend For many years
Won't you do this for me? Dearest darkness And cover me from the sun
And the words tightening The words are tightening Around my throat
And, and...
Around the throat of the one I love Tightening, tightening, tightening Around the throat of the one I love Tightening, tightening, tightening
Dear darkness Now it's your time to look after us 'Cause we kept you clothed We kept you in business When everyone else was having good luck
So now it's your time Time to pay To pay me and the one I love With the worldly goods You've stashed away With all the things you Took from us
Este ano, PJ Harvey abriu a década voltando com outra coisa bonita, madura: o seu novo álbum Let England Shake (2011). PJ Harvey vem também compartilhando na Rede uma série de curtas feitos por Seamus Murphy para as canções, e mencionou Harold Pinter e T.S. Eliot como influências para os textos. Creio que minha favorita é "The Words That Maketh Murder".
The Words That Maketh Murder PJ Harvey
I've seen and done things I want to forget; I've seen soldiers fall like lumps of meat, Blown and shot out beyond belief. Arms and legs were in the trees.
I've seen and done things I want to forget; coming from an unearthly place, Longing to see a woman's face, Instead of the words that gather pace, The words that maketh murder.
These, these, these are the words- The words that maketh murder. These, these, these are the words- The words that maketh murder. These, these, these are the words- Murder...
These, these, these are the words- The words that maketh murder.
I've seen and done things I want to forget; I've seen a corporal whose nerves were shot Climbing behind the fierce, gone sun, I've seen flies swarming everyone, Soldiers fell like lumps of meat.
These are the words, the words are these. death lingering, stunk, Flies swarming everyone, Over the whole summit peak, Flesh quivering in the heat. This was something else again. I fear it cannot be explained. The words that make, the words that make Murder.
Joel Gibb é basicamente o único membro permanente da banda canadense The Hidden Cameras, para a qual a cada álbum um grande número de amigos músicos é convidado a participar. Joel vive há alguns anos em Berlim, circulamos pelos mesmos becos, tenho o prazer de contá-lo entre os amigos. Ele sempre me deixa contente quando chega para mim enquanto discoteco, seja na minha festa à quartas-feiras ou outro clube berlinense qualquer, e pede: "Just play Kate Bush, darling."
Foto minha com Joel numa quarta-feira qualquer de 2009, no meu evento semanal.
Em uma entrevista, quando lhe pediram que descrevessem sua música, Joel respondeu: "gay church folk music".
"Smells like happiness" é a minha canção favorita dentre as suas, e uma das minhas all-time-favorites. Lembro-me que o próprio título, de cara, já havia me chamado a atenção quando comprei o álbum Smell Of Our Own (2003), e pulei direto para a faixa 5 para escutá-la. Conheço poucas canções que descrevam tão bem a vida subterrânea de homossexuais em grandes cidades nas últimas décadas.
"Smells like happiness", versão oficial no álbum The Smell of Our Own (2003), da banda The Hidden Cameras.
O texto, em uma espécie de prosa ou longo verso whitmaniano, descreve cenas de inferninho viado, com as drogas e as práticas de fetiche sexual. Para mim, o longo verso "I feed my own face when I soon crave a taste of the neck of a boy who wears eau
de toilette and shaves every day and behaves well in department stores" é uma das coisas mais familiares e bonitas que já ouvi da boca de um homem.
Smells like happiness
Joel Gibb (The Hidden Cameras)
Happy we are when we choose to wear the blindfold And mark our own day with a parade and a song
In our minds our fathers have died and we realize that cities have clubs and we like to get drunk and high from the smells we inhale from dirty wells and the mouth of a boy who smokes cigarettes
Happiness has a smell I inhale like a drug done in a darkened hall or a bathroom stall with a friend or a man with a hard-on I feed my own face when I soon crave a taste of the neck of a boy who wears eau de toilette and shaves every day and behaves well in department stores
As well, it is the smell of old cum on the rug men walk their dirty feet on and the sweat from the chest of a man in a leather uniform Happy are we when we choose to wear the blindfold and mark our own place with the smell of our own
§
Abaixo, vocês podem ver uma performance ao ar livre da canção, com Joel Gibb à frente, e logo em seguida minha tradução para o texto do poema lírico.
Joel Gibb e The Hidden cameras cantando "Smell like hapinness" ao ar livre.
Cheira a felicidade
tradução de Ricardo Domeneck
Felizes somos nós quando escolhemos vendar os olhos
E marcamos nosso dia com um desfile e uma canção
Em nossas mentes nossos patriarcas estão mortos e nós percebemos que as cidades têm clubes e nós gostamos de ficar bêbados e altos com os cheiros que inalamos em poços imundos e da boca de um menino que fuma cigarros
A felicidade tem um cheiro que inalo como uma droga produzida num salão escurecido ou numa cabine de banheiro com um amigo ou um homem com uma ereção
Eu alimento minha própria cara quando tiro um gosto do pescoço de um garoto que usa eau de toilette e se barbeia todo dia e se comporta bem em lojas de departamentos
Também é o cheiro de esperma velho no tapete sobre o qual homens caminham com pés sujos e o suor no tórax de um homem com uniforme de couro
Felizes somos nós quando escolhemos vendar nossos olhos e demarcar nosso próprio território com cheiros dos nossos
Esta foi a primeira canção que ouvi da banda de riot grrrls de (ora, de onde mais?) Olympia, no estado norte-americano de Washington, espécie de Meca do movimento. Mais tarde, as moças fixaram quartel-general em Portland, no Oregon. Não me lembro mais ao certo onde escutei esta "A quarter to three" pela primeira vez, talvez como vinheta em algum programa da MTV. Sei que, certamente em 2001, um dos meus melhores amigos em São Paulo, o jornalista Felipe Gutierrez, me emprestou o quarto álbum da banda, chamado The Hot Rock (1999), quando comentei com ele sobre esta canção que andava me obcecando. O álbum, que é ótimo, termina justamente com a canção "A quarter to three".
Por aquela época, já estava organizando com Gutierrez uma festa de indie rock todas as quartas-feiras, no clube Matrix (ainda existe?), na Rua Aspicuelta (Vila Madalena). A festa se chamava Gum! (o nome completo da festa era, em típica arrogância indie, "Spooning Good Singing Gum", como na canção dos Cocteau Twins). Lá na festa, ao discotecar, sempre incluía esta "A quarter to three", que ainda é uma das minhas all-time-favorites:
:
"A quarter to three", da banda Sleater-Kinney, no álbum The Hot Rock (1999).
Não sei ao certo quem escreve os textos na banda. Se tivesse que chutar, diria que é a vocalista Corin Tucker. Mas como Carrie Brownstein tem hoje uma carreira consolidada também como jornalista e escritora, é possível que fosse ela a letrista, ou que Tucker e Brownstein trabalhassem em conjunto. De qualquer maneira, o texto de "A quarter to three" é muito legal.
A quarter to three
It's 1 a.m. You haven't called It must be four Wherever you are And the photobooth strip And the letter you wrote They feel like nothing I could hold
Nothing bad, nothing free There's nothing left For me to feel It's like going to bed At a quarter to three Finally tired, finally empty
Should I be up To play the game? Back and forth Get back at me And my confidence fell And I feel so mad Tell me Whose side are you on?
Nothing bad, nothing free There's nothing left For me to feel It's like going to pieces Could fix everything At this point I'm really me
A banda tem um único vídeo oficial, para uma canção do mesmo álbum em que saiu "A quarter to three", dirigido por ninguém menos que Miranda July. O nome da canção é "Get up".
Vídeo para a canção "Get up" da banda Sleater-Kinney, dirigido por Miranda July.
Cascatinha e Inhana foram os nomes artísticos escolhidos pelo casal paulista Francisco dos Santos (1919 - 1996) e Ana Eufrosina da Silva (1923 - 1981). Ambos do interior de São Paulo, estão entre os mais importantes artistas da música caipira brasileira. Fossem norte-americanos, seriam chamados de representantes da música folk e talvez pudessem estar na raíz da melhor música sendo produzida hoje no país, mas eram brasileiros, e sua sorte portanto foi um tantinho diferente.
Cascatinha e Inhana - "Meu primeiro amor"
Tenho uma lembrança infantil muito forte ligada a eles. Meu pai costumava cantarolar a canção "Índia" em fins de semana modorrentos do interior, flertando com minha mãe, que tinha os cabelos pretos de descendente de índia. Esta foi a canção que fez Cascatinha e Inhana famosos, uma guarânia composta por J. Flores e M. Guerrero, gravada em 1952. Ela viria a ser regravada, dentre vários outros, pelo gigantesco Dilermando Reis (1916 – 1977). É deste mesmo ano a canção "Meu primeiro amor", outro grande sucesso da dupla, que apresenta de forma tão decisiva e clara a voz linda de Ana Eufrosina da Silva, a maravilhosa Inhana. É uma canção realmente muito bonita, uma das minhas favoritas no cancioneiro brasileiro.
Tenho ouvido muita música folk nos últimos meses, gente tão diversa entre si quanto Woody Guthrie, Lead Belly ou Dilermando Reis, passando pelas vozes de Joni Mitchell e Inhana. Talvez a música pop brasileira estivesse produzindo algo mais variado e plural se fosse beber nesta fonte, sem medo de ser caipira, já que é tão chique ser folk. Enquanto isso não acontece, vou ouvindo Cascatinha e Inhana.
Judee Sill foi uma poeta lírica, ou, como eu deveria dizer para ser melhor compreendido, uma songwriter, cantautora norte-americana, nascida em Oakland, Califórnia, em 1944. Em vida lançou apenas dois álbuns, seu album epônimo de estreia em 1971, e no ano seguinte Heart Food, antes de morrer em decorrência de uma overdose em 1979. Em 2005, foi lançado um álbum duplo com canções inéditas, chamado Dreams Come True. Judee Sill é um dos nomes injustamente pouco conhecidos do folk norte-americano.
"Jesus was a cross maker" mostra sua escrita sofisticada e mística, e é talvez sua canção mais conhecida, interpretada por outros luminares daquela década, como Mama Cass.
Jesus was a cross maker
Judee Sill
Sweet silver angels over the sea Please come down flyin' low for me One time I trusted a stranger Cuz I heard his sweet song And it was gently enticin' me Tho there was somethin' wrong, But when I turned he was gone.
Blindin' me, his song remains remindin' me, He's a bandit and a heart breaker, Oh, but Jesus was a cross maker.
Sweet silver angels over the sea Please come down flyin' low for me
He wages war with the devil A pistol by his side And tho he chases him out windows And won't give him a place to hide, He keeps his door open wide
Fightin' him he lights a lamp invitin' him, He's a bandit and a heart breaker, Oh, but Jesus was a cross maker
Sweet silver angels over the sea Please come down flyin' low for me
I heard the thunder come rumblin' The light never looked so dim I see the junction git nearer' And danger is in the wind And either road's lookin' grim
Hidin' me, I flee, desire dividin' me, He's a bandit and a heart breaker. Oh, but Jesus was a cross maker Yes, Jesus was a cross maker
"Jesus was a cross maker", interpretada por Mama Cass (1972).
No vídeo abaixo, podemos ver/ouvir Judee Sill interpretando a canção "The Kiss" em Londres, em 1973.
Recentemente, a excelente banda norte-americana Fleet Foxes, de Seattle, e também às vezes agrupada, como Judee Sill, sob o divertido gênero do baroque pop, tem interpretado sua canção "Crayon Angels" em apresentações ao vivo.
Robin Pecknold, o poeta lírico/songwriter à frente da banda Fleet Foxes, interpretando a canção "Crayon Angels", de Judee Sill (1944 - 1979)
Na postagem anterior, com poemas para O Moço, dediquei a ele em seu aniversário uma de minhas canções favoritas, chamada "It´s a wonderful life", do álbum de mesmo nome da banda americana Sparklehorse, liderada pelo poeta cantor Mark Linkous, que se suicidou este ano, em março. Uma grande perda, que dá à canção uma carga emocional ainda mais forte quando acompanhamos sua voz delicadíssima, com aquele texto tão bonito e conciso. Certamente tem a ver com o fato de ser poeta, mas a maioria de minhas canções favoritas apresenta sempre textos que poderiam se sustentar sozinhos, mas que obviamente se tornam poesia na voz do poeta cantor. Poesia mesmo, em sua conjunção entre texto, voz, música, performance. Calma: não vou voltar à minha ladainha sobre as diferenças entre poesia e literatura. Quero apenas lembrar mais uma vez que minha reivindicação de que a literatura é um dos ramos da poesia (não o contrário) não é mero capricho ou debate sobre a primazia do ovo ou da galinha. Para alguns, isso talvez seja como o famoso dizer daquele biscoito que não sabemos se "vende mais porque é fresquinho, ou é fresquinho porque vende mais". Talvez. Insisto nisso porque acredito que essas perspectivas trazem consequências muito distintas para a nossa crítica e também para a nossa poesia. É completamente legítimo estudar a poesia apenas em sua manifestação literária, como fazemos até mesmo com aqueles poetas que não pensavam em sua poesia apenas em termos literários, como Arnaut Daniel, Bertran de Born e todos os outros trovadores provençais. Mas a hierarquia que hoje seguimos me parece pouquíssimo saudável. De qualquer forma, vamos à canção, que vale mais.
Como já mostrei a canção, com aquele vídeo que me corta o coração, começo agora pelo seu texto, que me parece tão tão tão bonito:
It´s a wonderful life Mark Linkous, com a banda Sparklehorse
I am the only one Can ride that horse Th'yonder
I´m full of bees Who died at sea
It's a wonderful life
I wore A rooster's blood When it flew like doves
I'm a bog Of poisoned frogs
It's a wonderful life
I'm the dog that ate Your birthday cake
It's a wonderful life
Não é qualquer um que atinge tamanha intensidade com tão pouco. É poesia lírica no sentido mais completo do termo, indo de sua definição técnica, digamos, de poesia musicada, até outras mais recentes entre os românticos. A preponderância da assonância na vogal O, unida à voz delicadíssima de Linkous, dá à canção, seu texto e música, uma espécie de abertura diáfana e etérea, de quem parece querer evaporar na presença do ser amado, muito delicada, até mesmo com certa exasperação, aquela de quem está se entregando. O jogo entre consoantes fricativas e oclusivas cria um jogo interessante entre a voz e a expiração do poeta em performance, criando uma atmosfera de certo cansaço e ao mesmo tempo alívio, como o que eu ousaria chamar de uma resignação feliz. O amor talvez deva sempre pronunciar-se por modos de articulação obstruinte?
Os dísticos são particularmente bonitos: como resistir a um poeta que se define como "a bog / of poisoned frogs", ou "the dog that ate / your birthday cake"? Sem mencionar a metáfora algo aterrorizante e forte de "I am full of bees / Who died at sea".
Momento de ouvir novamente a canção, desta vez com outro vídeo:
(It´s a wonderful life", de Mark Linkous. Vídeo de Guy Maddin.)
Fiz um pequeno exercício de tradução, tentando reconstruir o texto, salvando ao menos suas rimas, mesmo que não tenha conseguido manter todos os jogos sonoros. É uma tradução completamente livre, tenham paciência comigo. Vamos chamar de paráfrase. É, talvez seja um bom título até: "Paráfrase para uma vida maravilhosa segundo Mark Linkous". Mudei também certa diagramação e métrica, e dísticos foram quebrados, formando tercetos e quartetos arrebentados, capengas como qualquer apaixonado.
Paráfrase para uma vida maravilhosa segundo Mark Linkous Ricardo Domeneck
Eu sou o único domado Para montar este cavalo Do outro lado
Estou cheio de abelhas Mortas sobre as telhas
Que maravilha De vida
A minha indumentária É o sangue de galinhas Quando voam como águias
Eu sou um charco De sapos Envenenados
Que maravilha De vida
Sou o cachorro Que devoraria O teu bolo De aniversário
Que maravilha De vida
Infelizmente, não tenho a elegância lacônica de Mark Linkous. Várias letras do americano demonstram seu conhecimento poético. Trata-se ainda de um homem respeitadíssimo, que colaborou com criaturas como Tom Waits, David Lynch e Daniel Johnston, para citar três heróis meus. Trabalhou também com o Radiohead, com o poeta cantor Vic Chesnutt (que também se mataria, em 2009) e com P.J. Harvey. Com sua banda Sparklehorse, lançou discos com os títulos tão bonitos de Vivadixiesubmarinetransmissionplot (1995), Good Morning Spider (1998), It's a Wonderful Life (2001), e Dreamt for Light Years in the Belly of a Mountain (2006).
O último projeto de Mark Linkous, antes do seu tristíssimo suicídio em março deste ano (há algo em pessoas que decidem se matar na rua, em público, que realmente me atinge em cheio e me assombra) foi uma colaboração com o produtor musical Danger Mouse e o diretor David Lynch, além de outros dez vocalistas, para criar o álbum projetual Dark Night of the Soul (2009), creio que uma referência clara ao poema místico de San Juan de la Cruz (1542 – 1591), o essencial "Noche oscura del alma".
O projeto foi conduzido por Linkous, Lynch e Burton, mas com a colaboração, em cada faixa, de seus cantores: James Mercer (The Shins), Wayne Coyne (The Flaming Lips), Gruff Rhys (Super Furry Animals), Jason Lytle (Grandaddy), Julian Casablancas (The Strokes), Frank Black (Pixies), Iggy Pop, Nina Persson (The Cardigans), Suzanne Vega, Vic Chesnutt e Scott Spillane (Neutral Milk Hotel). O álbum trazia um livro com 100 páginas da fotografia de David Lynch, em uma edição limitada, de 5000 exemplares.
Mostro aqui uma das canções do álbum, justamente aquela que se chama "Dark night of the soul", com ninguém menos que David Lynch nos vocais.
(David Lynch, na canção "Dark night of the soul", do álbum de mesmo nome que ele produziu com Mark Linkous e Brian Burton a.k.a. Danger Mouse, para o qual publicou ainda um livro com 100 páginas de fotografia.)
Em julho, a banda R.E.M. passou um mês em Berlim, gravando seu novo álbum. Michael Stipe começou a ser visto em várias festas da cidade, especialmente, é claro, as festas queer (justo ele, que tanto popularizou a expressão em uma entrevista do fim dos anos 90). Para minha sorte, ele é muito amigo de um DJ canadense que toca todos os meses na nossa festa semanal, e graças a este amigo pude conhecer pessoalmente o sr. Stipe, um dos meus heróis da adolescência. Encontramo-nos uma noite em um clube subterrâneo, acabamos na mesma mesa em bebedeira, e outra noite ele veio ao nosso evento de toda quarta-feira.
Tive que me controlar para não regredir a um adolescente trêmulo, como sempre me ocorre quando me vejo diante destas criaturas que por tantos anos foram míticas para mim. Sobre o que se falou à mesa naquela noite bêbada, num clube subterrâneo do Berlimbo? De tudo, da vida nossa de cada 80s e 90s, porque moramos onde moramos, de amores passados por meninos lindos, de como ele detesta Damian Hirst (havia uma exposição de Hirst em Berlim naquele momento) e de como eu por outro lado o acho divertidíssimo, de como todos na mesa gostávamos de Bruce Nauman (havia uma exposição de Nauman em Berlim naquele momento), sobre o Berlimbo, sobre Athens - Georgia, sobre Nova Iorque.
E eu me controlei o tempo todo para não bancar o fã idiota, e desandar a falar sobre como ele foi importante para mim quando adolescente, sobre como algumas de suas canções salvaram minha sanidade em uma cidade pequena do interior de São Paulo, sobre como "Fall on me" era um mantra pessoal meu, e, finalmente, de como em certa tarde de São Paulo, há muitos anos, eu havia chorado convulsivamente enquanto esta canção rolava na vitrola, em módulo repeat. Eu me controlei, kept my cool, e quase derreti quando ele se despediu dizendo "It was very nice to meet you, Ricardo", uma frase feita e simplesmente polida, que se diz a qualquer um, mas que terminava com meu nome, vindo da boca do herói de um (como me tornei naquele momento mais uma vez) adolescente magricelo, corcunda e cheio de acne.
"Fall on me", do álbum Life's Rich Pageant (1986), do R.E.M.
Abri a postagem com este relato pessoalíssimo, beirando nota de coluna social. Quanto à canção, que é o que interessa, o texto de "Fall on me" é uma coisa muito sofisticada, em minha opinião, e traz umas lições exemplares de poeticidade. Pessoalmente, encontro mais aprendizagem em um verso como "Feathers hit the ground before the weight can leave the air", neste poema cantado, que em muita poesia escrita e publicada na década de 80. Posso estar insano, mas não consigo chacoalhar a impressão de certa wit metafísica neste verso, como se viesse em linhagem de "heredipoeticidade" de criaturas como Donne ou Crashaw. O texto duplo, em sobreposição de vozes, tem uma carga tão forte na última estrofe, é tão lindo: "There's the progress we have found (when the rain) / A way to talk around the problem (when the children reign) / Building towered foresight (keep your conscience in the dark) / Isn't anything at all (melt the statues in the park) / Buy the sky and sell the sky and bleed the sky and tell the sky". Um dia o céu há de cair sobre nossas cabeças, mas até lá continuo ouvindo R.E.M., como qualquer adolescente digno dos anos 80/90.
Fall on me Michael Stipe, com o R.E.M.
There's a problem, feathers iron Bargain buildings, weights and pullies Feathers hit the ground before the weight can leave the air Buy the sky and sell the sky and tell the sky and tell the sky
(chorus) Fall on me (what is it up in the air for) (it's gonna fall) Fall on me (if it's there for long) (it's gonna fall) Fall on me (it's over it's over me) (it's gonna fall)
There's the progress we have found (when the rain) A way to talk around the problem (when the children reign) Building towered foresight (keep your conscience in the dark) Isn't anything at all (melt the statues in the park) Buy the sky and sell the sky and bleed the sky and tell the sky
(repeat chorus)
Fall on me
Well I could keep it above But then it wouldn't be sky anymore So if I send it to you you've got to promise to keep it whole
Buy the sky and sell the sky and lift your arms up to the sky And ask the sky and ask the sky
A canção "Song to the siren" foi composta por Tim Buckley (1947 - 1975) sobre um texto de Larry Beckett, e gravada em seu álbum Starsailor, de 1970. Larry Beckett é um poeta californiano, nascido em 1947, mais conhecido, na verdade, por suas colaborações com Buckley.
Tim Buckley vocaliza a canção "Song to the siren" em um programa televisivo, em 1968.
Song to the siren
Tim Buckley/Larry Beckett
Long afloat on shipless oceans
I did all my best to smile
til your singing eyes and fingers
drew me loving into your isle.
And you sang:
Sail to me, sail to me,
Let me enfold you.
Here I am, here I am,
waiting to hold you.
Did I dream you dreamed about me?
Were you hare when I was fox?
Now my foolish boat is leaning,
broken lovelorn on your rocks.
For you sang:
Touch me not, touch me not,
Come back tomorrow.
Oh my heart, oh my heart
shies from the sorrow.
I'm as puzzled as a newborn child.
I'm as riddled as the tide.
Should I stand amid the breakers?
Or shall I lie with death my bride?
Hear me sing:
Swim to me, swim to me,
Let me enfold you.
Here I am, Here I am,
waiting to hold you.
A canção viria a ser vocalizada por outros poetas orais, como na bela versão de Liz Fraser, em colaboração com This Mortal Coil, em 1983.
Vocalização de Liz Fraser, com This Mortal Coil, para a "Song to the siren", em 1983, que apareceu, entre outros, na trilha sonora do filme The Lovely Bones (2010).
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Robert Plant vocaliza "Song to the siren" em homenagem a Tim Buckley e seu filho Jeff Buckley, grande poeta oral que morreu também muito jovem.
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A canção foi vocalizada agora por uma de minhas artistas favoritas, a ensandecida cantora norte-americana Kevin Blechdom:
Vocalização de Kevin Blechdom para a "Song to the siren", deste ano.
Soube pelo Demônio Amarelo, espaço mantido pelo querido Dirceu Villa, que Cat Power esteve de passagem pelo Brasil e fez uma excelente apresentação em São Paulo. A notícia me trouxe velhas lembranças ligadas a Chan Marshall. Em primeiro lugar, lembrei-me imediatamente de sua apresentação em São Paulo em 2001, no SESC Vila Mariana, que foi um verdadeiro desastre. Cat Power era já famosa naqueles tempos por subir completamente bêbada no palco, incapaz de terminar qualquer canção, com problemas no violão, no piano. Aquela noite não manchou a admiração que eu tinha por ela, minha paixão por sua música, mas ficou na memória como uma noite triste. Era muito triste vê-la naquele estado, por mais que alguém pudesse tentar glamourizar o artista atormentado, bêbado, sofredor. Ela parecia imensamente infeliz, sozinha naquele palco enorme do SESC Vila Mariana, apenas com um piano e todo o álcool do mundo. Parafraseando o poeta polonês Zbigniew Herbert, que em seu poema sobre Tucídides falava sobre o "preço do exílio" nos versos "exiles of all times / know what price that is", eu diria aqui que "artistas bêbados de todos os tempos sabem que tristeza é esta."
Outra lembrança foi a da primeira vez que ouvi/vi Cat Power. Era tarde da noite, eu era ainda um adolescente, zapeando pela televisão, quando apareceu o vídeo para a estupenda canção "Nude as the news", do álbum What Would The Community Think, de 1996, com uma Chan Marshall novíssima, de cabelos curtos, claramente embriagada, em imagens em preto-e-branco, tagarelando, caminhando, ensandecida e ao mesmo tempo calma em sua loucura. Foi amor à primeira vista, e esta canção segue sendo uma de minhas all-time-favorites, com seu texto absurdo e enraivecidamente erótico.
("Nude as the news", Chan Marshall, ou Cat Power)
No entanto, o primeiro álbum de canções de Cat Power que comprei foi Moon Pix, de 1998. Do álbum, creio que minha canção favorita é aquela que a própria Cat Power declara ser uma de suas favoritas: "Metal heart", que vocês podem ouvir aqui neste vídeo, com Cat Power ainda muito moça, indie girl descabelada, em 1998.
("Metal heart", ao vivo em San Francisco)
Além das lindas canções de sua própria autoria, Chan Marshall é uma intérprete muito boa, que já lançou dois álbuns com versões para canções alheias. Minha favorita ainda é sua versão para a deslumbrante "Moonshiner", que já foi cantada, dentre outros, por Bob Dylan. A de Cat Power é de longe a mais linda.
("Moonshiner", canção popular, na versão de Chan Marshall)
"Moonshiner" é seguramente, ao lado de "O mundo é um moinho", do Cartola, a canção mais triste do mundo.
Moonshiner tradição popular norte-americana
I've been a moonshiner For seventeen long years I spent all my money on whisky and beer
I go to some hollow And set up my holy holy still If drinking does not kill me Then I don't know what will
I go to some bar room And drink with my friends If women and men would come to follow To see what I might spend
God bless them handsome men I wish they were mine Their breath is as sweet as The dew on the holy holy vine
You're already in hell, you're already in hell I wish we could go to hell When the bottle gets empty Then life ain't worth the drown
Ela está cada vez mais bonita. A idade a transformou num mulherão. Desde que deixou de beber, suas apresentações, pelo que tenho lido, tornaram-se perfeitas, maravilhosas. Espero pela chance de vê-la/ouvi-la aqui no Berlimbo. Encerro esta postagem com a entrevista abaixo, mostrando uma Chan Marshall honesta, sincera, cândida, terna, singela, linda Chan Marshall.
(Chan Marshall em entrevista para o New York Times)