Em 2008, quando a língua portuguesa foi o foco do Festival de Poesia de Berlim, com poetas do Brasil, Portugal e países lusófonos da África, alguns de nós fomos convidados a gravar poemas para o portal Lyrikline, que se dedica a registrar leituras de poemas nas próprias vozes de seus autores, armazenando ainda traduções para os textos em várias línguas. Pediram que selecionássemos poemas que tinham pelo menos tradução para o alemão, por isso concentrei-me em poemas do livro Carta aos anfíbios (2005) e do livro a cadela sem Logos (2007), mas incluí alguns inéditos que tinham sido traduzidos especialmente para o festival. Entre eles, havia dois poemas que naquela época eram importantes para mim, pois eu sentia neles uma espécie de momento de transição no meu trabalho. As obsessões estavam todas ali, mas surgindo de outra forma. Um deles alguns de vocês talvez conheçam, chama-se "Mula", foi publicado no primeiro número impresso da Modo de Usar & Co., e já foi também lindamente musicado/vocalizado pelo duo Tetine:
"Mula" (2007)
Texto de Ricardo Domeneck.
Voz e composição do Tetine.
Vídeo de Eugen Braeunig.
O outro poema chama-se "Texto em que o poeta medita sobre a fuga inexequível da História como turista em Budapeste, Hungria", e é quase exagerado na forma como tentei concentrar nele toda a minha obsessão com a historicidade poética. Iniciei-o mesmo em Budapeste, quando lá estive em 2007, apresentando-me como DJ. Fiquei alguns dias na cidade, lendo seus poetas (como Miklos Radnóti), perambulando, escrevendo. Tem muitas das características dos poemas do livro Sons: Arranjo: Garganta (2009), a composição e encadeamento altamente paratáticos, o sequestro de elementos da tal de Cultura, seja pop ou não, mas da mesma maneira que um poeta romântico do século XIX teria usado a tal de Natureza. Não é apenas um poema sobre a historicidade poética. É um poema à historicidade poética, ante a historicidade, até a historicidade, após a historicidade, com a historicidade, mesmo contra a historicidade, mas também da historicidade, desde a historicidade, na historicidade, entre a historicidade poética e algo outro, para a historicidade, perante a historicidade, pela historicidade, sob a historicidade, sobre a historicidade, atrás/de trás/por trás da historicidade poética. Só uma preposição fica de fora: sem. É tudo que depende da historicidade (saravá Walter Benjamin!), mas nunca sem ela. Não é composto por metáforas... é composto por figuras, na minha leitura pessoal do conceito da teologia cristã. Como já tentei elaborar em vários artigos e aqui o repito: conceito de figura, em minha pesquisa por uma poesia que se faz consciente de sua historicidade, FIGURA, não metáfora, talvez funcionando como metonímia, sinédoque talvez?, FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento que revelaria seus significados. Dito tudo isso, abaixo você tem meu poema irritante para os que já estavam irritados; porque talvez não entendam ou reconheçam minhas figuras; talvez porque acham que estou apenas name dropping para ser pop. Sei que é irritante para qualquer leitor ter que ficar googlando nomes ou fatos para "entender" algo. Compreendo, aceito. Evito quanto posso. Mas não há certas coisas que a poesia nos ajuda a descobrir? Nos ajuda a passar a saber? Este poema, por exemplo, utiliza uma figura bastante específica ao final: a da morte do poeta húngaro Miklos Radnóti. Utiliza vários elementos biográficos e poéticos, por exemplo com o fim (a morte) de Radnóti, que foi fuzilado por nazistas em 1944, mais tarde reconhecido, ao ser exumado, por encontrarem no bolso de sua camisa seus últimos poemas, ligando-o figurativamente ao fim do poema "A step away from them", de Frank O´Hara; conectando, em arco histórico, Joaquim de Sousândrade e Federico García Lorca como poetas nova-iorquinos; não são metáforas, são figuras. Ao mesmo tempo, questiono nossa composição narrativa para a História, ao unir o Twin Peaks (1990), de David Lynch, ao imperador Xerxes I da Pérsia, Heródoto e as graphic novels. O poema talvez seja difícil, chato, peço perdão por isso, mas não peço desculpas. Beijo em vossas almas por vossa paciência com minhas ladainhas. Eis o poema:
Texto em que o poeta medita sobre a fuga inexequível da História como turista em Budapeste, Hungria
Oblivion não
me assusta,
Claudette Colbert.
Evito praticar o
nado-sincronizado
no formol das evidências
fotográficas de
moi-même & myself.
Se possuísse na geografia
residência fixa em Twin Peaks,
sei que talvez os tupiniquins
elegessem os tons e timbres
de minha sinfonia de ossículos
para martelo, bigorna e estribo:
echolalaica
do silenciável
se a alfândega
rege as adegas
da anomalia.
Meus autobiógrafos
impossibilitados de
narrar meu martírio
em Montmartre,
como não houve
sobreviventes
com meu nome
em Guernica
ou Treblinka.
Em meio à hipoteca
dos meus despejos
não invoco
Hiroshima mon glamour.
Escuta aqui, Titanic:
tão Aristóteles quanto
Heródoto ou aritmético
o erótico,
todo mundo
sabe que o manual
de dança
conspira pelo decreto
dos pés
como obsoletos.
Não venha
mimetizar-me o miasma.
Qualquer Xerxes
a chicotear o mar
sabe que o olvido de Myrna Loy
não é o ouvido de Mina Loy
e Góngora não serve gôndolas
a canais de televisão, jornais
vespertinos em dia
crônico do hodierno
se é
hipótese a manhã.
Tal qual
este planeta
que aceita satélites
ou ser terceiro
em relação
a um sol
localizável mesmo
em seu espiralar
de eixo,
que não
pausa a cada
0:00
ou advoga o
stand by
do meu sono.
Buda não
é Manhattan,
feito aquele Guesa
em vertigem no Stock
Market ou Lorca
histérico no Harlem.
Narrar o passado
é tal ginástica odisséica,
& ! que ginga, que físico
deste acrobata do empírico.
Eu aceito, sim, da totalidade
o resquício, poderia escrever
sobre Nova Iorque,
Manaus ou Poughkeepsie
mas nunca o pús nos pés
lá, isto aqui é Budapeste,
não as Ilhas Mauritius.
Hoje, ou em 1956, jamais
corresponder-se-ia
como os Poems
by Pierre Reverdy
no bolso de O´Hara,
então aceito a ladainha
da lingueta sem chave
à resistência da História
e a cartografia
inelegível, o mundo.
Sim, Budapest não é New York
& meu miocárdio está no bolso:
pocket book de Miklos Radnóti.
.
.
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Mais ou menos de mim
Projetos Paralelos
Leituras de companheiros
- Adelaide Ivánova
- Adriana Lisboa
- Alejandro Albarrán
- Alexandra Lucas Coelho
- Amalia Gieschen
- Amina Arraf (Gay Girl in Damascus)
- Ana Porrúa
- Analogue Magazine
- André Costa
- André Simões (traduções de poetas árabes)
- Angaangaq Angakkorsuaq
- Angélica Freitas
- Ann Cotten
- Anna Hjalmarsson
- Antoine Wauters
- António Gregório (Café Centralíssimo)
- Antônio Xerxenesky
- Aníbal Cristobo
- Arkitip Magazine
- Art In America Magazine
- Baga Defente
- Boris Crack
- Breno Rotatori
- Brian Kenny (blog)
- Brian Kenny (website)
- Bruno Brum
- Bruno de Abreu
- Caco Ishak
- Carlito Azevedo
- Carlos Andrea
- Cecilia Cavalieri
- Cory Arcangel
- Craig Brown (Common Dreams)
- Cristian De Nápoli
- Cultura e barbárie
- Cus de Judas (Nuno Monteiro)
- Damien Spleeters
- Daniel Saldaña París
- Daniel von Schubhausen
- Dennis Cooper
- Dimitri Rebello
- Dirceu Villa
- Djoh Wakabara
- Dorothee Lang
- Douglas Diegues
- Douglas Messerli
- Dummy Magazine
- Eduard Escoffet
- Erico Nogueira
- Eugen Braeunig
- Ezequiel Zaidenwerg
- Fabiano Calixto
- Felipe Gutierrez
- Florian Puehs
- Flávia Cera
- Franklin Alves Dassie
- Freunde von Freunden
- Gabriel Pardal
- Girl Friday
- Gláucia Machado
- Gorilla vs. Bear
- Guilherme Semionato
- Heinz Peter Knes
- Hilda Magazine
- Homopunk
- Hugo Albuquerque
- Hugo Milhanas Machado
- Héctor Hernández Montecinos
- Idelber Avelar
- Isabel Löfgren
- Ismar Tirelli Neto
- Jan Wanggaard
- Jana Rosa
- Janaina Tschäpe
- Janine Rostron aka Planningtorock
- Jay Bernard
- Jeremy Kost
- Jerome Rothenberg
- Jill Magi
- Joca Reiners Terron
- John Perreault
- Jonas Lieder
- Jonathan William Anderson
- Joseph Ashworth
- Joseph Massey
- José Geraldo (Paranax)
- João Filho
- Juliana Amato
- Juliana Bratfisch
- Juliana Krapp
- Julián Axat
- Jörg Piringer
- K. Silem Mohammad
- Katja Hentschel
- Kenneth Goldsmith
- Kátia Borges
- Leila Peacock
- Lenka Clayton
- Leo Gonçalves
- Leonardo Martinelli
- Lucía Bianco
- Luiz Coelho
- Lúcia Delorme
- Made in Brazil
- Maicknuclear de los Santos Angeles
- Mairéad Byrne
- Marcelo Krasilcic
- Marcelo Noah
- Marcelo Sahea
- Marcos Tamamati
- Marcus Fabiano Gonçalves
- Mariana Botelho
- Marius Funk
- Marjorie Perloff
- Marley Kate
- Marília Garcia
- Matt Coupe
- Miguel Angel Petrecca
- Monika Rinck
- Mário Sagayama
- Más Poesía Menos Policía
- N + 1 Magazine
- New Wave Vomit
- Niklas Goldbach
- Nikolai Szymanski
- Nora Fortunato
- Nora Gomringer
- Odile Kennel
- Ofir Feldman
- Oliver Krueger
- Ondas Literárias - Andréa Catrópa
- Pablo Gonçalo
- Pablo León de la Barra
- Paper Cities
- Patrícia Lino
- Paul Legault
- Paula Ilabaca
- Paulo Raviere
- Pitchfork Media
- Platform Magazine
- Priscila Lopes
- Priscila Manhães
- Pádua Fernandes
- Rafael Mantovani
- Raymond Federman
- Reuben da Cunha Rocha
- Ricardo Aleixo
- Ricardo Silveira
- Rodrigo Damasceno
- Rodrigo Pinheiro
- Ron Silliman
- Ronaldo Bressane
- Ronaldo Robson
- Roxana Crisólogo
- Rui Manuel Amaral
- Ryan Kwanten
- Sandra Santana
- Sandro Ornellas
- Sascha Ring aka Apparat
- Sergio Ernesto Rios
- Sil (Exausta)
- Slava Mogutin
- Steve Roggenbuck
- Sylvia Beirute
- Synthetic Aesthetics
- Tazio Zambi
- Tetine
- The L Magazine
- The New York Review of Books
- Thiago Cestari
- This Long Century
- Thurston Moore
- Timo Berger
- Tom Beckett
- Tom Sutpen (If Charlie Parker Was a Gunslinger, There'd Be a Whole Lot of Dead Copycats)
- Trabalhar Cansa - Blogue de Poesia
- Tracie Morris
- Tô gato?
- Uma Música Por Dia (Guilherme Semionato)
- Urbano Erbiste
- Victor Heringer
- Victor Oliveira Mateus
- Walter Gam
- We Live Young, by Nirrimi Hakanson
- Whisper
- Wir Caetano
- Wladimir Cazé
- Yang Shaobin
- Yanko González
- You Are An Object
- Zane Lowe
Arquivo do blog
-
▼
2010
(139)
-
▼
outubro
(14)
- Nestes tempos tão difíceis, eu confesso tão-soment...
- Texto gentil de Sylvia Beirute, e pequena seleção ...
- Privados de Wilde, providos de Fry
- Amigos fotógrafos e suas publicações recentes: Ter...
- Amigos fotógrafos e suas publicações recentes: Seg...
- Amigos fotógrafos e suas publicações recentes: Pri...
- Seguindo com a última postagem, retorno à série DA...
- Aniversário do Moço e Milésimo Centésimo Quadragés...
- Poeminha recentíssimo, bem cheio de adjetivos, mas...
- Um filme sobre a escrita e sobre o silêncio de Fri...
- Uma performer islandesa na SHADE inc: Berglind Ágú...
- Um brasileiro em uma bienal internacional de poesia
- Poema inédito em livro, com título longuíssimo e t...
- Apropriação e paródia: postagem ilustrativa
-
▼
outubro
(14)
5 comentários:
Curti!
Meu caro,
então o poema já valeu!
Obrigado.
abraço
Ricardo
olá Ricardo D.
TUDO BEM?
"mula" é excelente!
parabéns! Mas o meu preferido é PEQUENO ESTUDO SOBRE OS CIÚMES.
Abraço metafórico
ADEILTON OLIVEIRA
olá Ricardo D.
TUDO BEM?
"mula" é excelente!
parabéns! Mas o meu preferido é PEQUENO ESTUDO SOBRE OS CIÚMES.
Abraço metafórico
ADEILTON OLIVEIRA
Obrigado, Adeilton!
abraço
Ricardo
Postar um comentário