quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Ao vosso serviço, trobairitz

A morte de Lhasa de Sela no primeiro dia deste ano desencadeou em mim, novamente, aquela espécie de resquício de amor cortês que sobrevive em minha poeticidade, como se um bloco daquele oxigênio, lá dos idos de 1150, ar anterior à Grande Peste (refiro-me à bubônica, não à Renascença), tivesse ficado congelado em algum lugar até entrar por minhas narinas. Tenho ouvido os poemas líricos da finada donna, que até no nome soava como trobairitz, sonhando com o retorno da hegemonia crítica que dê atenção às nossas trobairitz contemporâneas. Já escrevi aqui sobre minha obsessão por Kate Bush, uma das minhas guias para uma pesquisa poética contra o bongostismo das hierarquias entre alturas e baixezas culturais. Sigo crendo que "Sat in the lap" é um dos mais belos e perturbadores poemas (como todo o álbum The dreaming, de 1982, mesmo ano de A obscena senhora D, de Hilda Hilst) líricos daquela década. Ainda quero um dia escrever sobre o poema lírico "Get out of my house", de Kate Bush, com sua figura da mula, à luz da presença dos porcos na obra de Hilda Hilst. O machinho literato e apolíneo que quiser competir com isso, sinta-se à vontade:


(Kate Bush, "Get out of my house", do álbum de poemas líricos e sonoros The dreaming)

Publiquei um artigo na Modo de Usar & Co. sobre Lhasa de Sela, apresentando-a como poeta lírica, como herdeira de Safo de Lesbos, dos troubadours e das trobairitz medievais, com minha tradução/reescritura para o poema "Rising". No artigo, insisto em minha crença de que a separação hierárquica entre escrita e oralidade foi uma construção ideológica, que teve sim consequências bastante práticas e reais sobre a tradição poética, desde o Renascimento até Mallarmé, que é o coroamento da poesia como Literatura, mas que subsiste numa clave de hegemonia crítica. A população do mundo, porém, seguiu atenta aos poetas orais e aos trovadores, que não desapareceram por completo. Já tratei disso em artigos sobre Arnaut Daniel, Beatriz de Diá, David Bowie e Joanna Newsom, que podem ser encontrados na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.. Herança de Safo de Lesbos, que passaria por poetas como o grego Calímaco e o latino Catulo, que trabalharam basicamente com a textualidade gráfica e, mais tarde, a partir da herança da poesia árabe, acaba sendo retomada como escrita e performance, ainda que de maneira transformada e distinta, pelos troubadours e trobairitz occitanos. Essa tradição oscila entre a Literatura e a performance ao longo dos séculos, atingindo harmonia e equilíbrio em seus momentos mais altos, como nas obras de Arnaut Daniel e Bernart de Ventadorn.

Fragmento de Safo

Eis as cinzas de Timas: morta pouco antes de casar-se,
Perséfone a acolheu em seu quarto sombrio.
Assim que ela morreu, as amigas, tão jovens quanto ela,
cortaram-se os cabelos com ferro afiado.


(tradução de José Paulo Paes)

A música e voz de Safo perderam-se. Restou sua textualidade gráfica, que sobrevive como Literatura, mas com o fantasma de seus sons pairando na derme do texto. No caso dos poetas medievais, sobreviveram em muitos casos os textos e suas composições musicais, mas continuamos a vê-los como Literatura apenas. Graças a certos estudiosos, podemos hoje saber aproximadamente o que era a sextina de Arnaut Daniel:


(Performance de Thomas Binkley para a sextina de Arnaut Daniel, "Lo ferm voler qu'el cor m'intra")

Sextina, letra de música e literatura ao mesmo tempo. Poderemos algum dia voltar a esta harmonia, este equilíbrio?

Poetas líricas contemporâneas como Kate Bush, Patti Smith, P.J. Harvey, Chan Marshall e Joanna Newsom estão ligadas a esta tradição, que incluía entre os troubadours as trobairitz, como Beatriz de Diá, a única de quem temos texto e música:


(Performance de Montserrat Figueras para a canso de Beatriz de Diá, "A chantar m'er de so q´ieu no voldria")

Essa tradição sobrevive e desagua tanto em Hilda Hilst como em Chan Marshall aka Cat Power:

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.


(Hilda Hilst, Júbilo Memória Noviciado da paixão, 1974)



(Chan Marshall aka Cat Power, "Nude as the news", do álbum What would the community think, de 1996)


Há mulheres hoje que sabem muito bem que estão ligadas a esta tradição, chegando a ser quase intransigentes nesta escolha, como Joanna Newsom demonstrou em seu último álbum de poemas líricos, intitulado YS (2008):



A escrita de um texto como "Sawdust and diamonds", de Joanna Newsom, parece-me superior à de muitos literatos em atividade no mundo de hoje. Talvez permaneça um mistério como a voz pode doar tamanho poder a um texto que, sozinho, não teria este poder, como é o caso de "Strange fruit", um belo exemplo de como a performance de um poeta doa poder a um texto. Nesse caso, Billie Holiday transforma o texto, fazendo com que este vídeo, desta performance específica, substitua para sempre o texto:


(Billie Holiday, "Strange fruit", texto talvez literariamente fraco de Abel Meeropol, que se transforma em gigante na voz de Holiday)

No artigo sobre Lhasa de Sela, trabalho com seu poema "Rising":

Rising
Lhasa de Sela

I got caught in a storm
And carried away
I got turned, turned around

I got caught in a storm
That's what happened to me
So I didn't call
And you didn't see me for a while

I was rising up
Hitting the ground
And breaking and breaking

I was caught in a storm
Things were flying around
And doors were slamming
And windows were breaking
And I couldn't hear what you were saying
I couldn't hear what you were saying
I couldn't hear what you were saying

I was rising up
Hitting the ground
And breaking and breaking

Rising up
Rising up







Ascendendo

Fiquei presa numa tormenta
E fui carregada pelo vento
Fui desviada, desviada

Fiquei presa numa tormenta
É o que me aconteceu
Por isso não liguei
E você não me viu por um tempo

Eu estava ascendendo
Atingindo o chão
E trincando e trincando

Eu fiquei presa numa tormenta
Coisas voavam por todos os lados
E portas fustigavam-se
E janelas quebravam-se
Eu não podia ouvir o que você dizia
Eu não podia ouvir o que você dizia

Eu estava ascendendo
Atingindo o chão
E trincando e trincando

Ascendendo
Ascendendo

(tradução/reescritura de Ricardo Domeneck)

E escrevo no artigo: Transcrevê-lo, com uma tradução/reescritura, tem a função de acompanhar a performance de Lhasa de Sela. Poderíamos ligá-la à tradição do trobar leu em suas composições originais, mas Lhasa de Sela trabalhava também como jongleur, ou o que hoje chamaríamos de intérprete.

O debate no Brasil entre literatura e oralidade, poesia escrita e poesia cantada é em geral bastante equivocado, ou no mínimo tendencioso. Ao transcrever um texto oral para a página, esperamos que ele funcione como Literatura. É uma expectativa legítima, mas não podemos nos esquecer que um poema lírico ou oral não tem obrigação de funcionar também como Literatura. Sabemos muito bem que, ao se afastar da oralidade, passamos a ter poemas escritos que também não funcionam bem em oralizações. Aí flagramos a hegemonia crítica que ainda impera, instituindo uma hierarquia, pois não se espera do poema literário que este funcione como poema oral, mas se espera do poema oral que este funcione como literatura. É claro que não podemos perder de vista o trabalho dos grandes poetas, que atingiram a harmonia de criar textos tão absolutamente tesos que sobreviveram por séculos como literatura, mesmo que tenham sido compostos para a voz, como é o caso dos poemas de Safo de Lesbos e Arnaut Daniel. Ou nos esquecemos que seus textos são "letras de música"? A escolha de nossos adjetivos já denuncia nossa est-É-tica. A busca de poemas "densos" e "concretos" demonstra uma perspectiva mais calcada no visual e na escrita. A busca de poemas "tesos" nos daria poemas que funcionam na página e na boca. Exponho aqui, obviamente, a minha est-É-tica e ideologia pessoais, tão parciais como a de qualquer outro.

A separação crítica entre escrita e oralidade teve efeitos extremamente negativos para a nossa tradição poética, ao fazer com que os poetas orais descuidassem da escrita, perdessem qualidade textual em seus poemas, assim como fez com que os poetas-escritores fossem perdendo cada vez mais o contacto com seu público, fechando-se em si, compondo textos que não podem sair da página mesmo que quisessem, fazendo literatura de literatura para literatos.

No entanto, há obviamente pesquisas que exigem o trabalho visual e literário apenas. Da mesma maneira, há pesquisas que exigem apenas a voz. É possível julgar um poema como "Rising" em seus aspectos literários, de escrita. Mas isso perderia e excluiria a imensa qualidade poética de sua textualidade vocal e sua concretude sonora e nos daria resultados críticos parciais. Eu poderia aqui ligar a escrita de Lhasa de Sela, em um poema como "Rising", à de outros poetas norte-americanos, como por exemplo Lorine Niedecker, Robert Creeley ou Rae Armantrout. Mas eu prefiro pensar a textualidade de Lhasa de Sela nos termos da tradição do trobar leu e de poetas como Heinrich Heine, um autor alemão que manteve em sua escrita uma ligação clara com a oralidade. Não é à toa que seu livro mais famoso (e extremamente popular na Alemanha até hoje, mesmo entre os que não leem poesia) chama-se Buch der Lieder, ou seja: livro das canções.

"Rising" está entre os poemas líricos que mais me emocionaram em 2009. Aqui poderíamos entrar noutra discussão: enquanto os poetas contemporâneos continuarem a repetir o mito romântico (e desesperado) da "poesia que não serve para nada", não vejo alternativas para obter um público leitor. A poesia obviamente é "inútil", como queria Paulo Leminski, se a pensamos no contexto utilitarista de um sistema capitalista e de uma sociedade de consumo. Mas isso não significa que a poesia não tenha várias possíveis e legítimas funções, funções que teve, de qualquer maneira, pelos séculos dos séculos. O medo do "subjetivo" e do "emocionado", que tanto se pregou a partir de João Cabral de Melo Neto e do grupo Noigandres, levado às últimas consequências e unido ainda a uma leitura tendenciosa do conceito de "função poética" de Jakobson, gera talvez esta situação em que nós poetas acabamos escrevendo textos que interessam apenas a outros poetas. Acaba por gerar, muitas vezes, manuais de instrução que interessam apenas aos técnicos, não aos usuários da poesia. Vida longa a nossos antilíricos, mas vida longa também a nossos líricos. Não é justamente a essa tradição que pertencem alguns dos mais belos poemas de Augusto de Campos, como o lindo "lygiafingers"? Se já não nos é dado escrever poemas cosmogônicos, aqueles que, nas sociedades descritas por Mircea Eliade e Ernst Cassirer, sustentavam o universo em seu eixo; se nos resta no entanto a poesia lírica, como muitos afirmam ser a única que nos resta (discordo), esta poesia teve funções desde sua origem, e não consigo pensar em honra maior, para um poeta, que a de emocionar seu leitor/ouvinte em um momento de necessidade. Mantendo, obviamente, uma escrita tesa, consciente da materialidade da linguagem (a completa, visual e sonora). Talvez possamos ser inúteis para a sociedade de consumo, sem, ao mesmo tempo, nos esquecermos de nossas funções milenares.



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