(Lotte Lenya, esposa de Kurt Weill, cantando a famosa "Seeräuber Jenny", da Ópera dos Três Vinténs (1931), do duo Weill/Brecht, aqui em cena da adaptação cinematográfica de G.W. Pabst)
.
Um dos prazeres de organizar, todas as quartas-feiras, o evento que chamamos de Berlin Hilton (ironia pop guiando mais que a escolha deste nome), e que eu às vezes gosto de chamar de my own private Cabaret Voltaire, é a oportunidade de conhecer e trabalhar com algumas das criaturas mais interessantes do Berlimbo, sejam berlinenses nativos ou metecos como eu. Berlim teve seus momentos mais interessantes do século XX quando se fez Meca para estrangeiros, em busca de sua vida nortuna e liberdade sexual, como nos anos 20, uma das eras mais liberais da história da Alemanha com a República de Weimar (1918 - 1933), quando os cabarés da cidade abrigavam Kurt Weill, os poetas dadaístas de Berlim, como Raoul Hausmann, e ainda poetas como Bertolt Brecht, críticos como Walter Benjamin ou estrangeiros como W.H. Auden e Christopher Isherwood.
Obviamente, a vida pós-Grande Guerra não era nada fácil, como podemos ler em livros como Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, ou em filmes como O ovo da serpente (1977), de Ingmar Bergman.
Outro momento semelhante ocorreria na década de 70, com o movimento punk-industrial, trazendo à cidade estrangeiros como David Bowie ou Iggy Pop, onde lançariam, respectivamente, os antológicos Low e Lust for life, ambos em 1977. Sem estar na cidade, Lou Reed lança a ópera-rock Berlin (1973), considerado, ao lado de Transformer (1972), um de seus melhores álbuns. Foi também, é claro, a década da Facção do Exército Vermelho, da conversão de uma escritora e jornalista pacifista como Ulrike Meinhof em uma das líderes do grupo terrorista, tempo dos filmes de Alexander Kluge e Rainer Werner Fassbinder. Um filme perfeito para compreender a Berlim e a Alemanha de então é justamente o filme coletivo Deutschland im Herbst (Alemanha no outono), de 1978, do qual participam tanto Fassbinder como Kluge.
Muitos crêem que a queda do Muro de Berlim trouxe um momento parecido, e realmente a década de 90 assemelhou-se em muitos aspectos à efervescência da década de 20 e 70, com uma explosão de clubes e o surgimento de toda a cena de música eletrônica que ainda domina a cidade. Ainda sendo uma das capitais mais baratas da Europa, a cidade passou a atrair novamente artistas estrangeiros. Muitos dos artistas visuais contemporâneos de maior renome vivem na cidade. A cena musical geraria, entre os alemães, nomes como Sasha Ring, também conhecido como Apparat, Ellen Allien, Modeselektor e outros.
(O gigantesco, imprescindível Walter Benjamin)
Entre os estrangeiros, muitos se estabeleceram na cidade, como Janine Rostron, também conhecida como Planningtorock, Jamie Lidell, Olof Dreier do duo The Knife, assim como toda uma série de artistas interessantíssimos, ainda que menos conhecidos, como Kevin Blechdom e Angie Reed.
A cidade tornou-se o centro poético do país, reunindo em bairros dos antigos Oeste e Leste alguns dos poetas jovens competentes da língua, como Monika Rinck, Daniel Falb ou Ann Cotten, assim como alguns dos enfants terribles do país, como o diretor de teatro René Pollesch ou o artista visual Jonathan Meese.
Nos quase cinco anos em que organizamos a Berlin Hilton, já tive a oportunidade de convidar algumas de minhas criaturas favoritas, incluindo três mulheres que respeito muito, três de minhas divas favoritas do Berlimbo: Kevin Blechdom (que já deixou a cidade, retornando à sua San Francisco natal), Angie Reed e Janine Rostron a.k.a. Planningtorock.
Entre os metecos de Berlim, Janine Rostron é o que mais me impressiona, uma artista interessantíssima, com um trabalho musical e visual excelente. Ela apresentou-se na Berlin Hilton no dia 4 de julho de 2007, mas infelizmente não tenho um vídeo de sua performance. Mostro abaixo sua performance na Casa das Culturas do Mundo (Haus der Kulturen der Welt), em abril deste ano.
(Janine Rostron a.k.a. Planningtorock, performance em Berlim, 2009)
Kevin Blechdom e Angie Reed apresentaram-se na Berlin Hilton em junho e novembro de 2006, respectivamente. A noite com Kevin Blechdom foi muito bonita, alugamos um piano e ela convidou o francês Mocky como baterista, algo incomum.
(Kevin Blechdom @ Berlin Hilton, 2006)
Angie Reed apresentou sua música divertidíssima, com letras inteligentes e sua presença maravilhosa no palco.
(Angie Reed @ Berlin Hilton, 2006)
Chegou o outono, com o frio insuportável de Berlim, e por esta época sempre me confronto com minha condição de meteco, pensando também em meus companheiros de condição. Tenho dois poemas em que trabalho em parte com a ideia do "poeta exilado", um deles escrito em meu primeiro ano em Berlim ("Sempre o exílio"), quando minha situação no país não era exatamente muito legal, e o outro escrito alguns anos mais tarde, quando já me sentia em casa e à vontade em minha condição de meteco. "Sempre o exílio" foi publicado em Carta aos anfíbios (2005) e "Cão são da ex-ilha" está no meu próximo livro, Sons: Arranjo: Garganta (no prelo).
Sempre o exílio
a Roberto Borges
a.
surpreso a quanta terra
não me pertence, que
engraçado descobrir (mais
uma vez) que trocar de país
não significa trocar de corpo
e a mudança
de língua
é acompanhada pela permanência
da produção da
mesma saliva.
b.
esta ilegalidade do meu corpo
desaloja-me a comida no
estômago
que permanece em ângulo
suspeito, a boca
arqueia-se, tesa –
e o barbante frouxo dos braços
a nenhum peito estreita-me,
esta pele estrangeira,
este cheiro novo.
c.
a certeza finalmente
de que a mão é incapaz
da linha reta,
os ouvidos mais atentos,
as pontas dos dedos
mais ativas, despertas,
os ombros caídos, menos
por cansaço que por pesos
acumulados ao longo
de outros sonos;
quando as noções
de segurança
e cidadania
desaparecem e resta-nos
a condição.
(Carta aos anfíbios, 2005)
§
Cão são da ex-ilha
a Carlito Azevedo
o desgosto de cada
passo confirmar o mapa
e o diafragma contraído
entende o queixo
no joelho,
meio-dia e meia
o centro da certeza
que caminha do “quero“
ao “não-quero“,
palha, fênix, Joana
d’Arc, como perceber
que abismo e precipício
não
são sinônimos
exatos,
ou acordar no meio da
noite sem energia
elétrica
e sussurrar com a calma
do fim da força:
equivalendo
silêncio e escuridão,
real
apenas a escolha
da língua, entre-
tanto a
memória
das possibilidades
morre
para que o fato
entre inassistido
nas atas
do verídico;
saiu o sol,
deve estar tudo
bem; subiu a lua,
deve estar tudo
bem;
trocar de pele
continuamente
talvez
leve-me ao centro
e a ausência
me escame
como quem diz
“eu sinto
a falta”
(Sons: Arranjo: Garganta, no prelo)
.
.
.
Um comentário:
acho a coisa mais bonita o seu [...] trocar de país não significa trocar de corpo [...].
mas há anjos em todas as cidades, preocupados em entender sobre como qualquer alma pode viver um qualquer grande amor, como em wim wenders, sua berlim e seu asas do desejo.
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