Mostrando postagens com marcador clarice lispector. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador clarice lispector. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

No centenário de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector

Estou trabalhando em algo para a Deutsche Welle com o centenário de Clarice Lispector em mente, e conversei durante o fim de semana com o escritor e tradutor alemão Oliver Precht, que além de ter vertido trabalhos de Oswald de Andrade e Eduardo Viveiros de Castro para o alemão, tem também trabalhado muito com textos de Clarice Lispector, em especial "O ovo e a galinha" e "Mineirinho", sobre os quais escreveu um texto muito interessante que pode ser lido na edição de dezembro da prestigiosa revista de arte alemã Texte zur Kunst.

Quando estou escrevendo sobre algo, minha cabeça viaja associativamente para vários ângulos da questão. Esta manhã estava a pensar sobre os paralelos interessantes entre dois centenários ilustres neste Ano de Nossa Senhora da Virulência 2020: o de João Cabral de Melo Neto e o de Clarice Lispector. São dois dos maiores escritores nossos do pós-guerra, talvez os mais influentes. São escritores da mesma geração, por vezes agrupados com João Guimarães Rosa na chamada Terceira Geração Modernista (que difere e coexistiu com o Grupo de 45, seu antípoda). 

João Cabral de Melo Neto estreou em 1942, com Pedra do Sono. Clarice Lispector estreou em 1943, com Perto do Coração Selvagem. João Guimarães Rosa, em 1946, com Sagarana. Se pensarmos antoniocandidamente, considerando a estreia de um autor e portanto sua inserção no diálogo republicano como determinantes geracionais e históricas, teríamos que pensar ainda em José Paulo Paes, que estreia em 1947 com O aluno, e decidir o que fazer com Dante Milano e Joaquim Cardozo, autores mais velhos que têm publicações pela primeira vez também em 1947. Perdoem-me, alguns já sabem que tenho dessas obsessões historiográficas. As histórias que nos contamos muitas vezes nos determinam.

Mas retornemos aos centenariantes: Cabral e Clarice. Como é raro pensarmos nos dois juntos! Mas há vários paralelos com diferenças determinantes. Ora, não terão se cruzado na Recife de sua infância? Talvez sim, talvez não. Afinal, um deles era um menino da elite econômica de Pernambuco e neto de senhores de engenho; a outra era uma menina imigrante pobre. Os dois fariam do Rio de Janeiro sua casa, e ali morreriam. Os dois passariam longos anos fora do Brasil, envolvidos com a diplomacia brasileira, Cabral como diplomata ele mesmo, Clarice casada com o diplomata Maury Gurgel Valente.

Na obra de Cabral, Clarice comparece em um poema conhecido:

CONTAM DE CLARICE LISPECTOR
João Cabral de Melo Neto 

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?

[extraído do livro Agrestes (1981/1985)]

Sabemos que Cabral apreciava muito o trabalho de Clarice, e tentou convencê-la a permitir que ele estreasse sua tipografia d'O Livro Inconsútil em Barcelona com um trabalho dela, à época uma peça intitulada 'O coro dos anjos', mas que só seria publicada no livro A legião estrangeira em 1964 com o novo título “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”. Clarice recusou o convite.

Cabral entraria para nossa história como o poeta objetivo, seco, antilírico e anti-psicologizante. O menino rico também se tornaria o exemplo do autor engajado nas questões socioeconômicas do seu tempo. Clarice, por sua vez, seria lida como a autora das profundidades psicológicas (eu mesmo já cheguei a dizer que foi ela, com Machado de Assis e Nelson Rodrigues, que inventou nossa 'alma', não nos vendo como meros joguetes justamente daquelas forças socioeconômicas), a escritora de potência mística. 

Em seu texto para a revista Texte zur Kunst, Oliver Precht questiona justamente essa visão de Clarice Lispector como autora 'apolítica', a partir especialmente de um texto como "Mineirinho". E, ora, João Cabral de Melo Neto não é o autor daquela gigantesca pérola de profundidade psicológica e mesmo potência mística que é o poema “Uma faca só lâmina"?

Nos nossos dias de horríveis balas perdidas, não sei o quanto nos ajuda, salva ou exorta, pensar nas balas que comparecem em trabalhos de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Mas elas estão lá.

*

"Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

– João Cabral de Melo Neto, Uma faca só lâmina, excerto.

*

"Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos."

– Clarice Lispector, "Mineirinho", excerto.


.

.

.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

"Clarice Lispector, internacional" - artigo para a Deutsche Welle



Pequeno artigo meu sobre o novo interesse internacional pela obra de Clarice Lispector (1920 - 1977), para a Deutsche Welle.





.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

"Feliz aniversário, senhor Ōe", ou "O Dia em que Ele Próprio Enxugará dos meus Olhos Toda Lágrima", ou ainda "Dos textos que dão febre".

O prosador japonês Kenzaburō Ōe completa hoje 76 anos. A notícia, que li casualmente, iniciou em mim uma cadeia de recordações e pensamentos sobre os textos que amo.

Quando Kenzaburō Ōe ganhou o Prêmio Nobel em 1994, eu estava morando nos Estados Unidos, terminando o colegial como estudante de intercâmbio na cidade de Shreveport, em Louisiana. Tive a sorte de ser matriculado por minha família anfitriã na melhor escola da cidade, o que não deixou de ser muito difícil no começo, pois as aulas eram realmente muito puxadas para quem não dominava a língua, e, saindo de casa e do país pela primeira vez com 16 anos, passava ainda por um tremendo choque cultural.

O nome da escola era Caddo Parish Magnet High School, e tinha uma programação especial baseada na educação artística e literária. Para dar um exemplo, que está ligado a esta postagem sobre Kenzaburō Ōe, eu tinha uma aula que se chamava simplesmente Novels. Sim, "Romances". Nesta aula, que era diária e de 55 minutos, tudo o que fazíamos era ler, discutir, destrinçar e analisar um único romance por mês: seu texto, seu autor, sua recepção crítica. A lista de romances mensais, enquanto estive ali, foi de Fiodor Dostoiévski (Crime e Castigo, 1866) a Henry David Thoreau (Walden; or, Life in the Woods, 1854), de Primo Levi (If Not Now, When?, 1982) a Henry Miller (Sexus, 1949), entre vários outros. Creio que estes quatro exemplos dão uma ideia de como a escola era progressista. A professora chamava-se Ms. Pam Peak, e pelo que vi no site da escola, dá as aulas de English, Creative Writing e Novels ainda hoje por lá.

Todo ano em outubro, quando era anunciado o Nobel, a classe então lia um trabalho do autor, fosse ele prosador, dramaturgo ou poeta. Assim, numa manhã em outubro de 1994, a senhora Peak chegou à sala de aula e escreveu na lousa:

Kenzaburō Ōe
Teach Us to Outgrow Our Madness

O original havia sido publicado no Japão em 1969 e a primeira tradução americana em 1977. A edição que usamos, cuja capa reproduzo ao lado, reunia quatro novelas de Ōe.

Teach Us to Outgrow Our Madness é um dos trabalhos que trazem certos elementos autobiográficos de Ōe, no qual a personagem principal lida com os fantasmas de sua decisão de interromper a gravidez da mulher quando descobrem que o bebê tinha a Síndrome de Down, e sua relação quase obsessiva com o filho quando este nasce. Há uma passagem na novela envolvendo um urso polar que é memorável.

O texto me impressionou tanto que decidi ler as outras três novelas incluídas no volume. Comecei por Aghwee The Sky Monster, de 1964, que à época me pareceu um dos textos mais aterrorizantes que lera nos meus 16 anos de vida. A novela conta a história de um homem que é contratado para fazer companhia à personagem que durante toda a novela é chamado apenas por sua inicial, D., um compositor de 28 anos que enlouquecera após causar a morte de seu filho recém-nascido e deficiente. D passa a ser visitado pelo fantasma do bebê, que ele chama de Aghwee por ser a única palavra que o bebê falara antes de morrer. O livro é assustador.

Depois li Prize Stock, um trabalho mais realista, que conta a história de um piloto negro norte-americano que acaba capturado e mantido preso em uma vila japonesa, por pessoas que jamais tiveram contacto com estrangeiros. Segundo o autor, é também um trabalho baseado em acontecimentos de sua infância.

Mas foi a novela que abre o volume e que deixei por último, a mais longa, estonteante e lindamente intitulada The Day He Himself Shall Wipe My Tears Away (1972), que me causou a febre, o aguar na linha do diafragma, a natação dos pulmões.

The Day He Himself Shall Wipe My Tears Away é uma das coisas mais inesquecíveis que li, e a segunda vez na minha vida de leitor, até aquele momento, em que experimentara A FEBRE. Espero que algumas pessoas lendo isso entendam o que quero dizer, sem que eu tenha que explicar muito. A febre. Aquela febre que certos textos dão, e que apenas textos muito específicos conseguem causar. Àquela altura, com 16 anos, minhas leituras ainda consistiam em grande parte de ficção científica e histórias de terror. A única vez que me lembrava de ter experimentado aquela sensação ao ler algo fora com Clarice Lispector, com o conto "O ovo e a galinha". Em poesia, até então apenas com alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes.

Não estou tentando estabelecer uma comparação entre Lispector e Ōe, dizer que são da mesma linhagem ou algo assim. Não sei o que os une. Sei apenas que há certos escritores que me dão esta febre, que vai além da mera "apreciação estética" ao nos depararmos com a grande técnica narrativa de um bom escritor. Há certos autores que fazem com que nossas cordas vocais vibrem mesmo enquanto os lemos em silêncio, como se numa frequência inaudível para os ouvidos humanos.

Você conhece a expressão "ficar aguado"? No interior de São Paulo, usa-se a expressão para aquela sensação infantil que temos quando ainda estamos aprendendo a lidar com o NÃO. Imagine uma criança a ouvir pela primeira vez o NÃO. Começando a descobrir que o mundo não é exatamente um fornecedor inesgotável de sonhos realizáveis.

"Não! Você não pode possuir esta coisa ou ser vivo do qual sua vida parece depender completamente neste exato instante dos seus 5 anos de vida sobre a Terra."

Eu me lembro ainda da primeira vez em que me foi dado, por adultos, o nome para aquela coisa horrível que estava sentindo no peito. Eu posso quase me ver encostado no portão da casa de minha avó, ouvindo-a dizer ao meu pai: "O menino ficou aguado"... sei que soa como ilusão da memória, mas às vezes eu acho que a primeira manifestação poética de que me lembro foi ali, aos 5 ou 6 anos, quando eu me maravilhei com aquela palavra, que parecia denominar tão bem aquela sensação horrível de frustração, decepção no peito, eu quase pareço me lembrar de pensar comigo mesmo: "Então é isso, eu fiquei aguado!, é isso o nome desta sensação horrível!". E fiquei muito tempo pensando no porquê do uso de um derivado de "água" para a sensação, mas, ao mesmo tempo, sabia que era perfeito. Era como estar chorando por dentro dos pulmões.

E é essa a sensação que me retorna ao ler certos escritores. Esta febre, misturada a este aguamento. Mas agora ela é subitamente um prazer! Como aquela alegria difícil de que fala Clarice Lispector em A Paixão Segundo GH? Talvez haja apenas muito masoquismo no tal prazer do texto. E vicia. Porque agora não tenho escolha, passo a vida buscando os escritores que me possam dar este prazer específico, este aguamento. Esta febre. Mas quanto mais passa o tempo mais difícil fica deslumbrar-se. São poucos os que dão a febre imensa... senti-a em "O ovo e a galinha", de Clarice Lispector, assim como, mais tarde, em várias passagens deslumbrantes de A Maçã no Escuro (1951); eu a senti neste The Day He Himself Shall Wipe My Tears Away comentado aqui, de Kenzaburō Ōe; naquelas páginas finais de Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, ou na passagem assustadora em que Riobaldo deixa o bando e embrenha-se no ermo, à procura do diabo; em quase todas as páginas de Qadós (1973) e A Obscena Senhora D (1982), de Hilda Hilst, especialmente com aquela porca; passagens de Absalom, Absalom! (1943), do Faulkner; em Temor e Tremor (1843), do Kierkegaard; em Do Sentimento Trágico da Vida (1933), de Miguel de Unamuno; na passagem em que Aliocha lamenta-se durante os eventos perturbadores do velório de seu mestre no monastério, em Os Irmãos Karamazov (1880); em Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977), do Barthes; etc, etc, e outro raro e precioso etc.

Eu estou sempre em busca destes textos. Acho que é por isso que a onda brasileira seca, objetiva e econômica dos poetas cabralistas e dos prosadores fonsequistas sempre me frustrou tanto - ainda que os próprios Cabral e Fonseca sejam muitíssimo capazes de tais textos, basta pensarmos, por exemplo, em Uma Faca Só Lâmina (1955), de Cabral. Eu preciso da febre, do texto que parece aumentar a temperatura do meu corpo entre o diafragma e as amígdalas, que faz a boca ficar --- nem frouxa nem rígida (o Brasil ataca o frouxo porém celebra o rígido) --- mas tesa.

Falei aqui apenas sobre os textos em prosa que mais me marcaram, compartilhando com vocês. Adoraria saber quais textos dão febre aos amigos. Quem quiser deixar uma lista nos comentários, como sugestões a este viciado por textualismo febril, me deixaria feliz.

Quero escrever sobre uns poemas na próxima vez.

.
.
.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O prosador mais memorável que li neste 2010: Vasily Grossman (1905 - 1964)

Vasily Grossman como correspondente durante a Segunda Guerra Mundial


Meus hábitos de leitor de prosa são caóticos. Há épocas em que devoro romances, um atrás do outro, mas há também outras épocas em que a simples visão de uma página repleta de signos da esquerda à direita já me faz bocejar. Isso acontece geralmente em relação à ficção. Livros de prosa crítica e filosofia nunca me entendiam, e estou sempre a ler algum crítico ou filósofo. Mas romancistas podem ser tão tediosos, especialmente para poetas viciados na tal materialidade sígnica e tal. A prosa contemporânea no Brasil é, com exceções, um sonífero.

Em 2010, li pouca ficção. Minha mochila ou meu bornal continham sempre um ou dois livros de poesia, acompanhados de um livro de crítica literária, poética, ou política. Li neste ano de 2010 muita coisa dos críticos que amo, como Hugh Kenner e Walter Benjamin, li outros que não amo e dos quais discordo com frequência mas que são estimulantes, como Fredric Jameson e Terry Eagleton, descobri o trabalho inteligentíssimo de Alfonso Berardinelli, emocionei-me com o lindo memoir de Jakobson sobre Maiakóvski, A Geração Que Esbanjou Seus Poetas (publicado em uma linda edição pela Cosac Naify), mas pouca prosa de ficção.

Arrastei, entre outras, a leitura do famoso romance satírico de Witold Gombrowicz, Ferdydurke (1937), por exemplo. Mas foi, há um par de meses, uma coletânea de contos e artigos do soviético/ucraniano/russo Vasily Grossman que acordou novamente meu paladar para a prosa e me deixou faminto por boa ficção.

Grossman esteve nas notícias culturais aqui da Alemanha há pouco tempo e com grande estrondo, pois foi traduzido para o alemão seu grande romance proibido pelo Kremlin, intitulado Vida e Destino. Houve resenhas e artigos sobre o "soviético" em todos os grandes jornais.

O volume que li, no entanto, chama-se The Road, traduzido para o inglês por Robert Chandler e publicado pelo New York Review of Books, trazendo contos como "Na cidade de Berdichev", o primeiro que Grossman publicou, e artigos como "No Inferno de Treblinka", um dos primeiros sobre a Shoah. Correspondente de Guerra genial, Grossman foi um dos primeiros jornalistas e escritores a entrarem em um campo de concentração. Sua descrição é uma das coisas mais assustadoras que já li, indo onde mesmo muitos filmes não poderiam ter ido.

Grossman é o tipo de escritor que me pega pela garganta. Não é um estilista frio e calculado, obcecado pela frase perfeita. É extremamente próximo, caloroso. Talvez vá parecer absurdo para alguns, já que seus contextos biográficos são tão diferentes, mas durante a leitura de Grossman havia algo que constantemente fazia-me pensar em Clarice Lispector. Não conseguia evitar a impressão e ficava me perguntando o porquê.

Há certos pontos de contato. Grossman nasceu em Berdichev, antigamente parte do Império Russo, hoje parte da Ucrânia. Lispector também nasceu na Ucrânia, e também em uma família judia. Obviamente, este fator biográfico teve maior importância na vida de Grossman que na vida de Lispector, mas há que se pensar na influência dos pais de Lispector sobre sua formação e criação. Contudo, a ligação, eu creio, talvez seja literária e só vim a descobrir depois. Ao fim do volume, há um memoir de Fiodor Guber, filho adotivo de Vasily Grossman, relatando suas lembranças sobre o escritor, e falando sobre a paixão deste por Anton Tchekhov. É aí, eu diria, que talvez resida uma conexão entre os dois, pelo menos para explicar esta minha impressão de semelhança estética, pois também Clarice Lispector me parece uma escritora tchekhoviana, ainda que os críticos sempre se refiram a James Joyce e Virgina Woolf como modelos para a brasileira. Não estou falando tanto sobre influência direta quanto em linhagem, espírito.

Em algum momento de 2011 quero começar a ler o grande Vida e Destino de Grossman, que alguns dizem ser o Guerra e Paz do século XX. Mas entrei numa onda russa graças a ele e agora estou lendo Um Dia Na Vida de Ivan Denisovich (1962), de Alexander Soljenítsin (ou Aleksandr Solzhenitsyn, como se diz na língua do Império). Queria ler O Arquipélago Gulag (1973), mas não o encontrei no sebo.

Estes russos e seus épicos, que parecem cobrir o continente geográfico e físico, e o continente moral e psicológico. Chega a ser assustador.

.
.
.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

"A sensação de ser transcontextualizado", ou "Quando Clarice Lispector traduz-se Christa Wolf"

Já escrevi inúmeros artigos neste espaço sobre o porquê de minha obsessão com o papel do contexto naquele processo chamado de charging language with meaning to its utmost degree, assim como minha ladainha meditante incansável sobre a necessidade de respeitarmos a inescapável historicidade do fazer poético. Volto a isso com uma frequência exasperante para muitos, seja em poemas, vídeos, ensaios. Não o farei hoje. O preâmbulo está aqui apenas para introduzir uma espécie de "coincidência".

A alemã Birgit Aka, doutoranda em Literatura Brasileira na Universidade de Passau, enviou-me por email na semana passada sua tradução para o alemão do meu poema "Conversa com duas estranhas", publicado no meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005). Fiquei surpreso e contente ao ler a tradução e perceber que ela havia seguido a ideia de contextualizar o poema, mais do que simplesmente traduzí-lo. O texto tem por ocasião uma experiência pessoal minha, um acontecimento verídico (coisa de filme televisivo talvez) do ano 2000, quando retirei na Biblioteca de Munique um exemplar do livro Perto do Coração Selvagem (1943) de Clarice Lispector, no qual encontrei pequenas anotações de uma estranha, anotações que me deixaram fascinado e ligeiramente obcecado. O poema é um resultado deste susto, desta tentativa de conexão quase mística ou telepático-psicótica com aquela estranha. Eu me sentia como que sugado para dentro de um conto da própria Clarice Lispector, com um certo pendor detetivesco que por sua vez me fazia sentir num conto de Julio Cortázar. Esta história é uma das minhas experiências míticas pessoais, tenho certeza que voltarei a ela um dia. Ela renderia mais poemas, um conto, quem sabe até um romance.

O poema relata de forma bastante plana e direta o acontecimento. Ele é a ocasião de sua ocasião. Surgiu primeiro em prosa, e depois, por seu caráter oral, fiz meu velho jogo de cortes de linhas para embaralhar a sintaxe. Seu prosaísmo seco, pelo menos naquela época, parecia-me a única maneira de fazer justiça à sensação estranhíssima que eu sentia ao acompanhar o romance de Lispector e ao mesmo tempo as anotações misteriosas da estranha. Não havia o que poetizar. É também um dos meus textos mais antigos, entre os que publiquei. Eu o escrevi no ano 2000.


Conversa com duas estranhas

prestes
a deixar o país retirei
na Biblioteca Municipal
de Munique Alemanha
o livro "
Perto do Coração
Selvagem
" de Clarice
Lispector
numa edição
brasileira
de 1984
em que encontrei pequenas
anotações em alemão a lápis
nos cantos de algumas
páginas numa caligrafia
que julguei feminina
delicada
algumas apenas traduções
para o alemão de palavras
que ela não entendia
como no alto
à página 34
em que ela não
conhecia a palavra “vergada”
e anotou sua tradução
para sua língua alguns pontos
de interrogação períodos
inteiros e vários “É ISTO!”
e “É
ISTO!” ou “ELA
ENTENDEU!”
todas em alemão
estou traduzindo
muitos pontos de exclamação
um “COMPREENSÍVEL”
é estranho
que as anotações cessam
de repente e só
voltam na página
168 um “ÓDIO” anotado
na página 201 às margens do
trecho “É verdade
que o silêncio entre eles
fora assim mais perfeito”
quando na página
202 as anotações explodem
em pontos
de exclamação interrogação
números 1-2-3 que não
compreendo
escrita ilegível
nervosa a última à página
203 diz “História da
Humanidade” precedida
pelos números 1-1-2-3-4-1
quando na página
seguinte já sem
anotações da
estranha Clarice Lispector
escreveu “... desde
que ela era mulher... A morte...
E de súbito a morte
era a cessação apenas... Não!
gritou-se assustada, não
a morte.”


Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)

Não sei se fui capaz de fazer jus àquela ocasião poética. Certamente voltarei a esta história em meio à minha História algum dia.

Isso foi há dez anos. Talvez esteja na hora de voltar a Munique e procurar aquele livro.

Em 2006 publiquei na revista Germina um ensaio intitulado "Tradução, contexto e migrações possíveis", no qual discuto a possibilidade de que uma só teoria de tradução não possa dar conta das múltiplas relações poéticas com a historicidade. No ensaio, proponho a possibilidade de que alguns poemas estejam tão ligados a seus contextos, que a única maneira de os traduzir não pode levar em conta apenas semântica, métrica, ritmo, mas também o contexto em que foi escrito, buscando uma espécie de transcontextualização (como a chamei no ensaio), ou quem sabe uma simples contextualização. No segundo número impresso da Modo de Usar & Co., o poeta Fabiano Calixto deu-nos alguns exemplos incríveis desta possibilidade tradutória com suas transcontextualizações para poemas de Allen Ginsberg.

Sem termos conversado a respeito, sem que Birgit Aka conhecesse meu ensaio ou soubesse destas minhas obsessões, ela escolheu contextualizar este meu poema para um leitor alemão, traduzindo Clarice Lispector por Christa Wolf, a importante escritora da antiga Alemanha Oriental, e usando seu romance Medea: Stimmen (1996) no lugar de Perto do Coração Selvagem. Da mesma maneira, quando menciono Munique em meu poema, ela menciona São Paulo, já que ela própria fora estudante estrangeira no Brasil, como eu era estudante estrangeiro aqui na Alemanha naquele ano 2000.

Voltando ao velho adágio traduttore, traditore, eu diria o seguinte: prefiro ser traído a ser exotizado. Deixo vocês com a contextualização de Birgit Aka.




Gespräch mit zwei Fremden

bereit
das Land zu verlassen entlieh
ich in der Bibliothek der Universität
São Paulo Brasilien das
Buch Medea.
Stimmen
von Christa
Wolf eine deutsche
Ausgabe aus dem Jahr 2010 das
Buch in Deutsch in
dem ich kleine Bleistift-
notizen in Portugiesisch in
den Ecken einiger Seiten
entdeckte in einer
delikaten
femininen Schrift
einige sind lediglich Übersetzungen
ins Portugiesische von Wörtern
die sie nicht verstand wie
auf Seite 32 weit
oben, wo sie das Wort
„Augenblicksschwäche“ nicht verstand
und ihre
Übersetzung ins Deutsche
notierte
manche Fragezeichen
ganze Abschnitte einige „SO IST ES“
und „SO
IST ES“ ein anderes „SIE BEGREIFT‘S“
alle in Portugiesisch ich übersetze
viele Ausrufezeichen ein
„VERSTÄNDLICH“ es ist seltsam dass
die Notizen plötzlich aufhören
und erst
auf Seite 139 wieder einsetzen
ein „ARSCH“ notiert auf
Seite 160 neben dem
Abschnitt „Sie hat
es mir vorausgesagt.
Nicht auftrumpfend, nein,
eher traurig, oder mitleidig,
was unverschämt war. Sie hatte sich ja
selbst jedes Mitgefühl verscherzt. Das
sagte man mir im Rat, als ich versuchte,
für sie
um Milde zu bitten, wobei ich
nicht versäumte,
die Schwere ihrer Vergehen zu
betonen, sie hätten mich sonst
in der Luft zerrissen.“
auf Seite 167 explodieren
die Notizen in Ausrufe-
zeichen Fragezeichen
Nummerierungen 1-2-3 die ich
nicht verstehe unleserliche
Schrift nervös
die letzte ist auf Seite
173 und lautet „Geschichte der
Menschheit“ angekündigt durch die
Nummern 1-2-3-4-1
sechs Seiten später ohne
Notizen der Fremden
schrieb Christa Wolf: „Und wie?
fragt der Bursche mit Verschwörermiene.
Gesteinigt! brüllen viele.
Wie sie es verdienten. Die
Sonne geht auf. Wie die Türme
meiner Stadt im Morgenglanze
schimmern.“


(tradução de Birgit Aka)

.
.
.

domingo, 22 de novembro de 2009

Elogio da violência est-É-tica a partir das secreções em Hilda Hilst

Em uma literatura de moços e moças muito comportados e estudiosos como é o caso da brasileira, especialmente no pós-guerra, descobrir Hilda Hilst foi um refrigério. Saber que essa mulher ignorada havia produzido coisas assustadoras como Qadós (1973) e A obscena senhora D. (1982), além dos textos curtos reunidos em Pequenos discursos. E um grande (1977), como "Vicioso Kadek" e "Teologia natural", servia para reconciliar qualquer um com as possibilidades de algo estimulante na terrinha. Como não admirar uma mulher que escrevia, além disso, aqueles poemas, em plena época antilírica, dos mocinhos que ruminavam opiniões de Cabral como dogmas insuperáveis? Era muito reconfortante poder ler um livro como Cantigas do sem nome e de partidas (1995), uma das coisas mais bonitas da década de 90. Não quero insinuar qualquer "anticabralismo" de minha parte, como alguns entenderam meu a cadela sem Logos. Mas, meus caros, venhamos e convenhamos: não podemos deixar que uma admiração exagerada nos cegue para o fato de que João Cabral de Melo Neto é um poeta de imaginação limitada, que empalidece ao lado da abundância de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Cabral talvez tenha uma obra mais regular e constante que a destes dois, mas eu diria que a tem porque se arriscou bem menos que eles, ou mesmo que o irregularíssimo Jorge de Lima. Seus melhores poemas foram escritos justamente sob o influxo destes dois poetas, aprendizado confirmado pelo próprio Cabral, como o lindíssimo "O cão sem plumas" (1950) ou os poemas do volume Psicologia da composição (1947). Produz as alturas de O Rio e Morte e vida severina, mas o Cabral que surge a partir de Paisagens com figuras viria a se repetir indefinidamente, sem superar o que fora capaz de fazer com essa poética no estupendo "Uma faca só lâmina" (1955), momento de risco supremo que Cabral se propôs, poema que merece figurar ao lado de textos tão importantes quanto "A máquina do mundo" e "Janela do caos", dos seus dois mestres. Dessa poética repetitiva, o importante A educação pela pedra (1966) viria a ser apenas uma variação elegante. Não há variedade formal suficiente em João Cabral de Melo Neto para nutrir com seus parâmetros, de forma unívoca, todo um projeto de poesia nacional no pós-guerra. É óbvio que não se pode culpar um poeta tão forte como Cabral por toda a literatura anódina que se produziu em seu nome ou suspostamente sob seu signo. Aquele homem possuía verdadeiramente uma est-É-tica, mais do que explícita a quem lê com atenção poemas como "A palo seco", que nada tem a ver com o que se confundiu com objetividade na poética oficial dos últimos 20 anos, com a descrição de paisagens urbanas ou o uso recorrente de "pedras" e "desertos" posando como materialidade de linguagem. Como escrevi em outro lugar, o problema com esta idéia equivocada de "objetivo" começa no fato de que esta objetivação requer, em sua base, a sobrevivência das velhas dicotomias de sempre, como interno/externo, sujeito/objeto, sua concentração sobre o "mundo externo" (daí a avalanche de poemas meramente descritivos), que depende de uma espécie de unidade de percepção do poeta, que acaba sendo centrada num sujeito monolítico, desonestamente camuflado. Enquanto isso, Hilda Hilst ousava escrever e chamar de poemas, em plena época de secura e materialidade, poemas líricos que tomavam Caio Valério Catulo por mestre. Longe de mim sugerir que Hilst superou Cabral, o que talvez tenha feito, se levarmos em conta não apenas seus poemas, mas toda sua produção literária. O que nos impede, no entanto, de abrir o nosso leque de possibilidades poéticas?

O Poeta Inventa Viagem, Retorno e Morre de Saudade

Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.


Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974)

ou

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


Do desejo (1992)

Mas o assustador em sua obra e o que seguirá fazendo de Hilda Hilst um dos nomes incontornáveis na literatura deste século é seu trabalho em prosa, ou o que se convenciona chamar de prosa por simplesmente ocupar toda a página. Assim como Cabral serviu de parâmetro crítico quase único para a produção poética, a prosa brasileira nas duas últimas décadas parece ter feito de Rubem Fonseca um dos seus poucos parâmetros críticos, ou a meta de qualidade a atingir. Rubem Fonseca é um bom escritor, mas jamais seria possível ordenhar uma escola literária das tetas murchas de seu trabalho. Os que temperaram sua poética ainda com o que aprenderam de escritores como João Antônio, Campos de Carvalho, João Gilberto Noll e Sérgio Sant´Anna, além de diferentes referências de outras línguas, entregaram obras mais estimulantes. Na mesma época, Hilst enriquecia a escala com essa nota:

Teologia Natural


A cara do futuro ele não via. A vida, arremedo de nada. Então ficou pensando em ocos de cara, cegueira, mão corroida e pés, tudo seria comido pelo sal, brancura esticada da maldita, salgadura danada, infernosa salina, pensou óculos luvas galochas, ficou pensando vender o que, Tiô inteiro afundado numa cintilância, carne de sol era ele, seco salgado espichado, e a cara-carne do futuro onde é que estava? Sonhava-se adoçado, corpo de melaço, melhorança se conseguisse comprar os apetrechos, vende uma coisa, Tiô. Que coisa? Na cidade tem gente que compra até bosta embrulhada, se levasse concha, ostra, ah mas o pé não agüentava o dia inteiro na salina e ainda de noite à beira d'água salgada, no crespo da pedra, nas facas onde moravam as ostras. Entrou em casa. Secura, vaziez, num canto ela espiava e roia uns duros no molhado da boca, não era uma rata não, era tudo o que Tiô possuia, espiando agora os singulares atos do filho, Tiô encharcando uns trapos, enchendo as mãos de cinza, se eu te esfrego direito tu branqueia um pouco e fica linda, te vendo lá, e um dia te compro de novo, macieza na língua foi falando espaçado, sem ganchos, te vendo, agora as costas, vira, agora limpa tu mesma a barriga, eu me viro e tu esfrega os teus meios, enquanto limpas teu fundo pego um punhado de amoras, agora chega, espalhamos com cuidado essa massa vermelha na tua cara, na bochecha, no beiço, te estica mais pra esconder a corcova, óculos luvas galochas é tudo o que eu preciso, se compram tudo devem comprar a ti lá na cidade, depois te busco, e espanadas, cuidados, sopros no franzido da cara, nos cabelos, volteando a velha, examinando-a como faria exímio conhecedor de mães, sonhado comprador, Tiô amarrou às costas numas cordas velhas, tudo o que possuía, muda, pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava.

de Pequenos Discursos. E um Grande (1977)

Trata-se de um outro tipo de violência. A violência das secreções funciona de forma distinta em Hilst. Sua tática de choque vai além da atitude malcriada de Rubem Fonseca, que tanto fascina os escritores brancos e heterossexuais da classe média do Brasil de hoje. Nesse aspecto, parece-me ainda mais claro que o escritor brasileiro com o qual se poderia comparar Hilda Hilst não é João Guimarães Rosa (o que ocorre com frequência no Brasil que também costuma meter Joyce e Stein no mesmo balaio), mas Graciliano Ramos, por mais incomum que pareça a ligação. Não o Ramos de Vidas Secas (1938), talvez, mas definitivamente o Graciliano Ramos de Angústia (1936) e, de certa maneira, mesmo o de São Bernardo (1934).

Violência esta muito mais que a temática, que Rubem Fonseca pratica por vezes com brilhantismo, mas uma violência est-É-tica que encontramos em escritores muitas vezes aparentemente díspares entre si, como a Clarice Lispector de A paixão segundo GH (1964) ou A hora da estrela (1977), sem deixar de mencionar a pancada est-É-tica que é A maçã no escuro (1951), aquela diatribe metafísica e política que até hoje não foi muito bem digerida; e, é claro, penso também no mestre de nós todos, Machado de Assis. Ou não lhes parecem brutais, livros como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899)?

O pós-guerra viu mulheres como Clarice Lispector e Hilda Hilst produzirem alguns dos artefatos (metafísicos e políticos) mais brutais de nossa literatura, numa linguagem seca e direta, mas informada por suas leituras de autores como Merleau-Ponty e Wittgenstein. A narrativa brasileira contemporânea, no entanto, com as exceções de sempre, parece ser produzida por rapazotes que cresceram lendo gibis de super-heróis, nos quais basearam seus machucados projetos de masculinidade, produzindo hoje suas narrativas ideais para um público, digamos, como o dos estudantes da UNIBAN.

No entanto, a invectiva contra nossas ilusões de "civilização" em livros como esses: Memórias póstumas de Brás Cubas, Angústia, A paixão segundo GH e Qadós é atordoante, inescapável. Testemunhos de nossa inviabilidade em meio ao inviável (que se sonha invejável) Ocidente, que já cai aos pedaços e afunda, sem que os muitos tomos das obras completas de Shakespeare e Balzac nos ajudem sequer a boiar. Esses livros nos mostram o que Euclides da Cunha estabelecera com seu anti-épico: se houver alguma sombra de justiça nessa existência, do Brasil não sobrará um dia pedra sobre pedra. Sejam estas pedras cabralinas ou não.

§


Às vezes davam-me panos pretos, ou alaranjados ou com listas ou vermelho com florzinhas, nunca o branco, Excelência, e como último recurso para conseguir os círios eu entrava numa loja aos solavancos, o olho girassol e gritava: duas velas por favor, a mãe agoniza, em nome do vosso nosso Deus duas velas para as duas mãos de mamãe. E saía como o raio, como o cão danado, como Tu mesmo que te evolas quando Te procuro, ai Sacrossanto por que me enganaste repetindo: hic est filius meus dilectos, in quo mihi bene complacui? Nudez e pobreza, humildade e mortificação, muito bem, Grande Obscuro, e alegria, é o que dizem os textos, humilde e mortificado tenho sido, mas alegre, mas alegre como posso? Se continuas a dar voltas à minha frente, estou quase chegando e já não estás e de repente Te ouço, bramindo: mata o rei, Qadós, o inteiro de carne e de pergunta, pára de andar atrás de mim como um filho imbecil. Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta? Como queres o meu ser humilde e mortificado se antes, muito antes do meu reconhecimento em humildade e mortificação, Tu mesmo e os outros me obrigam a ser humilde e mortificado? Como queres que eu me proponha ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de fogo já engoliu o melhor de mim e cuspiu as escórias, um amontoado de vazios, um nada vidrilhado, um broche de rameira diante de Ti, dentro de mim? E as gentes, Máscara do Nojo, como pensas que é possível viver entre as gentes e Te esquecer? O som sempre rugido da garganta, as mãos sempre fechadas, se pedes com brandura no meio da noite que te indiquem o caminho roubam-te tudo, te assaltam, e se não pedes te perseguem, se ficas parado te empurram mais para frente, pensas que vais a caminho da água, que todos vão, que mais adiante refrescarás pelo menos os pés e ali não há nada, apenas se comprimem um instante, bocejam, grunhem, olham ao redor, depois saem em disparada. Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros embaixo do braço, e se via alguém mais louco do que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, depois deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou, eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós. Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão. Não tenho não senhor, só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos.

trecho de Qadós (1973)

.
.
.

Arquivo do blog