"Der arme Dichter" :::O poeta pobre::: (1839), de Carl Spitzweg.
Descobri há muitos anos o quadro de Carl Spitzweg (1808 - 1885), que ficou em minha memória como um favorito, uma daquelas imagens que nos acompanham. À época, muito jovem e com uma visão romantizada da vida dos poetas, recebi o quadro também como uma espécie de celebração do glamour de outsider do criador de poemas, toda aquela mitologia do gênio incompreendido. O quadro quase me parecia um trabalho proto-surrealista, pois em meu entusiasmo adolescente eu via aquele guarda-chuva flutuando no quarto, enquanto o poeta, pobre e faminto, escrevia um poema também a flutuar naquela tal de Beleza do Inefável, ainda que o seu corpo estivesse atado à mesquinhez cotidiana, econômica. Parecia-me uma imagem do poeta como ser mágico, sobrenatural. Não deixa de ser uma leitura possível. Hoje em dia, vejo o quadro como algo muito mais irônico e satírico, sem heroísmos ingênuos. Segue sendo, no entanto, um favorito.
No inverno passado, congelando em meu quarto aqui no Berlimbo, praguejando contra meu aquecimento a carvão, topei novamente com o quadro e me pareceu um momento mais que apropriado para justamente me apropriar dele, reencenando, como em uma poética da reconstituição, deformando-o e redirigindo-o para meus próprios propósitos.
Não vou me estender demais sobre sua composição, pois não quero cair na armadilha de acabar substituindo-o com um discurso que seja lido como sua exegese. Quando trabalho com vídeo, tento trabalhá-los de tal maneira que texto, voz e imagem se amalgamem. Não me interessam imagens que ilustrem um texto, nem um texto que descreva imagens. É, obviamente, um equilíbrio delicado e precário, e deixo que outros julguem se o consigo em um ou outro trabalho como este.
Uma decisão no entanto foi decisiva para a composição do texto: a escolha da língua. Algum tempo hesitei entre escrever o texto em português ou inglês. Houvesse optado pelo português, o texto e (consequentemente) o vídeo teriam sido outro. Em primeiro lugar, os versos alheios que deformei teriam vindo de brasileiros e talvez portugueses, o que teria gerado um texto-vídeo completamente distinto. A escolha dos poetas foi bastante pontual: não é acidental ou mero capricho que, tal qual o compus, os versos tenham vindo de autores como Maiakóvski e Oppen. Em português ou inglês, eu certamente teria usado a deformação do famoso título do poema de Maiakóvski ("Conversa sobre poesia com o fiscal de rendas”"), assim como a proposição de Wittgenstein ("A filosofia consiste em mostrar à mosca a saída da garrafa"). No entanto, teria substituído os versos de poetas ingleses e americanos pelos versos de portugueses e brasileiros. Sei com certeza que o lugar de George Oppen teria sido ocupado por Carlos Drummond de Andrade, pelas diversas coincidências entre eles: mesma geração (Drummond nasceu em 1902, Oppen em 1908), estreias próximas (Drummond em 1930, Oppen em 1934), mas, principalmente, pelo caráter político de suas personalidades, ambos militantes, Drummond como o autor de A Rosa do Povo (1945) e Oppen como autor de Of Being Numerous (1968), de onde retirei o verso a ser deformado em meu texto: "There is nobody here but us chickens", que se transforma em "There is nobody here but us kitchens" / "There is nobody here but us chicanos" / "There is nobody here but us Chechens".
Conversei com meu querido companheiro Fabiano Calixto sobre a ideia de uma "tradução" para o texto, mas seria um daqueles casos em que apenas uma "transcontextualização" seria satisfatória, como as que fiz de poemas de H.C. Artmann e o próprio Calixto fez com poemas de Allen Ginsberg, no caso deste texto substituindo as apropriações de versos de George Oppen, John Keats ou Gertrude Stein pelos de poetas lusófonos.
Aqui, meu caro leitor, você poderia perguntar: "Mas Ricardo, por que diabos você não o escreveu em português?"
A pergunta não é impertinente e sua resposta está ligada à natureza do vídeo em si.
Eu vivo há cerca de 10 anos fora do Brasil. Discutir o papel do poeta em sua comunidade, para mim, tem que passar pelo fato de que sou um poeta que vive fora de seu país, entre pessoas que não falam sua língua materna. Há vários fatores em jogo: honestamente, porque eu tenho um desejo legítimo de que o trabalho possa dialogar também com as pessoas com quem eu vivo, que não falam o português. Há trabalhos que eu componho para a minha comunidade linguística, e a maior parte do meu trabalho é composta em português. No entanto, o debate em que este meu vídeo se insere diz respeito também a outras comunidades, une-se a discussões que tenho travado também aqui na Europa, com poetas europeus e amigos íntimos, e a escolha do inglês acaba sendo prática e lógica.
Sei que ainda impera no Brasil a visão nacionalista que herdamos dos Românticos e dos Modernistas, mas qualquer um com uma visão mais plural da tradição da poesia sabe que foi muito comum, antes do Romantismo e da fundação do "mito" das "Literaturas Nacionais", que poetas compusessem em outras línguas. Ora, Camões e Gil Vicente escreveram em espanhol. Meu mestre Murilo Mendes escreveu um livro em francês e outro em italiano.
No entanto, minha grande referência, nesta discussão e em tantas outras, é o trabalho e contexto dos trovadores occitanos. Muitos deles compuseram em diversas línguas por uma questão bastante prática: porque alguns deles viajavam de corte em corte, de cidade em cidade e necessitavam portanto desta variedade de línguas. Eu creio que isso se tornará cada vez mais comum novamente, já que em muitos aspectos algumas características da poética medieval estão retornando, como a valorização do poeta ligado a uma comunidade e o retorno à voz como possibilidade de "publicação" no sentido mais amplo do termo.
Uma vez escolhido o inglês como língua para a composição do texto, isso teve consequências sobre a direção dele, fazendo com que não tanto as "finanças" como também a própria "cidadania" do poeta, seu papel na comunidade em que se insere, se tornasse um foco importante do trabalho. Daí minha discussão do poeta como meteco, esteja onde estiver, em sua terra ou no estrangeiro.
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5 comentários:
Ricardo: Que quadro lindo. E este jogo de sombra e luz!!! Olhei o poeta tendo em seu imaginário estas coisas que realmente, a ele, têm valor, e paradoxalmente as coisas práticas todas a fazer. Me intrigou bastante aquele pequeno violino de ponta cabeça, e o que possa estar na janela deste quarto, não consegui identificar bem. Queria ter esse quadro perto de mim, sinceramente, pelo quanto ele pode ser lido, relido, imaginado. Sei lá, acho que cada dia ele desenharia em minha mente idéias difusas, diferentes, contrárias, ricas em conteúdo. Ou seja, daria pano pra manga.
Eu que ando em contextos tóxico-pessoais, ambiente sem tantos contornos ( vide mundo eruditinho musical ou pessoas assim, com escolhas sem graça). Adoraria!!!
Pra esse estilo de vida, e são tantos com essa opção, esse quadro é meio que uma pancada, não é não? Quebra essa lógica. È quase uma ameaça a alguns pontos de vista.
Lógico, trazendo este quadro para um leitura pessoal e momentânea.
Por essa força, amei "o poeta pobre"
bjs, com carinho
Nora
Ricardo, acabo de olhar seu video, mas como vi sem som, não quero ainda comentá-lo. Embora já adiante que também adorei. Tá? Aqui em off. bjs
Torço pela transcontextualização feita pelo calixto!!!!
Nora, querida,
o quadro nunca me saiu da cabeca, desde a primeira vez que o vi. Sempre quis fazer algo baseado nele.
Obrigado pelo leitura!
Marcio,
isso é com o Calixto!
beijos
Ricardo
vou atormentar o calixto!!!
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