Comecei a trabalhar com vídeo em 2006. A ocasião fora casual: à época eu havia sido contratado como editor da revista Flasher, cargo que ocupei durante aquele ano até desentender-me est-É-ticamente com o financiador do projeto e afastar-me. Com excelentes câmeras à disposição, encontrando-me com artistas como Planningtorock, Casiotone for the Painfully Alone ou Ellen Allien em Berlim, Bat For Lashes, Tetine ou David E. Sugar em Londres, tive que aprender a manejar o equipamento, a usar programas de edição como o Final Cut.
Quase todas as narrativas sobre a gênese da videoarte relatam a maneira como artistas pobres da década de 60, sem dinheiro para comprar tela e óleo, começaram a experimentar com câmeras Super 8 que encontravam no lixo, por estarem já obsoletas. Sempre gostei muito desta História-estória, sobre este início casual para artistas como Joan Jones, Vito Acconci e tantos outros.
Assim, com aquilo que Pound dizia ser essencial para um jovem poeta (CURIOSIDADE), comecei em 2006 a fazer retratos-em-vídeo de amigos e amantes, e a filmar imagens para o que viriam a ser meus primeiros videopoemas e performances. No final daquele ano, seria contactado pela TV Cultura, mais precisamente pelo diretor do Programa Entrelinhas na época, o crítico Ivan Marques, para uma possível entrevista que conduziríamos e filmaríamos à distância, entre São Paulo e Berlim. Foi quando sugeri preparar algo de 7 minutos, algo nas linhas de uma "entrevista", o que acabou se transformando nos vídeos Garganta com texto (2006) e epic glottis (2006), que foram ao ar juntos em 20 de dezembro de 2006. Percebi que era a oportunidade perfeita para usar o trabalho com o vídeo e chamar a atenção para aquilo que começara a me obcecar naquele ano: a relação entre ESCRITA e ORALIDADE, Literatura e Performance. Naquele entusiasmo de poeta querendo quebrar barreiras, preparei o vídeo especialmente bombástico, em sentido positivo e também negativo, que é Garganta com texto. O vídeo é propositalmente provocativo em muitos aspectos. À época eu acreditava estar quase sozinho neste debate, e via ao redor a hegemonia do que me pareciam equívocos muito chatos, como os conceitos de "trans-historicidade" e "pós-utópico". Aos poucos começaria a descobrir e dialogar com os vários poetas brasileiros que mantinham e mantêm preocupações e questionamentos parecidos, como Ricardo Aleixo, Marcelo Sahea e outros.
Ricardo Domeneck. Garganta com texto: um oralfesto (2006).
Provavelmente, junto com meu ensaio "Ideologia da percepção", creio que o vídeo Garganta com texto é um dos meus trabalhos que mais geraram resistência e ao mesmo tempo criaram a "imagem" com que alguns acreditam poder "descrever" meu trabalho "em geral". Quando o vídeo foi mostrado na Espanha, também gerou algumas reações acaloradas de poetas-escritores espanhóis. Hoje em dia, eu entendo a resistência. O vídeo tem asserções bombásticas e complicadas. É por isso que passei a chamá-lo de oralfesto, para deixar claro que estou ciente de seu caráter belicoso e combativo, e, principalmente, dos problemas que isso gera no próprio debate com que eu queria colaborar ao fazer o vídeo. Talvez a parte que mais cause incômodo seja quando digo que "poesia não é literatura." Obviamente, eu teria evitado descontentes (e até mesmo, alas!, "ofendidos") se tivesse dito "Poesia não é APENAS Literatura", mas creio que muito do vídeo foi compreendido de forma errônea. Em primeiro lugar, ele foi julgado apenas por seu texto, como se fosse um texto publicado em um jornal... outros o julgaram como se fosse um poema escrito. O fato de que se tratava de uma defesa da oralidade e performance feita já em oralidade e performance foi geralmente ignorado. O vídeo deveria ser compreendido e julgado em seu contexto, como ele próprio defende, sendo como é uma tentativa de buscar uma forma de trabalho para o poeta que quer fazer o que diz, enquanto diz o que faz. Uma tentativa de unir o faber e o vates. Foi minha primeira ação em prol de uma crítica que veja a Literatura como uma das franquias possíveis da Poesia, e não o contrário. Isso, em minha opinião, faz uma diferença gigantesca em como lidamos com o trabalho poético contemporâneo, e responderia a tantos relatórios de catástrofe sobre o parco público-"leitor" (una a ele o público-"ouvinte" e a coisa muda muito de figura). Faço-me claro ou complico as coisas? O fato de que era uma intervenção televisiva também não deveria ser esquecido, mas o vídeo acaba julgado justamente pelos parâmetros que ele questiona e critica. Isso acontece muito com meu trabalho.
Sei que este meu primeiro vídeo tem muito de provocativo em seu entusiasmo juvenil. Não vou rejeitar o trabalho por estas características, já que o entusiasmo provocativo e juvenil também habita tantas coisas que admiro na poesia brasileira da década de 20 e da década de 50.
Mais "redondo" conceitualmente talvez seja o irmão deste vídeo, o que chamei de epic glottis (2006), um trabalho conceitual de que gosto muito ainda, e que se alinha de certa maneira ao meu mais recente The poor poet (after Carl Spitzweg), deste ano.
Ricardo Domeneck. epic glottis (2006).
O texto oralizado no vídeo por meus amigos alemães e ingleses aqui em Berlim (que não conhecem uma sílaba de português) é o terceiro fragmento do poema-em-série "Dedicatória dos joelhos", do meu segundo livro, a cadela sem Logos (2007):
falar hoje exige
elidir a própria
voz as transações
inventivas entre
interno e externo
demandam
que a base venha
à tona e a
superfície seja
da profundidade da
história ímpeto
denotando o
centrífugo
o corpo público
que exibo como
palco fruto
da ansiedade
do remetente
o interno ao longo
da epiderme
como emily
dickinson terminando
uma carta de minúcias
com "forgive
me the personality"
Ricardo Domeneck, a cadela sem Logos (São Paulo: Cosac Naify, 2007)
Fazer, dizer. Dizer o que faz, fazer o que diz.
§
§
§
A propósito, falando sobre vídeos de 2006, o paulista Donny Correia começou um novo blog chamado Mallarmidia - artexperience, mostrando o trabalho de artistas que transitam entre gêneros. Na semana passado ele mostrou vídeos da britânica Sam Taylor-Wood (n. 1967), uma de minhas artistas favoritas. Nesta semana, ele está mostrando um trabalho meu, uma das minhas pecinhas mais "minimalistas", chamada Eugen (2006), que começou como um vídeo-retrato e acabou sendo um tico de algo mais aos meus olhos. Gosto particularmente dele. Passem por lá para ver os trabalhos da Sam Taylor-Wood, onde está também este meu Eugen. Ele pediu que eu ajudasse a divulgar o blog, aqui está.
Ricardo Domeneck. Eugen (2006).
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Aos interessados, três de minhas entrevistas (excertos): com Ellen Allien, Casiotone For The Painfully Alone e com o duo Tetine:
Entrevista com Ellen Allien, excerto. Ricardo Domeneck, Berlim, 2006.
§
Entrevista com Owen Ashworth, mais conhecido como Casiotone For The Painfully Alone, excerto. Ricardo Domeneck, Berlim, 2006.
§
Entrevista com Bruno Verner e Eliete Mejorado, do Tetine, excerto. Ricardo Domeneck, Londres, 2006.
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