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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Jovens poetas europeus: João Miguel Henriques



João Miguel Henriques nasceu em Cascais, Portugal, em 1978. Estudou Literatura em Lisboa, Jena (Alemanha) e Edimburgo (Escócia). Vive e trabalha em Lisboa. Estreou com o livro O Sopro da Tartaruga (2005) e publicou este ano Este é o meu corpo (Lisboa: Tea for One, 2013). Mantém o blogue Quartos Escuros.

Nas palavras de Miguel Martins, um dos poetas contemporâneos da língua que mais respeito:

"João Miguel Henriques é poeta. João Miguel Henriques é emigrante. (Dois motivos para termos pena dele). João Miguel Henriques bebe copos de 1920 como quem bebe copos de Carbo Sidral. João Miguel Henriques come púcaras de chanfana como quem come tacinhas de marshmallows. (Dois motivos para termos inveja dele)."


TEXTOS DE JOÃO MIGUEL HENRIQUES


Este é o meu corpo

disseste
buscar alento
como algo
para a boca
algum alimento
algo nosso
de cada dia
dado em dado momento
para a travessia

só que (lembras?)
nós não semeámos
nada lançámos ao vento
não madrugámos
nada colhemos
votámos a seara
ao esquecimento
e hoje nada há sobre a mesa
nada partido
e repartido
que não já o sentimento

§

Boa promessa

não tem de ser hoje não
nem mesmo amanhã
ou  muito em breve
apenas que seja
que dê um dia
que um dia se dê

chamemos boa promessa
à vileza do adiamento
que as coisas boas vêm com o tempo
e só quem espera muito alcança

não tem pois de ser já
agora mesmo
ou mesmo para ontem

somente que seja
apenas que valha a pena

§

Tens o corpo a arder sobre a colina

tens o corpo a arder sobre a colina
esquecida da casa
da penumbra do quarto

alastras fogo
pelo bosque
como musgo

chamam-te chama
assinas labareda

e a um toque de tronco
incendeia-se o planeta
como lava perpétua

hás-de um dia enlevar-me nesse fogo
eu que pela orla do teu mato
há tanto me arrasto
morto de frio

§

Penumbra

concede o corpo à penumbra
arrisca um recatamento
diz que foi ela a deter-te no quarto
a toldar-te o discernimento
prepara a noite para o parto

§

Planetário

o mundo arde, amor
as árvores mergulham no rio
os homens fogem para dentro da terra
em covas escuras, para junto dos mortos

a palavra regressa à boca
a ideia à pedra

e nós, amor, já longe de tudo
adormecidos no planetário


§

Roteiro

lestos, farejantes
avançando na tua pegada
bordejamos o rio
na conquista do vale

levamos o vento pelo braço
a erva alta junto ao flanco
seguimos-te o passo

contornamos penedos
por entre saltos de lebre
sobre largos troncos caídos

subimos contigo uma colina
suspeitando à nossa ilharga
o ocaso sereno do dia

e a um vislumbre de oliveiras
suspendes o andamento

levas o lenço à testa
e voltas a face
com os lábios em sangue:

"estamos perto"


§

Cartas panónias

Senhor,

Venho por este meio endereçar-Vos uma primeira missiva de natureza oficial, conforme me obrigam, creio, as disposições legais do Império, em sequência do inquietante e prolongado desaparecimento do nosso estimado governador.

Devo a este respeito fazer desde já notar, não sem mágoa e uma certa perplexidade, a inconsequência de todas as diligências até agora levadas a cabo, das quais Vos pretendo dar detalhada conta em epístola futura. Adianto porém não ter sido ainda explorada a hipótese de um envolvimento das gentes nativas no misterioso incidente, dada a índole habitualmente mansa e cortês desta Vossa panónia massa de súbditos, em nada propensa, se não me engano, a actos de silenciosa sedição.
Mas à parte deste episódio, que tanto sei muita tinta e verborreia fez já correr na capital do Império, bem como noutras províncias e redutos imperiais, cabe-me garantir-Vos, Senhor, de coração sincero e vincado sentido do dever, que assumo com absoluta dedicação a responsabilidade que me impõe o destino e o imperial regimento de Vos informar sobre tudo o que de relevante ocorre nestas panónias paragens do Vosso domínio. E ademais sabei que muitíssimo me honra esta incumbência, pelo desejo pessoal há muito sentido de conVosco partilhar, se tal me é permitido, o que durante largos meses pude aqui observar, matérias para as quais pouco espaço e propósito me oferecem ofícios e relatórios administrativos.

Eis-me portanto aqui, Senhor, corpo batido pelas estações da planície, no espaço longínquo de insuspeitas longitudes, onde corpo morto de rato pequeno é repasto imediato de corvo ou gavião, e do estio ao inverno o grau cai a pique pela ausência de mar. Aqui o tempo tem muitas verdades. Por ora a terra panónia lá se vai preparando para a imperial colheita, na esperança, Senhor, de um dia lhe concederes o gáudio de uma visita Vossa.

Do Vosso súbdito fidelíssimo,
com votos ardentes de que esta carta Vos encontre de excelente saúde e paz governativa.

J

§

Cartas Panónias

Senhor,

Recebei em Vossas ebúrneas mãos, com a parcimónia que sei pautar a Vossa natureza, mais esta humilde missiva, que tantas léguas veio a cobrir para Vos encontrar. Daqui, onde o estio vai lentamente esmorecendo e já a frescura das noites pressagia a estação que se avizinha, enviam-Vos Vossos súbditos e servidores as mais sinceras e dedicadas saudações, que o Vosso nome, à falta ainda de uma imagem ou contorno de rosto, é lenitivo permanente para todas as agruras da existência, pronunciado em todas as panónias partes por lábios modestos, em sinal de louvor e esperança.

Sabeis bem que por aqui se aproxima o mês das colheitas, e não é sem certo traço de reprovável orgulho que me atrevo a prever resultados portentosos nesta Vossa província, dos quais, como é devido, não deixarei de dar conta, em documento próprio, aos oficiais do tesouro, para que posteriormente seja preparada a respectiva guia de transporte para a metrópole. Orgulha-se a enfadonha Panónia das suas artes agrícolas, e é certo que por aqui não nos tem desiludido a terra escura. Que assim seja, esperamos todos, por largos e pacíficos anos.

Distinta empresa, Senhor,será manter as populações indígenas no conveniente estado de mansidão laboriosa que por ora as caracteriza. Pergunta-me a metrópole, não sem algum propósito, se não haverá dedo nativo no desaparecimento do nosso saudoso governador, e eu próprio, ainda que me envergonhe a incerteza, tenho a maior dificuldade em considerar semelhante hipótese, por jamais ter testemunhado o mínimo indício de atrito ou sedição no seio das comunidades. Em todo o caso, Senhor, na eventualidade de se decidir confrontar os reservados indígenas com a suspeita do crime de rapto ou homicídio, ficai desde já com o meu humilde conselho de que tal seja empreendido apenas após as colheitas, de modo a não melindrar o espírito de tranquilidade e dedicação que as propicia.

Tenho bem a consciência, Senhor, sem que Vós o digais, que de tudo isto depende o meu posto, a minha honra, o meu prestígio a Vossos suaves olhos. Tranquiliza-me porém saber que de Vós não receberá o panónio domínio menos que a mais justa consideração.

Já o choupo vai perdendo a sua primeira folha e eu sorrio, Senhor, ao pensar que este vento que a noite arrasta também já Vos terá percorrido a face e levantado a ponta de Vosso real manto.

E assim já por ora me despeço, com as costumeiras saudações que me impõe o ofício e os calorosos votos de saúde e bonança que me dita o coração.

O Vosso humilíssimo súbdito

J

§

Cartas Panónias

Senhor,

Escrevo-Vos hoje com tal embaraço e angústia, que muito me pesa a pena que empunho e mais me resiste o fólio à escritura a que me vejo obrigado. Tomei recente conhecimento de que não terá chegado à metrópole toda a tara de mercancias resultantes da panónia colheita, conforme aqui registada à partida da caravana. A este respeito não poderá seguramente falar-se de nada menos que furto de imperial propriedade, crime para o qual é bem conhecida em todas as partes a costumeira punição. Sabei porém não haver registo ou sequer suspeita, em todo o largo percurso até à metrópole, de incidente ou quebra de protocolo que possa ter conduzido ao desaparecimento das mais de dez arrobas em falta. E é neste ponto que se me enrola a língua e se me adormentam os dedos, Senhor, por não ter algo de concreto que Vos possa desde já transmitir a este respeito. Não posso deixar de aparentar este episódio com o enigmático desaparecimento do nosso saudoso governador, pelo que a meu ver se torna agora inevitável mão mais pesada nas averiguações que se impõem.

Assumo, Senhor, a minha enorme culpa pelo escrúpulo que até agora exibi em tratar destes graves acontecimentos com a firmeza que é forçoso aplicar. Alguns me acusarão, não sem certa justiça, de excessiva afeição pelas gentes locais, o que porventura tende a toldar-me a razão e a refrear em mim certa necessária dureza na demonstração da autoridade imperial. Desse grave pecado, Senhor, não pretendo ser de futuro acusado, pelo que darei início, logo que puder contar com Vosso soberano consentimento, a todo um preparado conjunto de detenções e interrogatórios, com o fim de esclarecer os incidentes mais recentes e evitar que na panónia província se instale qualquer clima de impunidade, o qual, como decerto sabeis, é a daninha raíz da queda de impérios e civilizações.

À falta de resultados concretos em sequência das investigações que pretendo pessoalmente levar a cabo, encontram-se em preparação algumas medidas de punição arbitrária colectiva, com o mencionado propósito de, se me é permitida metáfora em oficial epístola, cravar fundo na escura terra da Panónia o magno selo do Vosso ditoso império.

Ergo agora os olhos, Senhor, e diante de mim corre suave o rio à luz difusa desta manhã de Outono. O mesmo rio que, léguas mais abaixo, delimita a autoridade por Vós estabelecida sobre esta desolada planície. Não posso deixar de pensar, Senhor, que talvez se esconda na outra margem, por detrás das fileiras arbóreas que bordejam as águas, a explicação para as inquietações de que hoje padecemos. Virá o dia, imposto pelo destino ou pela necessidade, em que forçoso será cruzar as águas e enfrentar o que a lonjura nos reserva. Também para isso servirão como preparação e sondagem os interrogatórios de Inverno que Vos proponho.

Ardo, Senhor, por célere resposta, na esperança de que podeis confirmar a Vossa confiança na minha função e assim honrar-me com o ensejo de pugnar pela perpetuação do Vosso nome.

O Vosso servo

J

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domingo, 6 de janeiro de 2013

Quatro poemas de António Barahona (Lisboa, 1939)


Poemas de António Barahona (Lisboa, 1939)

Cadáver esquisito heterodoxo com João Rodrigues no Café Gelo em 1961

Intimidade côr de bombazina
a cercar uma aranha de bambú
passa um polícia a cheirar a benzina
parte-se uma vidraça e surges tu

Sobrenadavam carpas na baía
um novo ritmo que vem de Las Vegas
daquele lado já nada se ouvia
quadrilha de gaivotas quase cegas

Por dentro era o som dum violino
por fora havia um vago marulhar
menos que nunca penso no destino
e bebo a tua sombra devagar.

§

No aniversário da diva

Passam por nós os anos, ígneos pássaros
apressados, e caem muitas penas
Passam por nós os anos: são cavalos
nervosos frente aos toiros nas arenas

Mas não envelhecemos sempre esperançados
na juventude eterna que não deixa marcas
Estamos marcados desde que nascemos,
transviados por onde não há estradas:

somente caminhadas sem sair de becos,
miragens de desertos nos confins das ilhas
Passam por nós os anos e só fica
um sulco que se fecha na memória em ferida

§

Calmaria

Clepsydra do Khalifa a lume da memória:
gotas d´água a cair no Poema Final
em um Livro pequeno, mas Grande Vitória,
de Camillo Pessanha, o Guerreiro Abismal.

E leio. E releio. E respiro vocal

este tempo medido em cascatas às cores,
em Flautas Incesssantes e em Barcos de Flores.

§

Remember

Lembro, em primeiro plano,
tua estatura de planta
e recomeço a esculpir-te
em miolo de pão, pétala a pétala.




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sexta-feira, 22 de junho de 2012

Miguel Martins: novo livro.



Neste sábado, 23 de junho de 2012, é lançado em Lisboa o novo livro de Miguel Martins (n. 1969), intitulado fôlego sem folga (Lisboa: Língua Morta, 2012), com capa de Inês Dias. São apenas 150 exemplares. O lançamento começa por volta das 18:30, na galeria Câmara Lenta (Rua da Quintinha, 31), com apresentação de António Caeiro (Universidade Nova).

Descobri sua escrita em Lisboa, ao estar coincidentemente na cidade quando o poeta lançou Lérias (Lisboa: Averno, 2011). Impressionado com o livro e com sua leitura no lançamento, preparei com o auxílio de Changuito, da Livraria Poesia Incompleta, uma postagem com poemas de Martins para a Modo de Usar & Co., extraídos de vários livros. Dentre os poetas em atividade nesta nossa língua, obviamente aqueles a que tive acesso, considero-o um dos melhores. Ou, para evitar ferir sensibilidades, um dos que mais respeito.

Publico abaixo um poema que Martins postou recentemente em seu blogue (que ora ameaça encerrar - O Único Deus Vivo), e termino a postagem com a reprodução dos textos que publicamos na Modo de Usar & Co. a 11 de outubro de 2011.



A vida tarda
enquanto esta demonstração democrática do Demo
se demora entre ademanes e esgares,
como se tudo não passasse de uma farsa
velha e medíocre,
levada à cena, em sessões contínuas,
desde que uma salamandra se fez gente,
gente escondida
com o rabo de fora.
Resta-nos correr no sentido inverso
aos ponteiros do relógio e procurar,
inglórios, o pântano primordial
e, nele, nossos recantos de calor estagnado,
passar a borracha da noite sobre o carvão do vento,
correndo o risco de tudo esborratar,
e ter esperança ou, pelo menos, fé
nas propriedades curativas das folhas brancas.
Imaginem comigo:
o branco mais profundo
sugando-nos para dentro de si
como o olho de um furacão,
olho terrível e encantador
de répteis.
Antes de mergulhar, permitam-me apenas
um cálice de licor de ervas amargas
e o clangor lânguido de um oboé tibetano.
E depois - só depois - o abismo imenso,
antediluviano,
da nossa morte inteira e sem mentiras,
sem conta-gotas a dosearem tudo,
até a beira-mar
e até o medo.



Miguel Martins




Miguel Martins é um poeta contemporâneo português, nascido em 1969. Viveu quase sempre em Lisboa, com a exceção de uma temporada em Maputo, Moçambique. O poeta é formado em arqueologia. Sua primeira publicação é de 1995, uma pequena plaquete intitulada Seis poemas para uma morte. A ela seguiram-se os volumes Cirrose (editado pela Fenda), Atol (Clube dos Poetas Vivos), o livro de ensaios Jazz e Literatura (Campo das Letras), O taberneiro (Poesia Incompleta), Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia) (Língua Morta), e seu mais recente, lançado este ano e intitulado Lérias (Lisboa: Averno, 2011). Prepara uma tradução para o português do livro Call It Sleep (1934), do romancista e contista norte-americano Henry Roth (1906 – 1995), que será lançado com o título Uma espécie de sono. O poeta vive e trabalha em Lisboa.

§

POEMAS


Uma caixa de cimento fresco. Deita-o
lá dentro. Mete-te na mota, arranca, não
penses mais nisso. A sul, há mulheres
cujo futuro é um avião que não deixa
traços no céu. A norte, se preferires,
... há-as engarrafadas, em decilitragens
as mais diversas. Com os homens
é a mesma coisa, dois dedos de conversa
e uns quantos cubos de gelo. Meia
hora chega para ir repondo o stock
de episódios com que fingir que estamos
vivos. Isso deve bastar-te, excepto
se te achares mais do que os outros
e Deus te livre de uma coisa dessas.
É isso: aprende a metafísica das
t-shirts brancas, das curvas apertadas,
da velocidade calma. O resto é
conversa de poetas, filósofos, historia-
dores, que fumam mais do que vêem
e lêem mais do que assobiam ao sair
à rua. O resto é uma perda de tempo
e não eras tu o tal que tanto nos
maçava com a iminência da
morte, com a falência da Sociedade
por quotas, com a genealogia
dos suínos? Aproveita agora esta
oportunidade de não ser nada
contigo; juro-te que ninguém
te vai levar a mal; envia, apenas,
um postal de Tânger e um contacto,
para o caso de o Emanuel ou a
Angelina quererem ir de férias e
precisarem de um sítio onde ficar.
Não é pedir muito em troca da
tua liberdade. Vá! Uma caixa de
cimento fresco. Deita-o lá dentro.
Sabes do que estou a falar. Ver-
melho escuro. Isso. O coração.

(publicado originalmente no jornal O Público, a 8 de outubro de 2011)

§

de O Taberneiro

Eu sou O TABERNEIRO-da-cintura-para-baixo e cara de cavalo relinchando aos pagodes, mijando nas traseiras de Notre Dame de Damn You, trombando uma defunta num sonho de luz branca. Vinde dizer-me agora que agora é que começa essa novíssima Volta a Portugal de que saireis vencedores-de-vozes-cristalinas-e-piscinas-nos-bolsos-resguardados...– do alto destas pirâmides, responde Napoleão, uma chuva de das Caldas vos contempla; e avoengos, trajando neve e medos, não hesitarão, sequer, no arremesso. E eis que entra um côro de gospel fumegante, ressaca bacanal já pronta para outra, e me embala menino-dos-ditos-saraivada-«tu sabes lá o que é que tás páí a dzer». «É verdade, não sei, eu sou O TABERNEIRO, li Stendhal, Sade, Camilo, Hugo e Zweig sentado numa pipa de mecha ainda acesa, pelo qu'é natural a pouca retenção; desculpem se me cago – almocei a correr e já bebi três litros de sobras clientelares.»

§

Ignis Fatuus

Vem a lume uma ideia luminosa
um chá de lúcia-lima fumegante
inalação de folhagem capitosa
num bule de feldspato crepitante

Disfarçada de paz fortificante
de miasma benigno, inspirativo
é a estultícia que naquele instante
rebrilha num fogacho transitivo

É o Futuro que pede, apreensivo
um cisma com as crenças abaladas
uma balada ao coração cativo
dos sismos e dos contos-de-fadas

que são suas madrastas desveladas
numa fumigação protelatória
da descoberta das portas encerradas
em chaleiras sem mago, sem memória

do aprisionamento nessa história
em que um afago acendia um fogo
que num segundo alcandorava à glória
uma vitória assegurada ao jogo

Mas na derrogatória a nosso rogo
restolha uma seara, seca a fonte
por se encontrar, apenas, muro e mogo
onde tanto aguardou o horizonte.

(O Taberneiro, Poesia Incompleta, 2010]

§

Seis poemas para uma morte

1

Que importa o que não temos
quando a vida leva tudo o que nos dá

e a morte restitui-nos ao silêncio.


2

Naquele dia choveu ao contrário
a chuva fina e o seu silvo subiam do chão

e eu caindo da janela
sem um raio de sol que me amparasse.


3

Na noite clara da tua morte Pai
parto de vez para a margem da brandura
Levo nos olhos esta luz de dor
feixes opacos medas de cansaço
(como as que carregavas)
seara que nasce no sonho condenada
quando na alma a chama esmoreceu
Chegou-me a mim: já nada perdura
Querias saber o que era aquele nada
contra o qual lutava – sou eu
vazio de ti. Poupámos o Futuro.


4

Nem umas palavras de despedida
nem “adeus”
Será que depois nos encontramos
na terra linda onde são as coisas que não são
sem medo do fim?
Já moras, Pai, com o teu Cristo
o Cristo que nos salvou a todos
por termos alguém como tu.
Nunca te disse bem quanto te amava
como te amo muito dentro de mim
na terra linda onde são as coisas que não são
com tanto medo de as perder.
Estar a fazer a barba, cair
e partir para o outro lado
sem dizer tudo o que é preciso.
Ou como tu ficar assim à espera
suspenso de nada
à porta de Deus como um pedinte
pedinte de Deus
que só nos pediste que fôssemos melhores
e talvez por isso nos dás ainda mais uns minutos
da tua eternidade.
Vai agora, parte por favor
vai viver com as estrelas e com a alma das flores.
Sei que todos os dias continuarás a madrugar
para colher os odores mais puros.
Já não são precisos sacrifícios
aí é tudo dado num natal perpétuo e permanente.
Até nós te nos vamos dar
como tu te nos deste, como te entregaste cada dia
de manhã à noite

a Mãe
a Paula
o Ricardo
e eu
(por outra ordem espero que não esta
que eu não aguento mais)
vamos voltar a tocar-te o cabelo
o cabelo mais lindo que conheço
e a beijar-te
(como é possível que beijos tão a medo
como os teus quisessem sempre dizer tanto?).

E olha que se eu aí chegar
a essa terra que não mereço
é mesmo só por ti
é para te ver e ficar espantado
como só nos espantamos com os anjos.
Adeus Pai
tem calma.
Eu pensarei em ti todos os dias.


5

Tinhas-nos a nós
como nos querias
não como nós somos

Partiste
olhando o ar
pensando o Vago
escutando o Ser
na boca o Fluido
a essência do Sangue
nós
em tudo isso nós
o imenso Amor

Em que pensaste, Pai, nessa semana
em que soubeste tudo isso
que dizias há tanto
e que os homens procuram?

O teu olhar tão calmo
as tuas mãos
só diziam Amor
e a respiração era a de que ele é feito:
com a Mãe
sabe Deus e o vosso Amor quando
connosco
dia a dia e a desoras
com tanta gente
que eu nem adivinho
na mudez superior de quem é grande

Toda a vida
só fizeste Amor

Perdeste a Palavra e o Movimento
usa o meu corpo se isso for possível
Nunca será a mesma coisa
mas vou portar-me bem
(a gente cá sabe o que isto quer dizer)

Há que roubar as flores ao abandono


6

Guardo o brilho baço dos teus olhos
de seres inteiro em cada coisa
o Ritual dos dias conhecidos
e a alegria desentranhada
do fundo da eternidade
que é a bruma de Deus.

Guardo a entrega funda de saber
que a revolta não tem princípio nem fim
e aquela altivez tão especial inapercebida
que pode haver na submissão
de estarmos à frente dos homens e do tempo
viver como quem morre cada dia

e estarmos mortos como quem está vivo.


Seis poemas para uma morte, Fábrica das Letras, 1995

§

Página 13 do livro Cirrose


Detesto toda a psicologia. Pelo menos tanto como o homem de trabalho e os escritores movidos a bons sentimentos, que o querem entreter ou melhorar ao módico preço dos direitos de autor. Para me sustentar tenho todas as loiras do mundo. E não são poucas. De ambos os sexos e qualquer côr de cabelo. É o que basta. A somar ao jogo. O jogo de sonhar acordado. Sou o chulo vigil dos pesadelos das mães. As nossas e as delas. A fera com mais inteligência que moral. Uma inteligência manipuladora. O abismo brilhante. Um falo que fosse vaso. Disputo corridas sem sair do lugar e, por isso, sou sempre o primeiro a alcançar a meta riscada no chão com o giz líquido do meu sémen. Os outros chegam estafados. Caem de borco. Matam a sede na fonte desse giz. E pagam o pecado. A minha religião indulgencia-me sempre. Sou o Papa Negro das Noites Brancas. O Papa Branco das Noites Negras. Sou cinzento. Como as balanças que aferem o peso para aferir o custo. Estou afinado. Não ranjo. Não sangro. Não choro. Não peço. Não morro. A não ser que me sobrevenha uma embolia ao baralho. Ao caralho. Por isso, conservo-me em álcool. Como os miúdos fazem às cobras. O formol é para os Deuses.

§

de Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia)

O Caso da Fruta

I

Não ser marinheiro. Não ser coisa alguma. E, ainda assim, zarpar deste lugar de fama sem proveito. Aportar às quatro estações, simultâneamente, num único cachimbo (milho de cerejeira). Comer mar, beber sal, respirar resina, cobrir a pele de lâminas de vinho. Renegar renegar. (O tempo). Ressarcir a cinta do silêncio. Derrimir a porca rouquidão. Arrancar às costas a tareia, às pernas o balastro, às mãos as mãos, à voz a recaída. Arrancar o pensamento ao fígado e o fígado ao pensamento. Lamber, ininterruptamente, uma mulata estéril de olhos mais verdes que a maior escuridão. Calar. Sobretudo isso. Calar-me. Escutar o canto sinusoidal, elíptico, dos cactos quando levantam voo para se tornarem homens. Nesses breves segundos, em que os cactos são vermelhos e aveludados, Deus assobia, dizem, velhos ragtimes e eu gosto de ragtimes. Pelo menos tanto quanto gosto de nêsperas, de salivas que não a minha, de bicos-de-lacre, do toque da cortiça. Eu gosto de gostar. E ando esquecido disso.

§

Não-raciocínio acerca da auto-estima

para o Levi Condinho

Uma semana da minha vida é um ano
da vossa, disse Lou Reed, cheio de si
e de razão. "Caro ouvinte, o caminho
é o mesmo e o disco meu - anda cá

tu" - digo, para completar a ideia.

Alma noise, dir-se-ia neste tempo
de muita coisa e nada. "Ama-me ou
deixa-me ou ama-me e deixa-me,
desassossegado. Trémulo. Vazio. Toc

ando uma guitarra autónoma, como
o vento que me varre, mesmo quando
me resguardo da noite, das aves, das aves
da noite, da calma, que é o peixe com mais

tripa". Esqueci-me do que queria
dizer: há nisto um lodo; um lodo
desgraçadamente impossível.


in Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia)

§

Do tempo

Todo o tempo passado a trabalhar. Todo o tempo passado a falar com gente cheia de aspirações concretas. A esgravatar caminhos alternativos ao caminho que desde sempre soube e é o meu. Todo o tempo sóbrio, bêbedo, acordado, aqui. Fora da minha nuvem, Britânia imaginária. Todo o tempo perdido. Tanto. Roseiras por enxertar. Trutas à deriva. Bibliotecas de couro. Cavernames. Oboés doidos na charneca fria. Nunca os tocarei. O Tempo, indemne, não indemniza. Não se desdobra. Não se recupera. Resta-me ronronar e gemer. Ser gato. Exprimir o inefável com um orgulho estóico mas envelhecido. Tardio. O pêlo caindo. A pele demasiado larga para a carne. Peritonite infecciosa felina. O fim a instalar-se por toda a parte. O olhar triste. A espera. A inevitabilidade. Não conseguir saltar, e saltar. O sonho. A sublime humanidade dos bichos. A redenção. Privada. Como uma cicatriz que torna a pele única e intransmissível e, por isso mesmo, mais bonita.


in Lérias (Lisboa: Averno, 2011)


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terça-feira, 30 de agosto de 2011

Sobre a poesia de João Apolinário

João Apolinário foi um poeta português, nascido a 18 de janeiro de 1924 em Sintra. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra e Lisboa e trabalhou também como jornalista, indo com 21 anos para Paris como correspondente da Agência Logos, permanecendo na França durante a Segunda Guerra. Estreou em livro como poeta com o volume Morse de Sangue (1955), composto na prisão por sua resistência antifascista ao regime de António Salazar. Em 1963, exilou-se no Brasil, vivendo e trabalhando em São Paulo, onde escreveu para o jornal Última Hora e fundou, com outros jornalistas, a APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Publicou ainda os livros Primavera de Estrelas, Apátridas, AmorfazerAmor, Poemas Cívicos e Eco Humus Homem Lógico, entre outros. Retornou a Portugal em 1975, após a Revolução dos Cravos. João Apolinário morreu a 22 de outubro de 1988, na pequena vila portuguesa de Marvão.

Sua posição na poesia lusófona do pós-guerra é curiosa. Talvez esteja entre os mais desconhecidos poetas da língua, e, ao mesmo tempo, alguns de seus poemas estão entre os mais famosos das últimas décadas, graças ao trabalho musical de seu filho, o cantor e compositor João Ricardo, que musicou vários dos poemas do pai, primeiro com o grupo Secos e Molhados (1973 - 1974) e depois em sua carreira solo. Seria interessante partir de seu trabalho para discutir as diferenças entre as mentalidades críticas que regem a tradição da poesia oral e da poesia escrita. Na tradição oral, o poema pertence tanto a quem o escreve como a quem o vocaliza, a partir da tradição do jongleur provençal ou do imbongi africano, tradição dos intérpretes, aquela que Paul Zumthor discute em sua Introdução à Poesia Oral (1983), livro fundamental para quem queira discutir as relações entre poesia escrita e oral.

Um dos poemas de João Apolinário musicados por João Ricardo demonstra o talento poético do português e está entre meus favoritos. Formado por dois quartetos, o poema "Primavera nos dentes" oscila entre o trobar leu e a sofisticação da wit de um poeta metafísico inglês do século XVII.

Primavera nos dentes
João Apolinário

Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera


Se os versos iniciais beiram o vaticínio, são seguidos por imagens poderosas, como os magistrais "E no centro da própria engrenagem / Inventa a contra-mola que resiste", expondo toda uma possibilidade de resistência est-É-tica em meio ao sistema capitalista, sem mencionar a força expressionista dos versos "E envolto em tempestade decepado / Entre os dentes segura a primavera." Apoderados pela vocalidade de Ney Matogrosso em uma das canções mais fortes do grupo, este poema atinge toda a sua poeticidade:



O poema sustenta-se em sua própria materialidade sígnica, em minha opinião, mas assume poderes novos ao habitar a sua vocalidade implícita. Um texto como "Primavera nos dentes" conecta João Apolinário à tradição dos Poetas Goliardos, ou de germânicos como Heinrich Heine (1197 - 1856) e Hans Arp (1886 - 1966), sem falar nas maravilhosas colaborações de Bertolt Brecht e Kurt Weill.

Em outros poemas, João Apolinário esposa uma poética minimalista que o aproxima de forma surpreendente de seu contemporâneo quase exato Robert Creeley (1926 - 2005), levando em conta que o americano viveu duas décadas mais. Mesmo a imagética dos dois aproxima-se, com a palavra flor e o número zero, por exemplo, palavras favoritas de Creeley, tornando-se metáforas analíticas para a poesia e outras dores também em Apolinário. É o que sentimos nos poemas abaixo, extraídos de Eco Humus Homem Lógico. Em outros poemas, sentimos uma relação subterrânea entre João Apolinário e Paulo Leminski, talvez marcada pela influência da música popular e da oralidade na obra de ambos.

Tentamos com esta postagem contribuir para que a poesia ainda não musicada de João Apolinário receba no Brasil a atenção que merece, para o nosso próprio bem.


--- Ricardo Domeneck


§

POEMAS DE JOÃO APOLINÁRIO


da escrita


Da poesia
faço
uma raiz
que gera
a haste
oculta
da palavra
em flor

____


Abro as portas
desta melancolia
fechada no poema
por nascer
e sinto essa magia
suprema

de o escrever


§


os zeros relativos


Reduzo
o espaço
ao limite
do zero

nasce
o mundo

___


Não se pede à alma
que anteceda o corpo
se o nada só existe
depois de ser
concreto

____

Só das coisas reais
tenho o sentido
da transcendência

Não sei do homem mais
do que a essência
de ter vivido

____


Uma única
pétala
gera
um universo
de formas

em órbita

____

Tomo o ar
que respiro
e dou vida
aos deuses

invento a sombra

____


Do mar
faço a planície
para as estrelas
fecundarem a noite

os dinossauros
cantam

____


E da vida
faço este delírio
de batráquios
em fuga

roendo horizontes

____

Só na morte
ponho o zero
à esquerda
do zero

outro zero
começa

____

Depois
do ouro
velho
queremos
o vermelho


§


ecologia lírica


A incógnita
acontece
na cor
que nasce
e reverdece
na flor

até ao limite
de olhá-la
como ela
é

____

O que é que cicia
o mistério (a essência)
desta atmosfera
de sol do meio dia
cuja transparência
parece que gera
o que a terra cria

____


Todos os mitos
imortais
cabem
subitamente
nos alicerces
originais
da semente

____


A pétala sabe
o destino oculto
de todas as coisas
onde o sol começa

____


Criar primeiro o ovo
para a raiz
do pássaro que voa
aquém da casca

Mudar depois as asas
da natureza
sem deixar de ser ave
e ser flor
gerar o movimento
assim eterno
da origem de ser

o que já é

____


O orvalho
respira
a solidão
da noite
na boca
da manhã

____


Um sopro
de luz
abre
no espaço
uma fenda
clara
para o dia
que nasce


§


os infinitos íntimos


Não me cinjas
a voz
não me limites

não me queiras
assim
antecipado

Eu não existo
onde me pensas

Eu estou aqui
agora
é tudo

____

Esta causa
Que me retoma
Em cada dia

Age na esperança
Em que respira
Esta necessidade
De estar vivo

____

No círculo
em que se fecha
o que em mim
respira
há um suicídio
de memórias
que não cabem
no que em mim
existe

____


Já fui longe demais
matando-me nas pedras
que atiro contra mim
sentindo o que não sei


____

Há por aí alguém
que queira vir comigo
atrás do que seremos
quando tivermos sido?

____


O que resta de nós
Dorme a noite invisível
Que ainda nos sobra

____

O que me cansa
é o diabo da esperança
____


O que ficará de mim
nos restos digitais
do tempo
quando chegar
o fim
de que me ausento


§


"É preciso avisar..."


É preciso avisar toda a gente
dar notícia informar prevenir
que por cada flor estrangulada
há milhões de sementes a florir



É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
engrossando a verdade corrente
duma força que nada detenha




É preciso avisar toda a gente
que há fogo no meio da floresta
e que os mortos apontam em frente
o caminho da esperança que resta



É preciso avisar toda a gente
transmitindo este morse de dores
É preciso imperioso e urgente
mais flores mais flores mais flores


§

"A pressa de chegar..."


A pressa de chegar
correr correr
sem poder esperar
Chegar para morrer




A pressa de chegar
O desvario obtuso
O medo de parar
gasto pelo uso
de estar



A pressa de chegar
A pressa a louca pressa
de poder encontrar
aquilo que me esqueça
de levar



A pressa de chegar
correr correr
sem poder esperar
Chegar para morrer

.
.
.





quarta-feira, 25 de maio de 2011

Pequena seleção e nota sobre a poesia de Sebastião Alba

Sebastião Alba (1940 - 2000)


Não me lembro bem de que maneira descobri a poesia tão delicada e bonita de Sebastião Alba (1940 - 2000). Creio que a primeira descoberta foi buscando vídeos de poesia lusófona na Rede, quando caí em um filme intitulado Um poeta não se pega, pequeno documentário-entrevista com o poeta português naturalizado moçambicano. O filme mostra este homem, beirando os 60 anos, poeta andarilho que vive nas ruas de Braga, dormindo em um barraco improvisado, entrevistado por quem soa claramente como um brasileiro.




Um Poeta Não se Pega, primeira parte, filme com o poeta Sebastião Alba.


Tenho, confesso, sentimentos muito conflituosos em relação ao filme. Sou grato que alguém tenha guardado algo do poeta e que eu tenha chegado a sua obra pelo vídeo. Tenho certeza que o diretor tinha respeito e carinho pelo homem e pelo poeta, mas eu sempre tenho a sensação de uma exposição da fragilidade alheia, além de um certo tom de voz no entrevistador que me parece infantilizado, talvez um pouco condescendente, não sei. Há ainda o perigo romântico de glamourizarmos a situação precária em que vivia este homem que vim a descobrir ser um dos poetas líricos mais sensíveis, delicados e competentes da língua portuguesa no pós-guerra. Pois, após ver o vídeo por alguns minutos, o que me importou foi descobrir sua poesia, e pesquisando-a na Rede, passei a encontrar textos como este:



Ninguém meu amor
Sebastião Alba

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.




É texto de poeta de verdade. Não é fácil esta simplicidade. Esta leve tensão sintática em alguns dos poemas na seleção abaixo. Sebastião Alba tornou-se um dos meus poetas favoritos. É uma pena que não edições de seu trabalho no Brasil. Poeta sensível, emocionado e que emociona, como já não se faz muito no Brasil desde que virou chique ser antilírico.

Reproduzo abaixo a nota biográfica e seleção de poemas de Sebastião Alba que preparei ontem para a Modo de Usar & Co.






Nota biográfica e seleção de poemas de Sebastião Alba
Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co., 24 de maio de 2011





Sebastião Alba nasceu em Braga, Portugal, a 11 de março de 1940. Seu nome de batismo era Dinis Albano Carneiro Gonçalves. Em 1950, a família do poeta emigrou para Moçambique, onde ele passaria a viver até 1984, tornando-se cidadão moçambicano. No seu novo país, trabalhou como jornalista. Estreou em livro com Poesias (1965), ao qual se seguiram O Ritmo do Presságio (a primeira edição, moçambicana, em 1974 e a portuguesa em 1981) e ainda A Noite Dividida (1982).





A editora portuguesa Assírio & Alvum reuniria em um único volume seus livros O Ritmo do Presságio, A Noite Dividida e O Limite Diáfano em 1996, reunidos uma vez mais no ano 2000, incluindo inéditos, com o título Uma Pedra Ao Lado Da Evidência. A essa altura, o poeta vivia nas ruas de sua cidade natal. No dia 14 de outubro de 2000, com 60 anos, morreu atropelado. Havia escrito recentemente um bilhete:


"Se um dia encontrarem morto o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar:
dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá".


Poeta lírico de extrema delicadeza, tentamos contribuir aqui com a divulgação de sua poesia tão bonita.



POEMAS DE SEBASTIÃO ALBA


A palhota

Espanta não ver nada
que se coma e caçarolas
As aranhas debandaram
não há moscas
até o humor secou
nas espinhas largadas
Vive-se como?
Donde a modeladora energia
que põe a carne?
Ladino um rato
como na infância o quereríamos
rói os bambus a viga
as horas urdem
e um opaco cisco indizível
aduz as proporções laqueia
a quietação à roda.


§


Ninguém meu amor

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.


§


Último poema

(ao Jorge Viegas)


Nestes lugares desguarnecidos
e ao alto limpos no ar
como as bocas dos túmulos
de que nos serve já polir mais símbolos?

De que nos serve já aos telhados
canelar as águas de gritos
e com eles varrer o céu
(ou com os feixes de luar que devolvemos)?

É ou não o último voo
bíblico da pomba?

Que sem horizonte a esperamos
em nossa arca onde há milénios se acumulam
os ramos podres da esperança.


§


Ícaro

Da Mafalala estorva-nos
a memória dos gregos
É um anjo negro segredado
e assim goza
de asas sussurrantes
Desce por entre
intervalos do vento
e findo o voo refunde
o modelo de cera
Como qualquer pássaro faz ninho
ele no vestido das mulheres
Sem céu fixo
exala a plumagem
da comum nudez interrompida.


§


Não sou anterior à escolha

Não sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.


§


No meu país

No meu país
dardejado do sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
o equilíbrio jacente
faz florir as acácias;
a terra incha;
na derme da possível
geografia,
um frémito cinde
as estações do ano.


§


A um filho morto

Ontem a comoção foi da espessura dum susto
duma árvore correndo
vertiginosamente para dentro do desastre

E já não choramos. Passamos
sem que o mais acurado apelo
nos decida

Nas camisas
teu monograma desanlaça-se.
Tua mão vê-o nos céus nocturnos
sabe que há uma ígnea
chave algures

Minha tristeza não tem expressão visível
como quando a chuva cessa
sobre a dádiva fugaz do nosso sangue
que hoje embebe a terra

É tal a ordem em nós
que um odor a bafio sai de nossas bocas
e uma teia de aranha interrompe o olhar
que te envolveu em vão.


§


Como os outros

Como os outros discipulo da noite
frente ao seu quadro negro que é
exterior à música dispo o reflexo
sou um e baço

dou-me as mãos na estreita
passagem dos dias
pelo café da cidade adoptiva
os passos discordando
mesmo entre si

As coisas são a sua morada
e há entre mim e mim um escuro limbo
mas é nessa disjunção o istmo da poesia
com suas grutas sinfónicas
no mar.


§


Como se o mar

Quero a morte sem um defeito.
Sem planos brancos.
Sem que pequeninas luzes se apaguem
dentro dos ruídos.
Também a não quero providencial,
com um anjo vingador e secretíssimo
enfim pousado.
Nenhuma mitologia. Nenhuma
fruição poética. Assim: Como se o mar
me aspirasse os ouvidos... etc.
Mas súbita e civil,
com repartições abertas,
comércio, a luz graduada
nas altas paredes
dum bom dia sonoro.


§


O limite diáfano

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.


§


Há poetas com musa

Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.


§


Gosto dos amigos

Gosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.


§



Sem título


Para isto de dar
um bambo passo entre as estrelas
não se vai com a grande ocasião reclinada
na cabeça a ouvir Puccini

Breve empanadas as estrelas
não mais se acenderão e apagarão
O rumo estará raso
O silêncio a nada obrigará

De pouco serve a ida ao lugar de ausência

que o teu sono já não é extensível
Aboliu-se uma posição relativa na noite
Não circulando em ti com a sua mistura
o ar atravessará o esqueleto

E tudo será sem data e sem prenúncio

E não acrescentarei ao poema ainda um verso relvado Que buxo!
Ele não seria a medida ou a balança Seu inconcreto molde
restaria quebrado entre outros cacos

(Se bem que da infância suba até mim o coro admonitório dos anjos.)


§


As mãos


Componho com as linhas dos meus dedos outros puros
cujas pontas façam girar nenhum raio sucessivo
de sol Dedos sem o cadastro de enlaces doendo
e se declamo ficções que eles escorem
Sem par noutras mãos Nem fundos na algibeira
mexidamente obscenos e a salvo da garra dos gatilhos
Dedos com um horizonte de pálpebra baixando
que assim não acordem as formas tacteadas
donde um sono mane estrie os espaços vedados
Dedos de que mesmo a chuva escorra sem uma lágrima
Ou os que já compus e assinam adiam o poema.


§


Epílogo

Fui
hóspede desta mansão
na encruzilhada
dos meus sentidos.

O verso apenas é,
transversal e findo,
o poleiro evocativo
da ave do meu canto.

Essa ave em que o Outono
se perfila
e, cada vez mais exígua
no rumo e nas vigílias
do seu bando,
de súbito, espirala
até sumir-se
num país imaginário.




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domingo, 4 de outubro de 2009

Faria e Torquato aos 28

Publiquei hoje uma pequena seleção de poemas do jovem português Daniel Faria (1971 - 1999), morto há uma década, aos 28 anos de idade, na Modo de Usar & Co.. Escrevendo a nota biográfica, não pude deixar de pensar em outro poeta da língua, morto com a mesma idade, o jovem brasileiro Torquato Neto (1944 - 1972). Muitas coisas, no entanto, parecem separar os dois poetas. Daniel Faria morreu em decorrência de lesões cranianas, após uma queda, em um acidente doméstico; o poeta estava prestes a terminar seu noviciado e faleceu no Mosteiro Beneditino de Singeverga, tendo publicado, apesar da pouca idade, cinco livros. Torquato Neto suicidou-se no Rio de Janeiro, com a mesma idade, sem livro publicado, mas após compor canções importantes e ficar conhecido como o poeta do grupo associado com a Tropicália. Faria, o monge beneditino, com poemas de uma pesquisa interessante das possibilidades, no fim do século, de uma lírica pura, pesquisa que liga seu trabalho à linhagem de alguns dos primeiros modernistas, como Juan Ramón Jiménez, Henriqueta Lisboa ou Anna Akhmátova. Torquato, o "Nosferatu" do cinema marginal, o poeta de uma lírica "impura", ligada ao tumulto histórico de seu momento, trabalho que o liga a modernistas como Oswald de Andrade, César Vallejo, Bertolt Brecht. Faria, declarando-se alguém que anda "um pouco acima do chão / Nesse lugar onde costumam ser atingidos / Os pássaros", Torquato descrevendo-se: "eu sou como eu sou / presente / desferrolhado indecente / feito um pedaço de mim".

Algumas das características que me interessam em Daniel Faria estão em seu interessante trabalho sintático, a partir de seu uso incomum da quebra-de-linha. Em uma tradição hegemônica de poetas que parecem temer o fim do verso antes de completarem seu pensamento, é interessante contemplar como Faria permitia-se o fluxo e o fluido, levando suas estrofes a funcionarem pela acumulação de sentido, e permitindo que cada verso se transforme ao atingir o próximo, em um trabalho de linguagem que parece muito mais antenado às pesquisas linguísticas do século que terminava, também ao contexto dessacralizado de fim-de-século, buscando a polissemia, mas sem recorrer à elefantíase semântica, nem sequer entregando-se à fé transcendental que corrobora a metáfora, algo que poderíamos esperar de um poeta-noviço. Em seus melhores momentos, o verso de Faria se faz independente, autorreferente, mas acopla-se em expansão de sentido ao ligar-se ao seguinte. Tomemos o exemplo do poema abaixo:


Um pássaro em queda mesmo
Quando é proporcional à pedra
Que tomba do muro nunca
Alcança a mesma coloração do musgo
– Já nem sequer falo do tempo
Em que mudam a pena

Para fazeres ideia pensa
Como perde um homem a idade
De encontrar os ninhos

Retém na memória: o homem cai. Desloca-se
O pássaro para que as estações não mudem

É dessa rotação que o muro
Pode cercar-se sem ninguém o construir. O cerco
Do voo é a pedra da idade

Para fazeres uma ideia pensa
Em engoli-la


O primeiro verso pode ser compreendido como uma linha cerrada, definitiva: "Um pássaro em queda mesmo"; no entanto, este "mesmo" se transforma ao chegarmos ao verso seguinte: "Quando é proporcional à pedra", e assim por diante, gerando uma acumulação de sentido que surpreende a cada linha, na qual nada é definitivo, nem mesmo a semântica. Nas palavras de William Carlos Williams: "O poeta pensa com seu poema"; nas de Ludwig Wittgenstein: "O significado de uma palavra é seu uso na língua." Na poesia brasileira contemporânea, encontramos algo parecido a esta sintaxe no trabalho de Juliana Krapp e Marília Garcia, ou, de forma distinta, em certos poemas de Marcos Siscar.

É como se Faria estivesse sempre disposto a arriscar-se a dar um passo a mais (às vezes uma única palavra em cada verso) em direção ao despenhadeiro em que se pendura a chance de sucesso do pensamento de seu texto. Explico-me: um poeta mais "prudente" (menos interessante) e cioso da completude de seu "raciocínio", provavelmente quebraria os versos em articulações diferentes, previsíveis, deixando-se seduzir pelas rimas fáceis. Por exemplo:

"Um pássaro em queda
Mesmo quando é proporcional à pedra
Que tomba do muro
Nunca alcança a mesma coloração do musgo..."

Se houvesse quebrado suas linhas desta maneira, o poema empacaria em solavancos, com cada rima soando como um tamanco no metal. Da maneira como diagramou suas linhas, em seu texto, Daniel Faria alcança um efeito muito mais interessante, não apenas com as rimas: mesmo/pedra/nunca/musgo/tempo/pena, como engendrando um ritmo que calcula e maquina a urgência da respiração do leitor.

Torquato Neto manteve seu trabalho lírico em um momento histórico que privilegiava um discurso antilírico, fazendo da pesquisa de sua própria identidade, múltipla, uma maneira de abordar a tradição de pesquisa identitária que se iniciara com modernistas como Oswald de Andrade e Raul Bopp (e os obcecara), como se Torquato Neto dissesse a cada texto: "O Brasil sou eu", pesquisando a primeira pessoa do singular como quem assalta a primeira do plural, como em seu poema mais conhecido.

Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim


Eu perguntaria, como proposta, se o "Cogito" tropicalista de Torquato Neto não se manteria vivo, por quase duas décadas mais, na figura de Paulo Leminski, aquele que deu ao Brasil outro "Cogito" tropical em seu Catatau (1975), três anos depois do suicídio de Torquato Neto.

Mortos antes de completarem 30 anos, quando os críticos e poetas-cinquentões começam a cogitar a vaga possibilidade de prestar algo de sua atenção senil a poetas mais jovens, Daniel Faria e Torquato Neto deram-nos muito mais sobre o que meditar.
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sexta-feira, 13 de março de 2009

Dirceu Villa & Soror Maria do Céu

Há duas semanas, em correspondência com o poeta paulistano Dirceu Villa e discutindo artigos recentes sobre o cânone, assim como nossas próprias postagens a respeito, Villa mencionou uma antologia de poesia do século XVII, em que encontrara o trabalho poético de autores esquecidos, mas interessantíssimos. Ele mencionou, em especial, a celestial senhora Soror Maria do Céu (1658 - 1753), e me enviou este poema:

É ciúmes a Cidra,
E indo a dizer ciúmes disse Hidra,
Que o ciúme é serpente,
Que espedaça a seu louco padecente,
Dá-lhe um cento de amor o apelido,
Que o ciúme é amor, mas mal sofrido,
Vê-se cheia de espinhos e amarela,
Que piques e desvelos vão por ela,
Já do forno no lume,
Cidra que foi zelo, se não foi ciúme,
Troquem, pois, os amantes e haja poucos,
Pelo zelo de Deus, ciúmes loucos.


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