sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Dois poemas meio inéditos, para começar a esvaziar a gaveta

A nova edição da revista eletrônica Desenredos traz dois poemas inéditos meus, que deverão um dia ser incluídos em meu próximo livro, seja lá quando isso acontecer. Os dois foram escritos em 2006, creio, e trazem marcas das preocupações e leituras daquele momento, minhas traduções de poetas dadaístas, de certos poetas austríacos como H.C. Artmann, minha obsessão com a defesa da historicidade da poesia. Poderiam ter na verdade entrado neste livro agora publicado, mas meus três livros foram concebidos como livros estruturados, o que sempre faz com que muitos poemas fiquem na gaveta à espera de uma estruturação em livro posterior. É uma sensação estranha, pois toda vez que publico um livro, já teria quase o suficiente para um próximo. É que eu nunca esvazio por completo a gaveta. Dá também a sensação de um livro novo para os outros, mas velho para o próprio poeta. Os poemas incluídos em Sons: Arranjo: Garganta foram todos compostos entre 2004 e 2007. Até o livro sair, agora em dezembro de 2009, eles mudaram muito, com correções e extirpações e adições. Alguns haviam sido já compostos e publicados em revistas quando saiu meu primeiro livro, Carta aos anfíbios. Da próxima vez acho que quero fazer uma espécie de Museu de tudo, como fez João Cabral certa vez, esvaziar a gaveta. Deve ser uma sensação boa, esvaziar a gaveta. Esvaziar a cabeça, as glândulas. Esvaziar até desabastecer-se. Chacoalhar os conteúdos da bolsa, da mochila, dos bolsos em praça pública. Expor-se a faltas. Como um corpo de repente privado da produção de serotonina.

Reproduzo abaixo os dois poemas.

anatomia do ouvido alheio a partir da própria garganta

§ - Introdução ao poema

Típico Ricardo
que Leslie Feist 
palreie 
clouds part 
just to give 
us a little sun
” 
& vossa mercê 
em meio à 
Own Private Idaho 
de sua tragédia 
em 365 actos 
entenda “clouds 
fall just 
to give us a lesson
” 
e creia salvar-se 
       na heráldica 
de seus malentendidos.
É óbvio claro & evidente
que Gertrude & Ludwig
contorcem-se de orgulho
dentro de seus sarcófagos,
vibrando em seus ossos 
e empoeirados cabelos
por sua perspicácia
ao aprender com a água
a condensar-se de acordo 
com a temperatura,
enquanto você, 
poetícula de unhas 
cravadas na própria juba,
pausa para escrever
seu mais novo
manual de instruções
          para resquícios
que começa
thus assim ecco:
Nuvens 
ejetam-se, caem 
de pára-quedas
sobre meus cílios
            em lições
sobre o que significa 
expectativa




§- Poema

Nuvens 
ejetam-se, caem 
de pára-quedas
sobre meus cílios
            em lições
sobre o que significa 
expectativa
, mas discordo 
da estratosfera em densidade
de água, umidade, distância 
do horizonte que funciona
como meus pulmões
e meus pulmões não são 
argumentum ad infinitum 
nem se expandem 
como o verão e suas sardas.
Não
          é todo dia
que se quer que
  se quebre, que
se berra: “breque
para que se possa
afundar o resto
dos destroços,
todos à queima 
dos despojos,
quando não
basta cavar crateras
e depois terraplanar 
Tróia Nagasaki Atlanta.
Belicosos até nas belezuras,
como quem desenha 
trincheiras no peito
do amante e acha poucas
as bombas sobre Berlim,
sussurrando ao seu ouvido:
beligerante pouco 
é bobagem
“.
Você não se cansa mesmo 
de sobrepor-se bentônico
à minha superfície,
então hei-de quebrar 
os dentes do cavalo dado,
aguaçar-me o aguacento,
questionar as quantas demãos
você me exige 
para sua futura aguarrás,
Sr. Cantante
em ternário ao meu compasso,
candidato a exclusivo,
que me doa king
size
 à serralheria
que se mostra generosa 
aos encaixes de nosso relacionamento 
em beliche, moçoilo, se não alcanço 
sequer o segundo 
turno à eleição a benemérito
que você preside como juiz, 
faça ao menos jus 
ao presídio em que vivo em nós
das suas bravatas e brocardos.
Eia! Buldogue bulímico -
veja se me premia 
com algum bônus, 
ao menos beneplácito,
não seja assim tão bequadro
dos meus bemóis a mais,
cesse este cicio de cíclope
           míope e cuneiforme,
enfartei-me já de farta
da embriologia 
     dos teus embromos
e erriçada peco e peço
a concha das suas mãos
para trazer água à minha boca
e enxugar dos meus olhos 
a água, na esperança 
última que mirra 
de que o equinócio 
traga enfim simetria 
à balança comercial de nossa erosão




Texto em que o poeta medita sobre a transitoriedade da existência física enquanto alterna canais de televisão na Berlim de junho de 2006 em busca de material para o poema e assiste a documentários sobre Marilyn Monroe, a Ilha de Páscoa e um jogo de futebol


1-

a escrita
por cópula
de signos
em metamorfose
                na Ilha 
de Páscoa
após contacto
com europeus
como Marilyn
          Monroe
completaria oitenta
anos a primeiro
de junho de
dois mil e seis

2-

Marilyn
Monroe
não
despertou ao
terceiro dia

3-


ilha devastada
       pelo ícone
escavado no material
vulcânico de sua origem
e composição

que despertemos
dos barbitúricos
de nossos pesadelos
louros e lindos
como 44 pernas

4-


Oh Marilyn
Monroe perante
o pênalti
como um Moai
contra o céu

5-


mar e limo
róem

6-

por tal sex
symbol
 cortaríamos 
também as palmeiras
do solo e extinguiríamos
quaisquer pássaros 
pelo asséptico
da terra desgastada
do mito
que rola e urde.

7-


Marilyn Moairuhe


.
.
.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ricardo, valeu os poemas, que exalam uma ironia desiludida que eu tanto aprecio. E valeu também saber desta revista, realmente excelente, e que vem reformar a verdade de que o reduto das boas revistas, com poucas exceções, não é mais papel e sim a mídia virtual.

Ricardo Domeneck disse...

Obrigado pelas palavras e pela visita, meu caro.

R.

Arquivo do blog