segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O artesão e o interventor

Publiquei este fim-de-semana um artigo na Modo de Usar & Co., apresentando a peça "The atomic alphabet" de Chris Burden, e usando-o como referência para discutir minha distinção entre o artista como artesão e o artista como interventor. Confesso não ter apreço particular pelo trabalho de Burden, mas o extremismo de suas propostas ajuda a deixar mais clara a distinção que procuro fazer. De qualquer forma, não quero gerar mais uma dualidade para um mundo já tão cheio delas. Uso os termos "artesão" e "interventor" apenas como dois dos extremos de uma estrela de muitas pontas.

Trata-se de uma distinção importante, em minha opinião, pois muita saliva crítica se perde em atacar poetas e outros artistas pelo fato de que não fizeram exatamente aquilo que se recusam a fazer. Pound exprime isso de forma pontual em seus conselhos para críticos no ABC of Reading, por exemplo.


(Yoko Ono, "Cut piece")

Como escrevi na Modo de Usar & Co., seria obviamente ocioso e inútil buscar uma crítica do trabalho de executores de performances como Chris Burden no conceito grego da tekhné, ou buscando analisar o trabalho artístico apenas como pesquisa formal. Para não voltar a Burden, mencionaria o trabalho de outros homens e mulheres do pós-guerra, que tiveram grande impacto em minha formação, como o alemão Joseph Beuys, a japonesa Yoko Ono, a servo-croata Marina Abramović ou a brasileira Lygia Clark (em seus trabalhos finais), que se afastam dos conceitos e parâmetros clássicos greco-latinos para a prática artística.

(Marina Abramović, reprodução da performance "Rhythm 10", de 1973, para o filme de Pierre Coulibeuf, de 1999.)

Meu argumento é que, a partir do trabalho da vanguarda histórica ligada ao Cabaret Voltaire e à revista DADA, assim como o de artistas e poetas independentes como Marcel Duchamp e Pierre Albert-Birot (mas não o de vanguardas ligadas ao construtivismo), o trabalho artístico no século XX se bifurca entre a missão do artista como artesão e a do artista como interventor. Este último afasta-se de certa leitura da tradição greco-latina, a tradição neoclássica, em prol de tradições outras em que o papel do artista se afasta da analogia que se faz entre este e o artesão, e se aproxima, por exemplo, de uma possível analogia entre o artista e o xamã nas sociedades arcaicas. Jerome Rothenberg argumenta algo parecido em suas antologias de etnopoesia há anos. No trabalho poético, gosto de usar o termo "poeta-Cassandra", já que este se mostra em geral incapaz de impedir as catástrofes.

O artesão busca a produção de objetos que possam "permanecer", enquanto o interventor usa ações e busca criar situações que tenham efeitos transformadores sobre a comunidade em que vive. Não se pode recorrer facilmente à tekhné grega para analisar trabalhos como "I like America and America likes me" ou "Como explicar imagens a uma lebre morta", de Joseph Beuys; trabalhos como "Cut piece", de Yoko Ono; a "arte terapêutica" de Lygia Clark; ou todo o trabalho de Marina Abramović .



(Joseph Beuys, "Como explicar imagens a uma lebre morta")

Muito já foi escrito sobre a comparação com o xamã em críticas ao trabalho de Beuys, por exemplo. O próprio artista cunhou o termo "escultura social" para o que buscava atingir. Sei que o uso da palavra "xamã" pode ser perigoso e levar a mal-entendidos, é por isso que insisto que traço um paralelo entre o xamã das sociedades arcaicas e o interventor contemporâneo, que nos avisa dos perigos imediatos e dos cataclismos vindouros (como dizia Pound das "antenas da raça"), não por algum misticismo cafona de hippies que se recusam a amadurecer desde 1968. Trata-se do trabalho est-É-tico dos que nos lembram da utopia e ao mesmo tempo nos alertam da distopia em que já vivemos, mesmo que muitos não percebam.

O efeito terapêutico e aspecto quase místico das performances de Joseph Beuys, por exemplo, nas quais se fazia curandeiro da comunidade, ficam claros em muitas de suas peças. Sua definição de arte era: "Curar a faca que abriu o corte."

(Joseph Beuys, "I like America and America likes me")

Poucos eventos tiveram tanto impacto sobre a minha formação inicial quanto a minha visita à retrospectiva de Lygia Clark no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1999. Sua chamada para uma arte que possa envolver o expectador, tornando-o participante, a partir dos "Bichos" (quando começa a se afastar do construtivismo das vanguardas brasileiras) e sua crescente radicalidade até os trabalhos terapêuticos do final de sua vida, ligam-na claramente a esta tentativa de uma parcela da arte do século XX, de afastar-se dos parâmetros neoclássicos que se tornaram hegemônicos a partir do Renascimento.


(Lygia Clark, "Baba antropofágica")


O que estes artistas-interventores recusaram é aquilo que Marshall McLuhan descreveria como "The Renaissance Legacy":


"The Vanishing Point = Self-Effacement,
The Detached Observer.
No involvement!

The viewer of Renaissance art is sistematically placed outside the frame of experience. A piazza for everything and everything in its piazza."


Não são caminhos que se excluem, o do artesão e do interventor. Houve poetas e artistas que souberam combinar os dois, mas não exatamente ao mesmo tempo ou na mesma peça. Se Duchamp se faz interventor na famosa "Fonte" de 1917 ou na criação de Rrose Sélavy ("Eros, c'est la vie"), o mesmo Duchamp renovaria as possibilidades dos parâmetros envolvendo de certa maneira a tekhné grega em trabalhos como Étant donnés. O caso de Pound é interessante. Poeta da técnica e da composição, poeta que poderia ser incluído na tradição construtivista, seu poema talvez mais influente (pelo menos nos Estados Unidos) afasta-se desta tradição; refiro-me, obviamente, aos "Cantos Pisanos", escrito em um momento de antecâmara da morte.

A fronteira, no século XX, segue sendo a proposta pelos poetas-artistas do Cabaret Voltaire e da revista DADA, com parâmetros que os afastam das vanguardas de caráter construtivista. O que não significa que estes artistas descuidavam da técnica ou não possuíam olhos atentos para a composição, como qualquer análise de suas colagens demonstraria. DADA se tornaria uma das mais frutíferas das vanguardas históricas, desaguando no pós-guerra em vários grupos.

Na poesia, a tradição alternativa que se afasta da hegemonia neoclássica renascentista está em vários destes grupos, em Isidore Isou e Gil J. Wolman com os Lettristes ou Guy Debord com a Internacional Situacionista em Paris, poetas como H.C. Artmann e Gerhard Rühm com o Grupo de Viena na capital austríaca, Guérasim Luca e seu grupo de poetas em Bucareste, o Fluxus de Yoko Ono e George Brecht, o Punk dos Sex Pistols e o Glam Rock de David Bowie, os poetas da Escola de Nova Iorque, como Frank O´Hara e John Ashbery, os Beats, etc, etc, etc.

Repetindo o que escrevi no artigo sobre Chris Burden, criar uma oposição entre o artesão e o interventor geralmente leva-nos a perder de vista os aspectos extremamente necessários, nos dias de hoje, para cada uma das duas práticas, dependendo de que lado da trincheira alguém se encontra ou se coloca.

No entanto, é o que se faz diariamente na crítica brasileira.

O trabalho e missão do artista-artesão, aquele que resiste pela negação da realidade destrutiva, como queria Adorno em "Lírica e sociedade", e o trabalho do interventor, como apregoava Allan Kaprow, são visceralmente distintos e ambos necessários. Cada um deles precisa ser julgado por parâmetros específicos. Opor performances de Chris Burden, Joseph Beuys, Yoko Ono, Marina Abramović ou Lygia Clark a trabalhos como as esculturas de Alberto Giacometti, as pinturas de Alfredo Volpi ou os romances de James Joyce é simplesmente mostrar-se cego às óbvias diferenças de propósito de cada um deles.

O problema é que a veemência ética de cada um obriga-os muitas vezes a querer provar que a crença na prática de um exclui a fé na prática do outro. No entanto, cada um precisa ser julgado por parâmetros específicos, insisto.

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2 comentários:

Dirceu Villa disse...

Argumento exato o seu, meu caro Domeneck, para propor essas duas polaridades de um modo visível(em geral uma coisa não exclui a outra, sendo os bons artesãos interventores também).

Única coisa: McLuhan não sabia rigorosamente nada de Renascimento. Repetia, como se vem fazendo inconscientemente há uns quatro séculos, estilemas batidos, clichês mesmo, sobre o período.

(Que o Peter Burke prefere chamar movimento, mas não vejo nada de movimento naquilo, com todo o respeito que tenho pelo Burke).

Muito bom, mon ami. E tem mais: esse João Filho tem umas coisas realmente interessantes. Vou lê-lo, & grazie pela dica neste precioso blog.

Ta, ta.

D.

Ricardo Domeneck disse...

Querido Villa,

sei bem que McLuhan não é exatamente a voz de autoridade no assunto, em um ensaio mais longo trabalho com argumentos de Paul Zumthor, Rémi Brague e outros mais dotados. Para este artigo no blog, deixei-me levar pelo tom mais polêmico do McLuhan. Depois de ouvir tantas vezes de várias pessoas que eu "deveria ler McLuhan", por causa dos meus artigos e ensaios sobre a relação entre oralidade e escritura, busquei um de seus livros este mês. Ele realmente não vai fundo na questão, talvez, como você afirma, por falta de conhecimento. Mas servia a seu propósito aqui, por isso o usei.

Na verdade, faz tempo que quero retornar àquele nosso debate sobre o Medievo e a Renascença, a relação entre escrita e oralidade, especialmente para discutir seu argumento sobre o aristotelismo.

abraço,

Domeneck

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