quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Um filme sobre a escrita e sobre o silêncio de Friederike Mayröcker



Fui ontem ao cinema com minha querida Odile Kennel, para a pré-estreia do filme Das Schreiben und das Schweigen (A escrita e o silêncio), de Carmen Tartarotti, feito ao longo de dois anos de entrevistas e filmagens com a poeta austríaca Friederike Mayröcker, nascida em Viena em 1924. Mayröcker é frequentemente descrita como a Grande Dama da Poesia Germânica Contemporânea, e é um dos meus poetas favoritos ainda vivos neste espaço linguístico.

O filme é bastante delicado ao adentrar a casa e a intimidade da poeta octogenária, e trata-a com grande respeito, sem tentar exotizá-la ou exagerar as idiossincrasias que ela inegavelmente tem. Vivendo em um velho apartamento vienense, reclamando do exagero de sol em Viena (!!!), é engraçado observar o caos de papéis por todos os lados.



Trailer (bastante minimalista) do filme Das Schreiben und das Schweigen, sobre Friederike Mayröcker.


O filme é também muito terno ao tratar de sua relação com o poeta Ernst Jandl (1925 - 2000), seu finado marido. Jandl e Mayröcker formaram um dos mais famosos casais de poetas dos países germânicos, mas sem as tragédias, por exemplo, de um casal como Ted Hughes e Sylvia Plath. Na verdade, Ernst Jandl e Friederike Mayröcker foram abençoados com aquele mistério cósmico do amor correspondido, e foram poetas que viveram felizes, mesmo que não para sempre, já que Jandl infelizmente faleceu já há uma década. O único sofrimento que ela descreve no filme foi o do ostracismo que eles sofreram como poetas no início de suas carreiras. Isso, no entanto, é realmente passado. Os dois são hoje nomes importantíssimos e reconhecidos. Ainda que Friederike Mayröcker ainda seja considerada por muitos uma poeta hermética e difícil, Ernst Jandl tornou-se, ao lado de Erich Fried, um dos poetas mais populares da língua, especialmente por sua pesquisa no campo da poesia sonora.


Vídeo em que Ernst Jandl vocaliza seu famoso poema sonoro "schtzngrmm".


Abaixo, deixo vocês com a postagem sobre Friederike Mayröcker que preparei para a Modo de Usar & Co.. É hora do Brasil também descobrir esta Grande Dama da Poesia Contemporânea, germânica e mundial.


Friederike Mayröcker nasceu em Viena, Áustria em 1924. Seus primeiros textos publicados surgiram na revista Plan, a partir de 1946. Manteve um diálogo com os poetas do Grupo de Viena mas não se filiou ao grupo. Conhece em 1954 o poeta Ernst Jandl, com quem viveria até a morte deste no ano 2000. Seu trabalho afasta-se muitas vezes da sintaxe normativa. Alguns de seus livros de poemas mais importantes são Tod durch Musen (1966) e Winterglück (1985). Está entre os poetas vivos mais respeitados da língua, e recebeu o prestigioso prêmio Georg Büchner em 1991. A editora Suhrkamp publicou seus Poemas Reunidos (Gesammelte Gedichte) em 2004. Friederike Mayröcker vive em Viena.




Às vezes por quaisquer movimentos
acidentais
roça minha mão sua mão o dorso de sua mão
ou meu corpo enfiado em roupas encosta-se quase sem saber
um piscar-de-olhos em seu corpo de roupa
estes minúsculos movimentos quase vegetais
seu olhar de ângulos e suas pupilas de propósito
vagam no vazio
sua pergunta logo de início interrompida aonde você
viaja no ver
ão
o que você está lendo
atravessam-me o peito em cheio
e através da garganta como uma doce faca
e eu resseco por completo como um po
ço num verão escaldante


Manchmal bei irgendwelchen zufälligen
bewegungen

streift meine Hand deine Hand deinen
Handrücken
oder mein Körper der in Kleidern steckt lehnt fast ohne es zu wissen
einen Augenblick gegen deinen Körper in Kleidern
diese kleinsten beinahe pflanzlichen Bewegungen
dein abgewinkelter Blick und dein Auge absichtlich ins Leere
wandernd
deine im Ansatz noch unterbrochene Frage wohin fährst du im Sommer
was liest du gerade
gehen mir mitten durchs Herz
und durch die Kehle hindurch wie ein süszes Messer

und ich trockne aus wie ein Brunnen in einem heiszen Sommer


§§§


a uma papoula em meio à urbe

de meus crânios brota
a pirotecnia das lágrimas, o
lilás enferruja-se, o ligustro
sopra, a camuflagem do verão sugere temporais -
coroa-de-espinhos fecunda o campo, os
estorninhos caem, mosquitos
zunem em meio às sar
ç
as, a
florada murcha duma
nuvem coroada de cerejas
esverdilhas -
incluindo heráldicas águias-bicéfalas
em relevo - retratos em cerâmica rubra - esfarela-se
o muro do cemitério
apoiado apenas na sempre-viva
hera -
ao vento vertical quilhágil
páira
meu peito falconiforme a pupilar presas

an eine Mohnblume mitten in der Stadt

aus meinen Köpfen sprieszt
das Feuerwerk der Tränen, der
Flieder rostet, der Liguster
weht, die Camouflage des
Sommers läszt Gewitter ahnen -
Wolfsmilch besamt die Flur, die
Stare fallen, Mücken
flirren im Dorngebüsch, das
abgewelkte Blühen einer
Wolke von erbsengrüner Kirschenfrucht
gekrönt -
samt aufgeprägten kaiserlichen
Doppeladlern - Portraits auf roten Ziegeln - bröckelt
die Friedhofsmauer ab
gestützt nur noch von immergrünen
Efeuranken -
im Aufwind flügelschlagend
steht
raubvögelgleich mein Herz nach Beute äugend


§§§


Preferível viajar no pensamento, Hokusai
às costas, ou sob a lâmpada,
caminhar ao pé do Fuji e lançar o olhar
sobre o pico nevado, as sete-léguas
molhadas, geladas, a gola enrugada.
Como, eu pergunto, exploração duma distância
com os próprios pés, como, eu pergunto, experiência duma distância
com os próprios olhos. Como conciliar sede da distância
com sedentariedade. Como, pés e olhos,
tristeza e vontade.


Lieber in Gedanken reisen, Hokusai
auf dem Rücken, oder unter der Lampe,
laufen zu Füszen des Fuji und blicken hinauf
zu verschneiter Spitze, die Schnürstiefel
feucht und kalt, die Halskrause welk.
Wie, frage ich, Erkundungen einer Ferne
mit den eigenen Füszen, wie, frage ich, Erfahrungen einer Ferne
mit den eigenen Augen. Wie Sehnsucht nach Ferne
mit Seszhaftigkeit vereinen. Wie, Fusz und Auge,
Träne und Lust.

§§§


Lobo / como um lobo / ele diz


lobo como um lobo você
ficou cara e focinho de lobo pen-
sativo e inclinada a cabeça, cabeça
da matilha
, a imagem gerou sua
metamorfose em lobo também dissolvido, não
tanto loba, lobo! também irmão irmão qual lobo,
lebréu, sentado com a cabeça inclinada
sobre o peito, um lobo não sei
pareado com corpulência
felpuda-pensativa (longânima?) cabeça: peso
peludo suspenso, lupina-
mente você olha você senta-se um tanto
corcunda lupina a nitidez!, e
impiedoso a tremer ossos enlutado
de sulcos, isto fez de mim também todo
extinto
,


Wolf / wie ein Wolf / sagt er

Wolf wie ein Wolf du siehst
darauf aus wie ein Wolf nach-
denklich mit gesenktem Kopf, Kopf-
tier, das Bild hat dich in einen
Wolf verwandelt auch aufgelöst, nicht
so sehr Wölfin, Wolf! auch Bruder Bruder Wolfs-
hund, mit dem Kopf auf die Brust
gesenkt sitzend, ein Wolf ich weisz
nicht gepaart mit struppig-nachdenklicher
Korpulenz (nachsichtig?) Kopf : behaartes
Gewicht nach unten, wolfs-
mäszig du siehst du sitzt ein wenig
zusammengesunken wölfisch die Schärfe!, und
gnadenlos knochenschüttelnd von Gullies
umflort, das hat mich auch ganz
verstorben,


Poemas de Friederike Mayröcker, traduções de Ricardo Domeneck.

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.
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2 comentários:

marcelo sahea disse...

Já reparou, Domeneck, que o timbre da voz de Mayröcker lembra muito o timbre da voz de Jandl (que me lembra o timbre da voz de Vinícius)? Adoro quando a convivência (com amor, porque não?) faz com que nos contaminemos um do outro. Abreijos!

Ricardo Domeneck disse...

Sahea,
não tinha pensado nisso, especialmente a comparação com a voz do Vinícius, mas é muito bonito pensar em como passamos a falar parecidos quando vivemos juntos com alguém.
Achei um vídeo do Jandl vocalizando um de seus poemas e coloquei lá.
beijo grande
Domeneck

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