O Portal Literal publicou na semana passada uma pequena matéria sobre o lançamento do segundo número impresso da Modo de Usar & Co., com o lançamento triplo da nova leva da coleção Ás de Colete, dirigida por Carlito Azevedo para a editora Cosac Naify. A matéria é assinada por Felipe Pontes, que conduziu uma pequena entrevista com Walter Gam e comigo durante aquela semana. Não vou reproduzir aqui a entrevista como já pode ser lida na página do Portal Literal. Vou apresentar aqui as três respostas, mas divididas em vários pequenos parágrafos, como ensaios de tentativas de ensaios. Todas as respostas são, de qualquer forma, buscas de compreensão do nosso momento. Alguns de vocês devem estar cansados das minhas pregações, mas apresento aqui estes exercícios de resposta como continuação de conversas sobre nosso contexto, aquele de que busco participar.
Exercícios de resposta
Não é uma situação nova que escritores e poetas brasileiros produzam fora do país. Dentre os modernistas, Raul Bopp, Clarice Lispector, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa, entre outros,produziram grande parte de seu trabalho na Europa ou nos Estados Unidos. Hoje em dia há, por exemplo, o poeta Zuca Sardan, que vive também na Alemanha. Com a internet, é realmente mais fácil manter-se ativo no cenário brasileiro e de língua portuguesa, participando dos debates. Nesse aspecto de divulgação do trabalho, não faz grande diferença estar em Berlim ou em Pindamonhangaba. A ausência física, no entanto, impede muitas vezes que eu participe de leituras públicas do meu trabalho, cumprindo esse papel na Alemanha, onde há um circuito de festivais mais consolidado.
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Quanto ao processo de criação e pesquisa, a residência em ambientes linguísticos e culturais distintos ainda gera questões diferentes para o poeta. Já se escreveu sobre uma parcela dos poetas da minha idade, em quem a experiência internacional, digamos, cumpriria um papel fundamental. Realmente, muitos poetas jovens hoje têm uma relação mais complexa com a noção de uma "tradição nacional". Muitos poetas de hoje parecem ter uma relação diferente com esta tradição, tanto quando comparados com os modernistas (que tinham, como os românticos, seus projetos para uma poesia nacional), como quando comparados com os poetas das décadas de 80 e 90, que começaram a afastar-se do nacionalismo de 22, ainda forte na década de 70, mas o faziam por um viés mais "universalizante", digamos, buscando elidir em muitos casos a historicidade do fazer poético. Hoje, muitos poetas jovens recusam tanto o "nacionalismo" dos modernistas como o "universalismo" dos poetas do fim do século passado. Entre os dois, instauram talvez um "internacionalismo", ou seja: não se obcecam com o contexto brasileiro, nem tentam abstrair em seu trabalho todo contexto. Praticam uma dança entre contextos, através da linguagem.
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Eu acredito na linguagem poética como sendo aquela que se reconhece como artifício. Viver em outro país, como a Alemanha, com uma língua geral tão diferente daquela em que componho e escrevo, me ajuda a não cair em armadilhas de naturalismos. Deixa-me consciente da língua como construção, código ligado a um contexto específico. Estar cercado, não apenas por outro campo semântico, mas por outro campo fônico, deixa qualquer poeta mais sensível à materialidade da linguagem.
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É também preciso lembrar que a crença em uma tradição nacional, baseada em uma única língua oficial, só ganha força realmente hegemônica com os poetas românticos, não apenas no Brasil; o Romantismo alemão também teve essa característica fundacional. Antes deles, entre os barrocos e os poetas medievais, as fronteiras entre literaturas eram mais difusas. Há muitos exemplos, como Gil Vicente, que escreveu também em castelhano, ou o trovador medieval Raimbaut de Vaqueiras, que compôs um descort em cinco línguas. Muitos poetas antes de James Joyce já praticavam uma escrita que vaga entre línguas e arcabouços etimológicos distintos. Nossa noção de vanguarda e originalidade é muito problemática, depende de hegemonias e esquecimentos. Entre os modernistas, Manuel Bandeira e T.S. Eliot têm poemas em francês. Beckett escrevia tanto em inglês como em francês. Dois dos Cantos de Ezra Pound foram escritos em italiano, assim como Murilo Mendes escreveu um livro inteiro nessa língua, com poemas maravilhosos. Nesse meu livro, há textos em espanhol e inglês, o que não é novidade ou originalidade alguma, trata-se de religar-me a uma prática comum em outros momentos da tradição.
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Muita coisa que é vista como "vanguarda" é, em muitos casos, a religação a práticas desprestigiadas ou esquecidas da tradição, que sempre foi múltipla. Defendo, por exemplo, que os dadaístas não estavam "destruindo" a tradição, mas privilegiando aspectos orais, sonoros e de performance da poesia, aspectos que entraram em declínio a partir do Renascimento. Viver na Alemanha gera características específicas para o meu trabalho, mas estou muito consciente de que o debate principal de que participo é o brasileiro, em primeiro lugar, e o de língua portuguesa.
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Em meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (2005), eu iniciei minha pesquisa pessoal sobre a corporalidade da escritura, como já havia uma preocupação clara de quebrar ou pelo menos borrar dicotomias e dualidades entre o corporal e o espiritual, o que levava a várias implicações: questionar a fronteira entre objetividade e subjetividade, entre concretude e abstração e também, consequentemente, entre o literário e o oral, o signo visual e a matéria fônica da poesia. Isso gerou em mim também a necessidade de espraiar minha pesquisa para além das fronteiras da escrita, passando a compor meus vídeos, performances e poemas orais. Nesses dois últimos livros, tanto a coletânea a cadela sem Logos (2007) como agora este Sons: Arranjo: Garganta (2009), eu já compus e escrevi como aquele que escolhe viver na fronteira entre o oral e o escrito. Ao mesmo tempo em que compunha esses livros, apresentava por exemplo na TV Cultura meu vídeo Garganta com texto (2006), em que defendo uma pesquisa poética vocal, já que o verbivocovisual dos concretos, por exemplo, frequentemente suprimia o vocal. Nesse aspecto, ligo-me à pesquisa poético-sonora de brasileiros como Philadelpho Menezes (1960 - 2000), Ricardo Aleixo, Chacal, Arnaldo Antunes, Gláucia Machado, Marcelo Sahea, entre outros. O poeta britânico Basil Bunting (1900 - 1985) chegou a declarar que grande parte das concepções errôneas sobre poesia surgiu com o hábito da leitura silenciosa.
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Não sugiro que uma experiência sobreponha-se à outra. Quando ataco a hegemonia do literário sobre o oral no debate poético, não quero apenas inverter os valores. Nós ganharíamos muito com uma pluralidade poética, o que não significa abandonar a crítica ou instaurar parâmetros frouxos. Significa entender que há pesquisas distintas, aquelas que podem ser feitas apenas como escritura e as que pedem a oralidade, o corporal. Esse livro foi publicado como objeto, carregando textos escritos. A oralização deles é uma das experiências possíveis com esses textos. Há alguns que já possuem sua versão oralizada, como as "Six songs of causality", que são um bom exemplo para essa relação. Compostos primeiramente como uma série de textos permutativos, eu creio que só ganharam sua plenitude quando compus sua versão verbivocovisual, em performance, que pode ser vista nesse vídeo, de minha apresentação no Espai d´Art Contemporani, nos arredores de Valência, na Espanha:
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No Brasil, onde há uma poesia oral e cantada tão forte, o abismo entre poetas-escritores e poetas orais parece intransponível e ainda marcado por hierarquias e trincheiras. Não há, por exemplo, um costume de leituras públicas. O contacto com os poetas hispano-americanos começou a mudar isso, mas ainda se desconfia muito de tudo, pelo medo do histriônico e teatral, algo em que pecam muitos dos poetas brasileiros que buscam o performático, infelizmente. Há trincheiras na Europa também, os poetas sonoros e os poetas escritores também se miram com desconfiança e muitas vezes até com certo menosprezo. Mas há cenas fortes de ambos os lados, assim como muitos poetas que estabelecem pontes entre as práticas literária e sonora, como os franceses Bernard Heidsieck e Christophe Fiat, os espanhóis Bartomeu Ferrando e Eduard Escoffet, os alemães Michael Lentz e Nora Gomringer, entre outros. Há muitos festivais em que poetas-escritores oralizam seus trabalhos, como o Poesiefestival Berlin, que dedicou a edição do evento em 2008 à língua portuguesa, assim como festivais exclusivamente dedicados à poesia sonora, como o Yuxtaposiciones, de Madri, que este ano convidou Joan La Barbara, Nathalie Quintane, Sandra Santana, Anne Waldman, entre outros. Eu já participei tanto do Poesiefestival de Berlim, com sua abordagem literarizante, como do Yuxtaposiciones de Madri, que enfoca a performance e a oralidade. O saudável seria instaurar parâmetros que não tentem excluir uma das pesquisas.
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Tenho defendido que o poeta precisa manter-se consciente do contexto em que insere seu trabalho. Parece-me ridículo crer que o papel do poeta não muda ao longo dos tempos, ou de cultura em cultura, país em país, língua em língua. Não se pode escrever como Homero ou Safo hoje, porque nós nem sequer podemos ler ou escutar Homero e Safo como os gregos antigos os leram e escutaram, não só por uma questão de língua. No entanto, entender o contexto histórico em que Homero e Safo compuseram seus textos e canções pode nos ajudar a entender o nosso próprio contexto. Saber como os poetas do passado resolveram seus problemas formais pode ajudar-nos a resolver os nossos.
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Sigo tanto Ludwig Wittgenstein como Walter Benjamin na crença de que o poeta não pode abrir mão da historicidade do fazer poético. Talvez seja compreensível ler o nome de Benjamin nesse contexto, mas por que incluir o de Wittgenstein? Porque acredito nas implicações de certas proposições do filósofo austríaco, como a que diz que "o significado de uma palavra é seu uso na língua", daquele que escreveu que "ética e estética são uma só". Concordo com Maiakóvski quando este diz que "sem forma revolucionária não há arte revolucionária", mas vejo nesta declaração implicações com ênfases um pouco diferentes daquelas pregadas, por exemplo, pelos poetas concretos. Eles estavam obcecados com o conceito (militarista e diacrônico) de vanguarda e ficavam embasbacados com a noção de "arte revolucionária", mas o que mais fascina na declaração de Maiakóvski é que ela demonstra a crença do poeta russo na historicidade do fazer poético, nas interações entre a pesquisa poética e o contexto histórico em que esta se insere. É curioso assistir como alguém como Haroldo de Campos, três décadas mais tarde, defenderia um conceito como "trans-historicidade", que é uma grande deturpação do Jetztzeit de Benjamin, que ele traduziria como "agoridade" e passaria a embaralhar, de forma bastante desastrada, ainda com o conceito de sincronia histórica. O ensaio em que ele defende a noção do "pós-utópico" parece-me muito mais um manifesto, mesmo assim bastante questionável e problemático. Apenas a subserviência geral explica a maneira como esse ensaio passou a ser usado como dogma nas décadas de 80, 90 e até bem pouco tempo, sem um debate que investigasse de maneira mais complexa a compreensão das transformações históricas, a partir da década de 60, e suas consequências para a pesquisa poética. De qualquer maneira, preciso corrigir algo: eu jamais usei a palavra "engajamento" em meus artigos, pois não se trata de exigir participação política do poeta. Entendo perfeitamente o trauma dos poetas que viveram a época da ditadura militar e não querem se ver mais uma vez obrigados a responder a críticas estúpidas de caráter estalinista. Eu sou um leitor de Óssip Mandelshtam, que morreu em um gulag por se recusar a seguir a poética do Estado Soviético, e não ousaria reduzir a uma noção de engajamento político a questão das implicações éticas do fazer poético. Não é isso que defendo quando insisto na importância do contexto histórico na pesquisa poética. Não creio que eu próprio faça concessões em meu trabalho ou escreva uma "poesia de palanque", mas acredito na união entre forma e função, e que o trabalho poético de qualidade pode intervir na comunidade em que se insere. De qualquer maneira, digo que o poeta tem responsabilidades porque sua matéria prima é uma propriedade pública e coletiva: a linguagem. Sem concessões, sem discursos políticos. Importa o que o poeta faz, não o que ele diz. Ele pode falar sobre as folhas que caem no outono ou sobre a amada que o deixou, mas o texto terá implicações distintas se apresentar-se como soneto, sextina, poema visual, poema sonoro, em sintaxe castiça, desarticulada, usando metáforas, suprimindo metáforas, em prosa, em verso, em livro, lido em público... cada uma destas escolhas terá efeitos distintos, implicações diversas. Aquele que quer apenas "se exprimir", que vá procurar um terapeuta. O poeta pode ser artesão e interventor ao mesmo tempo, mas apenas se ele acredita na importância e historicidade do seu FAZER.
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sábado, 16 de janeiro de 2010
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