domingo, 22 de novembro de 2009

Elogio da violência est-É-tica a partir das secreções em Hilda Hilst

Em uma literatura de moços e moças muito comportados e estudiosos como é o caso da brasileira, especialmente no pós-guerra, descobrir Hilda Hilst foi um refrigério. Saber que essa mulher ignorada havia produzido coisas assustadoras como Qadós (1973) e A obscena senhora D. (1982), além dos textos curtos reunidos em Pequenos discursos. E um grande (1977), como "Vicioso Kadek" e "Teologia natural", servia para reconciliar qualquer um com as possibilidades de algo estimulante na terrinha. Como não admirar uma mulher que escrevia, além disso, aqueles poemas, em plena época antilírica, dos mocinhos que ruminavam opiniões de Cabral como dogmas insuperáveis? Era muito reconfortante poder ler um livro como Cantigas do sem nome e de partidas (1995), uma das coisas mais bonitas da década de 90. Não quero insinuar qualquer "anticabralismo" de minha parte, como alguns entenderam meu a cadela sem Logos. Mas, meus caros, venhamos e convenhamos: não podemos deixar que uma admiração exagerada nos cegue para o fato de que João Cabral de Melo Neto é um poeta de imaginação limitada, que empalidece ao lado da abundância de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Cabral talvez tenha uma obra mais regular e constante que a destes dois, mas eu diria que a tem porque se arriscou bem menos que eles, ou mesmo que o irregularíssimo Jorge de Lima. Seus melhores poemas foram escritos justamente sob o influxo destes dois poetas, aprendizado confirmado pelo próprio Cabral, como o lindíssimo "O cão sem plumas" (1950) ou os poemas do volume Psicologia da composição (1947). Produz as alturas de O Rio e Morte e vida severina, mas o Cabral que surge a partir de Paisagens com figuras viria a se repetir indefinidamente, sem superar o que fora capaz de fazer com essa poética no estupendo "Uma faca só lâmina" (1955), momento de risco supremo que Cabral se propôs, poema que merece figurar ao lado de textos tão importantes quanto "A máquina do mundo" e "Janela do caos", dos seus dois mestres. Dessa poética repetitiva, o importante A educação pela pedra (1966) viria a ser apenas uma variação elegante. Não há variedade formal suficiente em João Cabral de Melo Neto para nutrir com seus parâmetros, de forma unívoca, todo um projeto de poesia nacional no pós-guerra. É óbvio que não se pode culpar um poeta tão forte como Cabral por toda a literatura anódina que se produziu em seu nome ou suspostamente sob seu signo. Aquele homem possuía verdadeiramente uma est-É-tica, mais do que explícita a quem lê com atenção poemas como "A palo seco", que nada tem a ver com o que se confundiu com objetividade na poética oficial dos últimos 20 anos, com a descrição de paisagens urbanas ou o uso recorrente de "pedras" e "desertos" posando como materialidade de linguagem. Como escrevi em outro lugar, o problema com esta idéia equivocada de "objetivo" começa no fato de que esta objetivação requer, em sua base, a sobrevivência das velhas dicotomias de sempre, como interno/externo, sujeito/objeto, sua concentração sobre o "mundo externo" (daí a avalanche de poemas meramente descritivos), que depende de uma espécie de unidade de percepção do poeta, que acaba sendo centrada num sujeito monolítico, desonestamente camuflado. Enquanto isso, Hilda Hilst ousava escrever e chamar de poemas, em plena época de secura e materialidade, poemas líricos que tomavam Caio Valério Catulo por mestre. Longe de mim sugerir que Hilst superou Cabral, o que talvez tenha feito, se levarmos em conta não apenas seus poemas, mas toda sua produção literária. O que nos impede, no entanto, de abrir o nosso leque de possibilidades poéticas?

O Poeta Inventa Viagem, Retorno e Morre de Saudade

Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.


Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974)

ou

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


Do desejo (1992)

Mas o assustador em sua obra e o que seguirá fazendo de Hilda Hilst um dos nomes incontornáveis na literatura deste século é seu trabalho em prosa, ou o que se convenciona chamar de prosa por simplesmente ocupar toda a página. Assim como Cabral serviu de parâmetro crítico quase único para a produção poética, a prosa brasileira nas duas últimas décadas parece ter feito de Rubem Fonseca um dos seus poucos parâmetros críticos, ou a meta de qualidade a atingir. Rubem Fonseca é um bom escritor, mas jamais seria possível ordenhar uma escola literária das tetas murchas de seu trabalho. Os que temperaram sua poética ainda com o que aprenderam de escritores como João Antônio, Campos de Carvalho, João Gilberto Noll e Sérgio Sant´Anna, além de diferentes referências de outras línguas, entregaram obras mais estimulantes. Na mesma época, Hilst enriquecia a escala com essa nota:

Teologia Natural


A cara do futuro ele não via. A vida, arremedo de nada. Então ficou pensando em ocos de cara, cegueira, mão corroida e pés, tudo seria comido pelo sal, brancura esticada da maldita, salgadura danada, infernosa salina, pensou óculos luvas galochas, ficou pensando vender o que, Tiô inteiro afundado numa cintilância, carne de sol era ele, seco salgado espichado, e a cara-carne do futuro onde é que estava? Sonhava-se adoçado, corpo de melaço, melhorança se conseguisse comprar os apetrechos, vende uma coisa, Tiô. Que coisa? Na cidade tem gente que compra até bosta embrulhada, se levasse concha, ostra, ah mas o pé não agüentava o dia inteiro na salina e ainda de noite à beira d'água salgada, no crespo da pedra, nas facas onde moravam as ostras. Entrou em casa. Secura, vaziez, num canto ela espiava e roia uns duros no molhado da boca, não era uma rata não, era tudo o que Tiô possuia, espiando agora os singulares atos do filho, Tiô encharcando uns trapos, enchendo as mãos de cinza, se eu te esfrego direito tu branqueia um pouco e fica linda, te vendo lá, e um dia te compro de novo, macieza na língua foi falando espaçado, sem ganchos, te vendo, agora as costas, vira, agora limpa tu mesma a barriga, eu me viro e tu esfrega os teus meios, enquanto limpas teu fundo pego um punhado de amoras, agora chega, espalhamos com cuidado essa massa vermelha na tua cara, na bochecha, no beiço, te estica mais pra esconder a corcova, óculos luvas galochas é tudo o que eu preciso, se compram tudo devem comprar a ti lá na cidade, depois te busco, e espanadas, cuidados, sopros no franzido da cara, nos cabelos, volteando a velha, examinando-a como faria exímio conhecedor de mães, sonhado comprador, Tiô amarrou às costas numas cordas velhas, tudo o que possuía, muda, pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava.

de Pequenos Discursos. E um Grande (1977)

Trata-se de um outro tipo de violência. A violência das secreções funciona de forma distinta em Hilst. Sua tática de choque vai além da atitude malcriada de Rubem Fonseca, que tanto fascina os escritores brancos e heterossexuais da classe média do Brasil de hoje. Nesse aspecto, parece-me ainda mais claro que o escritor brasileiro com o qual se poderia comparar Hilda Hilst não é João Guimarães Rosa (o que ocorre com frequência no Brasil que também costuma meter Joyce e Stein no mesmo balaio), mas Graciliano Ramos, por mais incomum que pareça a ligação. Não o Ramos de Vidas Secas (1938), talvez, mas definitivamente o Graciliano Ramos de Angústia (1936) e, de certa maneira, mesmo o de São Bernardo (1934).

Violência esta muito mais que a temática, que Rubem Fonseca pratica por vezes com brilhantismo, mas uma violência est-É-tica que encontramos em escritores muitas vezes aparentemente díspares entre si, como a Clarice Lispector de A paixão segundo GH (1964) ou A hora da estrela (1977), sem deixar de mencionar a pancada est-É-tica que é A maçã no escuro (1951), aquela diatribe metafísica e política que até hoje não foi muito bem digerida; e, é claro, penso também no mestre de nós todos, Machado de Assis. Ou não lhes parecem brutais, livros como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899)?

O pós-guerra viu mulheres como Clarice Lispector e Hilda Hilst produzirem alguns dos artefatos (metafísicos e políticos) mais brutais de nossa literatura, numa linguagem seca e direta, mas informada por suas leituras de autores como Merleau-Ponty e Wittgenstein. A narrativa brasileira contemporânea, no entanto, com as exceções de sempre, parece ser produzida por rapazotes que cresceram lendo gibis de super-heróis, nos quais basearam seus machucados projetos de masculinidade, produzindo hoje suas narrativas ideais para um público, digamos, como o dos estudantes da UNIBAN.

No entanto, a invectiva contra nossas ilusões de "civilização" em livros como esses: Memórias póstumas de Brás Cubas, Angústia, A paixão segundo GH e Qadós é atordoante, inescapável. Testemunhos de nossa inviabilidade em meio ao inviável (que se sonha invejável) Ocidente, que já cai aos pedaços e afunda, sem que os muitos tomos das obras completas de Shakespeare e Balzac nos ajudem sequer a boiar. Esses livros nos mostram o que Euclides da Cunha estabelecera com seu anti-épico: se houver alguma sombra de justiça nessa existência, do Brasil não sobrará um dia pedra sobre pedra. Sejam estas pedras cabralinas ou não.

§


Às vezes davam-me panos pretos, ou alaranjados ou com listas ou vermelho com florzinhas, nunca o branco, Excelência, e como último recurso para conseguir os círios eu entrava numa loja aos solavancos, o olho girassol e gritava: duas velas por favor, a mãe agoniza, em nome do vosso nosso Deus duas velas para as duas mãos de mamãe. E saía como o raio, como o cão danado, como Tu mesmo que te evolas quando Te procuro, ai Sacrossanto por que me enganaste repetindo: hic est filius meus dilectos, in quo mihi bene complacui? Nudez e pobreza, humildade e mortificação, muito bem, Grande Obscuro, e alegria, é o que dizem os textos, humilde e mortificado tenho sido, mas alegre, mas alegre como posso? Se continuas a dar voltas à minha frente, estou quase chegando e já não estás e de repente Te ouço, bramindo: mata o rei, Qadós, o inteiro de carne e de pergunta, pára de andar atrás de mim como um filho imbecil. Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta? Como queres o meu ser humilde e mortificado se antes, muito antes do meu reconhecimento em humildade e mortificação, Tu mesmo e os outros me obrigam a ser humilde e mortificado? Como queres que eu me proponha ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de fogo já engoliu o melhor de mim e cuspiu as escórias, um amontoado de vazios, um nada vidrilhado, um broche de rameira diante de Ti, dentro de mim? E as gentes, Máscara do Nojo, como pensas que é possível viver entre as gentes e Te esquecer? O som sempre rugido da garganta, as mãos sempre fechadas, se pedes com brandura no meio da noite que te indiquem o caminho roubam-te tudo, te assaltam, e se não pedes te perseguem, se ficas parado te empurram mais para frente, pensas que vais a caminho da água, que todos vão, que mais adiante refrescarás pelo menos os pés e ali não há nada, apenas se comprimem um instante, bocejam, grunhem, olham ao redor, depois saem em disparada. Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros embaixo do braço, e se via alguém mais louco do que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, depois deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou, eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós. Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão. Não tenho não senhor, só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos.

trecho de Qadós (1973)

.
.
.

2 comentários:

maiara gouveia disse...

fantástico, domeneck. te lerei com mais cuidado. besitos.

Ricardo Domeneck disse...

Obrigado pela visita, Maiara. Mas só perca tempo com meus livros e artigos depois de ter lido todos os livros da Hilda Hilst e da Clarice Lispector. Você ganha mais.

beijos!

Domeneck

Arquivo do blog