sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Nestes tempos tão difíceis, eu confesso tão-somente ter mais perguntas a oferecer.

Faz dias que venho tentando terminar um artigo que deveria se chamar "Para que poetas em tempos de eleição?", no qual queria expor e compartilhar com vocês alguns dilemas pessoais, e minhas meditações muito individuais sobre o papel do poeta em um momento tão conturbado como este. Apesar de viver há tantos anos na Alemanha, muito longe, tenho acompanhado as campanhas presidenciais e me perturbado muito com os discursos em andamento hoje no Brasil. Ao mesmo tempo, parece-me um momento histórico incrivelmente interessante, que dá sinais de ver ressurgirem trincheiras ideológicas que há muito acreditavam-se mortas.

Não pude terminar o artigo, por um motivo muito simples: não consegui chegar a uma conclusão satisfatoriamente responsável para reabrir este debate sobre o papel do poeta em sua comunidade, sem acabar meramente repetindo-me. Não se trata, vejam bem, de tomar partido, e não estou me referindo a apoiar publicamente um ou outro candidato. Há uma diferença gigantesca entre tomar partido e tomar posição. Estas eleições me lançaram em uma meditação que me ocupou muito nas últimas semanas, sobre as possibilidades de agir de maneira prática em um momento histórico que testemunha a linguagem, em sua manifestação física como Língua Portuguesa, sendo continuamente dobrada, distorcida, borrada e abusada para enganar, mentir e ludibriar, com o que vou ousar chamar de "crimes de linguagem" dos dois lados do debate, tanto pelos membros do Partido da Social Democracia Brasileira, como pelos membros do Partido dos Trabalhadores. Além deles, as imposturas pouco éticas da imprensa, também dos dois lados do espectro ideológico. Em meio a isso tudo, refletindo-o e piorando-o, as manifestações assustadoras de machismo, racismo e homofobia de vários setores da sociedade brasileira nos últimos meses, sua regressão política, e a tentativa deselegante de usar um debate ético e religioso tão sério como o da legalidade do aborto para ganhar votos. Aconteça o que acontecer neste domingo, se um dos candidatos for eleito através desta estratégia político-ideológica, isso significará uma vitória do obscurantismo sobre a democracia brasileira.

Mallarmé escreveu que o poeta é aquele que mantém puras as palavras da tribo. Pound, por sua vez, falou sobre "the tale of the Tribe", o que lança ainda mais importância sobre a historicidade da poesia como narrativa de sua comunidade. Contrapondo-se a eles, penso em uma mulher tão importante como Clarice Lispector, que, em sua famosa entrevista à TV em 1977, respondeu que o papel do escritor brasileiro naquele momento era "falar o menos possível". Vale lembrar que a entrevista, de uma lucidez incrível, ocorre em plena ditadura, naquele momento com Ernesto Geisel no Palácio do Planalto.

Se o poeta é o artista que usa a linguagem como matéria de composição primordial, linguagem e língua que compartilha com sua comunidade, como reagir aos abusos de linguagem espalhados pela imprensa, pela oposição ao governo e pelo próprio Governo? Como poeta, como reagir aos abusos de linguagem do presidente da República e também dos de seus opositores?

Minha única certeza, uma certeza pessoal, individual, particular, que não pretendo estender a nenhum outro poeta, é que, seja Dilma Rousseff ou José Serra o novo presidente da República, pretendo ser oposição a ele ou ela em todo e qualquer momento em que, seja ou não a autoridade máxima do país, incorra neste abuso imperdoável da linguagem para distorcer e aproveitar-se, como temos assistido nos últimos meses.

Além dessa certeza, tenho apenas perguntas, meus caros.

Estas perguntas formaram no ano passado, quando comemorou-se aqui em Berlim o vigésimo aniversário da queda do Muro, um texto que intitulei "A educação dos cívicos sentidos" (2009), que usa este jogo de homofonia com o título do livro de Haroldo de Campos, A educação dos cinco sentidos (1985), para a partir disso entregar-se a algumas perguntas e polemizar mais uma vez com o poeta paulistano e sua posição est-É-tica da década de 80, o autor, que respeito muitíssimo, que viria a embasar ideologicamente, com seus conceitos questionáveis (tão equivocados a meu ver) de "trans-historicidade" e "pós-utópico", as certezas ao mesmo tempo arrogantes e preguiçosas do absenteísmo público de tantos poetas brasileiros dos últimos 25 anos.

É com estas perguntas que encerro esta postagem, junto de um "vídeo" improvisado para poder participar com minha intervenção à distância de uma mesa de debates na Casa das Rosas, em 2009.

Volto apenas na semana que vem, quando já teremos um novo ou nova presidente. Se os discursos apocalípticos de ambos os lados estiverem certos, um erro na urnas poderá nos levar a uma catástrofe. Gostaria de ter mais certeza sobre o que se pode esperar de um poeta em meio a uma catástrofe social e política nos dias de hoje. Mas para isso preciso seguir meditando, até quem sabe poder terminar o artigo que gostaria de ter publicado aqui e não pude.

Destarte, eis as inúmeras perguntas da minha own private educação dos cívicos sentidos:





A educação dos cívicos sentidos (texto em vídeo)
Ricardo Domeneck



Aos vinte anos da queda do muro, a oportunidade de meditar sobre dualismos que ainda imperam? Num momento que se gaba de suas multiplicidades? Essa queda marca a ascensão do Império sob o qual nos movimentamos hoje? Opera esse Império através da língua do poema de Yeats? "On being asked for a war poem"? O poeta que escreveu "I think it better that in times like these / A poet keep his mouth shut" é o mesmo que escreveu "Easter, 1916"? Ou este poeta acreditava que a política pertence aos políticos, não aos poetas, e por isso se fez senador? O papel do poeta seria mesmo o de emocionar moçoilas e consolar velhinhos? O silêncio proposto por Yeats é o mesmo de Clarice Lispector que, em lhe sendo pedido o papel do escritor brasileiro, respondeu: "falar o menos possível"? O silêncio dos dois equipara-se ao de George Oppen? Aquele que parecia também crer que poesia e política são incompatíveis? É isso o que dizia a personagem de Glauber Rocha em Terra em Transe? A poesia e a política são demais para um único ser humano? É por isso que Oppen abandona a poesia por vinte anos para dedicar-se ao ativismo político? Ninguém aqui, além de nós, as galinhas? O poeta está ofendido? O poeta é inofensivo? Você teria coragem de dizer isso a Ossip Mandelshtam, que morreu na Sibéria por causa de um poema? Você é pós-utópico? Se o é, você é também trans-histórico? Que dia é hoje no seu poema? Você também acredita que a vanguarda foi apenas um afrodisíaco para a tradição? Escrever sonetos ou concretos tem implicações políticas? Política é conteúdo ou política é forma? Essa pergunta é a mesma se mudarmos o substantivo "política" pelo substantivo "poética"? Talvez a ética da escrita configure-se nesta resposta? Mais radical o silêncio ativista de George Oppen ou o ativismo em voz alta de Ulrike Meinhof? Também te perturba imaginar esta escritora pacifista tornando-se uma das líderes da Facção do Exército Vermelho? O que leva um poeta a decidir que palavras não bastam? O que leva uns a recorrerem a poemas (como Murilo Mendes), uns ao Senado (como W.B. Yeats), outros à organização de greves (como George Oppen) e outros ainda à luta armada (como Ulrike Meinhof)? A poesia silencia diante do mundo dos eventos? Poesia pura é ativismo e resistência? O que diabos queria dizer Adorno com a impossibilidade de escrever poesia após Auschwitz? Você esteve em Búzios hoje? Você já saqueou Celan esta semana? Insistir na inutilidade da poesia como única forma de resistência? Poesia resistência? A negação do caos presente pela nostalgia da Idade de Ouro de um passado mitificado? Ou a negação do caos presente pela invocação da parúsia, da revolução? Resistência pela negação e não-participação, como queria Theodor Adorno no ensaio “Lírica e sociedade”? Lorca foi mesmo assassinado como poeta lírico, ou foi o dramaturgo dissidente e inimigo dos valores de direita que os fascistas precisaram silenciar? Há diferença entre o Lorca do Romanceiro Gitano e o Lorca de A Casa de Bernarda Alba? Você simpatiza com a revolução? Você está sendo filmado? Você já confundiu o espaço público com seu espaço privado hoje? Vladimir Maiakóvski encontra Ezra Pound contra a usura? Oh 1930s, with Usura hath no man a house of good stone? Oh 1960s, with Capitalism hath no man a house? Oh 2000s, with Globalization hath no man a no? O que Ludwig Wittgenstein queria realmente dizer ao afirmar que ética e estética são uma só? Quando um poeta levanta-se da cama pela manhã, ele reencena diariamente o “salto participante” proposto por Décio Pignatari? À direita ou à esquerda, de que lado está o poeta, e isto define se é político ou não? Estava sendo político o cavalier Richard Lovelace ao escrever o poema lírico “To Althea, from Prison”? Como Tomás Antônio Gonzaga escrevendo a segunda parte de “Marília de Dirceu” na prisão? Ou são mais políticas as Cartas Chilenas? Oh Shelley, ninguém quer reconhecer tua legislação mundial? Quem inaugurou o poeta-Cassandra? “L`Albatros” himself, Baudelaire? Rimbaud, o desajustado? O adolescente loiro? O amante de Verlaine? O contrabandista de armas na África? É mais político oralizar estas perguntas ou publicá-las em escrita? Em que momento o poeta exila-se ou é expulso da República? Em que momento o poeta épico deixa de fundar a nação para fundi-la e findá-la? O planalto central do Brasil desce em escarpas abruptas? Você gostaria de ser o Maudsley dos nossos crimes nacionais? Te aborrece tudo quanto seja público? Você estampa teu miocárdio privado em cada muro público? Gregório de Matos entoando “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante / Estás e estou do nosso antigo estado!”? Ou seu racismo na estrofe seguinte anula o ato? Tristan Tzara, Hans Arp e Hugo Ball entoando DADA em atas estavam uivando pela utopia ou destoando da distopia? A política do poeta está no questionamento formal? Ou seria melhor discutir os suportes para a poesia, como métodos de publicação e distribuição e financiamento? Tudo isso tem implicações, como querem os poetas da revista L=A=N=G=U=A=G=E? Onde te ocultas, precária síntese, penhor do meu sono, luz dormindo acesa na varanda? Poeta bom é poeta morto? Poeta bom é poeta universal? Ou mulher escreve como mulher, viado como viado, negro como negro, macho como macho? Você é um poeta aristocrático? Que ação nos é possível? Mas, ora, escrever poesia já não é ativismo e resistência? The poet cannot set a statesman right mas pode dificultar-lhe os abusos? Você já leu os jornais hoje? Você traduz "news that stays news" por "novidade que permanece novidade" ou "notícia que permanece notícia"? O caminho da sátira é o único para uma poesia abertamente política? Será tudo culpa do nosso vocabulário ou será tudo culpa de Kate Moss? Podemos aprender com a sutileza política de Machado de Assis e Clarice Lispector? Podemos parafrasear Lispector e dizer: eis que o poeta está feliz, pois finalmente desiludiu-se? Se vivemos um momento pós-utópico, tanto melhor? Vamos começar a escrever uma poesia pré-distópica?



Ricardo Domeneck, Berlim, 2009, vigésimo aniversário da Queda do Muro.


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2 comentários:

Anônimo disse...

Mais uma vez, Ricardo, encontro você onde ainda tento chegar. Um abração.

Ricardo Domeneck disse...

Reuben, o que te digo é: bom não estar sozinho.

abraço

R

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