Publiquei hoje uma pequena seleção de poemas do jovem português Daniel Faria (1971 - 1999), morto há uma década, aos 28 anos de idade, na Modo de Usar & Co.. Escrevendo a nota biográfica, não pude deixar de pensar em outro poeta da língua, morto com a mesma idade, o jovem brasileiro Torquato Neto (1944 - 1972). Muitas coisas, no entanto, parecem separar os dois poetas. Daniel Faria morreu em decorrência de lesões cranianas, após uma queda, em um acidente doméstico; o poeta estava prestes a terminar seu noviciado e faleceu no Mosteiro Beneditino de Singeverga, tendo publicado, apesar da pouca idade, cinco livros. Torquato Neto suicidou-se no Rio de Janeiro, com a mesma idade, sem livro publicado, mas após compor canções importantes e ficar conhecido como o poeta do grupo associado com a Tropicália. Faria, o monge beneditino, com poemas de uma pesquisa interessante das possibilidades, no fim do século, de uma lírica pura, pesquisa que liga seu trabalho à linhagem de alguns dos primeiros modernistas, como Juan Ramón Jiménez, Henriqueta Lisboa ou Anna Akhmátova. Torquato, o "Nosferatu" do cinema marginal, o poeta de uma lírica "impura", ligada ao tumulto histórico de seu momento, trabalho que o liga a modernistas como Oswald de Andrade, César Vallejo, Bertolt Brecht. Faria, declarando-se alguém que anda "um pouco acima do chão / Nesse lugar onde costumam ser atingidos / Os pássaros", Torquato descrevendo-se: "eu sou como eu sou / presente / desferrolhado indecente / feito um pedaço de mim".
Algumas das características que me interessam em Daniel Faria estão em seu interessante trabalho sintático, a partir de seu uso incomum da quebra-de-linha. Em uma tradição hegemônica de poetas que parecem temer o fim do verso antes de completarem seu pensamento, é interessante contemplar como Faria permitia-se o fluxo e o fluido, levando suas estrofes a funcionarem pela acumulação de sentido, e permitindo que cada verso se transforme ao atingir o próximo, em um trabalho de linguagem que parece muito mais antenado às pesquisas linguísticas do século que terminava, também ao contexto dessacralizado de fim-de-século, buscando a polissemia, mas sem recorrer à elefantíase semântica, nem sequer entregando-se à fé transcendental que corrobora a metáfora, algo que poderíamos esperar de um poeta-noviço. Em seus melhores momentos, o verso de Faria se faz independente, autorreferente, mas acopla-se em expansão de sentido ao ligar-se ao seguinte. Tomemos o exemplo do poema abaixo:
Um pássaro em queda mesmo
Quando é proporcional à pedra
Que tomba do muro nunca
Alcança a mesma coloração do musgo
– Já nem sequer falo do tempo
Em que mudam a pena
Para fazeres ideia pensa
Como perde um homem a idade
De encontrar os ninhos
Retém na memória: o homem cai. Desloca-se
O pássaro para que as estações não mudem
É dessa rotação que o muro
Pode cercar-se sem ninguém o construir. O cerco
Do voo é a pedra da idade
Para fazeres uma ideia pensa
Em engoli-la
O primeiro verso pode ser compreendido como uma linha cerrada, definitiva: "Um pássaro em queda mesmo"; no entanto, este "mesmo" se transforma ao chegarmos ao verso seguinte: "Quando é proporcional à pedra", e assim por diante, gerando uma acumulação de sentido que surpreende a cada linha, na qual nada é definitivo, nem mesmo a semântica. Nas palavras de William Carlos Williams: "O poeta pensa com seu poema"; nas de Ludwig Wittgenstein: "O significado de uma palavra é seu uso na língua." Na poesia brasileira contemporânea, encontramos algo parecido a esta sintaxe no trabalho de Juliana Krapp e Marília Garcia, ou, de forma distinta, em certos poemas de Marcos Siscar.
É como se Faria estivesse sempre disposto a arriscar-se a dar um passo a mais (às vezes uma única palavra em cada verso) em direção ao despenhadeiro em que se pendura a chance de sucesso do pensamento de seu texto. Explico-me: um poeta mais "prudente" (menos interessante) e cioso da completude de seu "raciocínio", provavelmente quebraria os versos em articulações diferentes, previsíveis, deixando-se seduzir pelas rimas fáceis. Por exemplo:
"Um pássaro em queda
Mesmo quando é proporcional à pedra
Que tomba do muro
Nunca alcança a mesma coloração do musgo..."
Se houvesse quebrado suas linhas desta maneira, o poema empacaria em solavancos, com cada rima soando como um tamanco no metal. Da maneira como diagramou suas linhas, em seu texto, Daniel Faria alcança um efeito muito mais interessante, não apenas com as rimas: mesmo/pedra/nunca/musgo/tempo/pena, como engendrando um ritmo que calcula e maquina a urgência da respiração do leitor.
Torquato Neto manteve seu trabalho lírico em um momento histórico que privilegiava um discurso antilírico, fazendo da pesquisa de sua própria identidade, múltipla, uma maneira de abordar a tradição de pesquisa identitária que se iniciara com modernistas como Oswald de Andrade e Raul Bopp (e os obcecara), como se Torquato Neto dissesse a cada texto: "O Brasil sou eu", pesquisando a primeira pessoa do singular como quem assalta a primeira do plural, como em seu poema mais conhecido.
Cogito
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim
Eu perguntaria, como proposta, se o "Cogito" tropicalista de Torquato Neto não se manteria vivo, por quase duas décadas mais, na figura de Paulo Leminski, aquele que deu ao Brasil outro "Cogito" tropical em seu Catatau (1975), três anos depois do suicídio de Torquato Neto.
Mortos antes de completarem 30 anos, quando os críticos e poetas-cinquentões começam a cogitar a vaga possibilidade de prestar algo de sua atenção senil a poetas mais jovens, Daniel Faria e Torquato Neto deram-nos muito mais sobre o que meditar.
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Um comentário:
daniel faria é uma excelente escolha. daqui a uns anos será ainda mais conhecido.
T.
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