segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Eu, a exceção de teu et cetera

Andei revendo vários filmes de Almodóvar na companhia de Ivánova. Primeiro vimos Hable con ella (2002); algumas noites mais tarde, Todo sobre mi madre (1999); hoje à noite, Carne trémula (1997). Estes três filmes foram muito importantes para mim. Eu os vejo como uma trilogia. Talvez pudéssemos chamá-la de O Touro Ensandecido Não Investe Contra O Vermelho Mas Contra A Genitália Do Toureiro A Chacoalhar-se, ou talvez Como A Criança Que Espera Que A Boneca A Ame De Volta Já Dizia Rilke, ou, por fim, Das Dificuldades De Buscar Financiamento Para A Cura Da Epidemia De Si Próprio.

Etc, Etc, Etc.

Escrevi certa vez num poema em inglês e português:

"I
am the exception
of your etc."

ou

"Eu,
a exceção
de teu
et cetera."

Melhor disse Drummond, sobre aquela "sede tão vária / e esse cavalo solto pela cama / a passear o peito de quem ama."

Depois destes filmes, Almodóvar continuou fazendo trabalhos muitíssimo competentes, lindos até, mas a tensão espiritual (não sei chamar de outra coisa) que o afinava como um violino estressado naqueles três filmes não mais se repetiu, em minha opinião. Como poderia? Ninguém pode viver por muito tempo naquele estado.



Saio de filmes como este meio transtornado, e mal posso me recompor com as migalhas que sobram de mim no chão. Ah! O dia em que nem só de migalhas viverá o homem.

A água no peito, os pelos eretos, me ponho então a ler Hilda Hilst, Wislawa Szymborska, Diane di Prima. A escutar Dolores Duran, Maysa, Elis Regina, Ângela Ro Ro, Chavela Vargas. Como se isso pudesse acalmar alguém!

Assim deixo vocês, com algumas destas vontades, queridos. Que nos trema a carne todos os dias de nossa vida.

§



§

Cantiga para Nenê-X, por nascer
Diane di Prima, tradução de Ricardo Domeneck

Benzinho
quando rasgar-me por dentro
você encontrará
aqui uma poeta
não exatamente algo dos sonhos.

Não hei de prometer
que jamais conhecerá a fome
ou a depressão
neste globo
de vácuo
aos pedaços

Mas posso apresentar-lhe
nenê
o bastante que amar
para partir-lhe o peito
pelos séculos

(tradução de Diane di Prima)


Song for Baby-O, Unborn: Sweetheart / when you break thru / you´ll find / a poet here / not quite what one would choose. // I won´t promise / you´ll never go hungry / or that you won´t be sad / on this gutted / breaking / globe // but I can show you / baby / enough to love / to break your heart / forever

§



§

Fragmentos de um discurso ao FBI
Diane di Prima, tradução de Ricardo Domeneck

Ai vocês de borsalino ou impermeável dão testemunho
Dos dias fugidios, data & horário?
As viagens de metrô a amantes esquecidos
(Vocês em verdade os têm para sempre, identidade & 3x4?)
Os velhos números de telefone, cujo ritmo não mais
Canta por nós, descrições de carros há muito mortos?
Ai ternos cronistas de nossas vidas irisadas
Benditos obreiros no arquivo labiríntico
Querubins gravadores que relegarão ao fogo
Identidade & formulário, papéis e corpo enquanto nós
Ascendemos em cânticos acima das árvores

(tradução de Ricardo Domeneck)


Fragmented Address to the FBI: O do you in fedora or trenchcoat bear record / Of the elusive days, date & hour / The subway journeys to forgotten loves / (Do you indeed have them forever, name & picture) / The old phone numbers, whose rhythm no longer / Sings for us, descriptions of long dead cars? / O gentle chroniclers of our rainbow lives / Blessed laborers in the labyrinthine archive / Recording angels who will consign to fire / Name & form, body & papers while we / Rise singing above the trees

§


Pequena Nota sobre a Dispersão da Língua
Diane di Prima, tradução de Ricardo Domeneck

uau cara eu disse
quando você inclinou meu queixo e nutriu
de cabeça em cuspe a libação de minha língua em fluidos

e uau cara eu disse quando caímos nos trapos e espuma
e uau era a aurora: nós fervemos os cafezais
numa panela batida

uau cara eu disse o dia em que caí de sua graça
(apenas o tom foi outro)
uau cara uai uau eu colhi meu pente
e meus dois livros e sumi e pronto e acabou



Short Note on the Sparseness of the Language: wow man I said / when you tipped my chin and fed / on headlong spit my tongue´s libation fluid // and wow I said when we hit the mattressrags / and wow was the dawn: we boiled the coffeegrounds / in an unkempt pot // wow man I said the day you put me down / (only the tone was different) / wow man oh wow I took my comb / and my two books and cut and that was that

§



§

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

(Hilda Hilst, Do desejo, 1998)

§

Amor à primeira vista
Wislawa Szymborska, tradução de Júlio Sousa Gomes


Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.

Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram —
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
— mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.

Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.

Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.

Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?

Punhos de poeta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.

§§§

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