sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Um videorretrato antigo só agora editado, de Christopher, com poema inédito


"Christopher" (2006), por Ricardo Domeneck. Christopher barbeando-se em sua casa, verão berlinense, 2006.



Gravei este vídeo na casa de Christopher, no verão de 2006. Já não estávamos juntos, e, na verdade, é possível até mesmo ouvir seu novo namorado lavando a louça na cozinha, enquanto gravávamos o vídeo. Sim, foi uma situação bizarra, difícil. Era como um ato de arquivar os danos, catalogando os ossos quebrados antes de engessá-los tortos, salvaging what was left of the shipwreck.

Eu o conheci no primeiro dia do ano de 2005. Ele me parecia o menino mais lindo que já havia visto. Aqueles olhos gigantes, aquela epiderme cobreada que o revestia uniforme, uniforme. Nosso relacionamento foi uma das experiências mais fortes e destrutivas por que já passei.

Todas as tentativas de um videorretrato enquanto estávamos juntos haviam falhado. Eu dizia que não conseguia filmar alguém por quem estava apaixonado. É apropriado que por fim tenha conseguido apenas este vídeo, este retrato de costas, enquanto você carpe o matagal do rosto e eu me faço voyeur do corpo com que já não podia compartilhar a temperatura.

Ele foi my own private Hurricane. Perdi banhas que não tinha, banquei a Margo Channing, almodovariquei, fiz-me híbrido, liztaylorca, escrevi todos os poemas cínicos sobre o amor desastroso, voaram copos. Ecumênico, ensandecia-me. Ele foi o Cabo das Tormentas. Apelidei-o de Okeechobee, o pior furacão antes do Katrina, Okeechobee soava para mim como Christopher.

:

Texto em que o poeta dirige-se a um ex
e relata a seus leitores sobre o furacão Okeechobee



O plantão do Jornal da Globo
anunciava a morte das mortes
da Rapunzel das importâncias
e o bípede predileto impunha
suas lesões como lições.
Seu bíceps era um fórceps
na manteiga das minhas guelras.
É como se seu tubo de eustáquio
se posicionasse, ainda por cima,
na expectativa de um Thank You
por sua devastação em meu clima,
e eu temia, ao leme, que o próprio
meio-dia fosse a praga que assola
ao meio-dia. Há outros perigos
para um barco ao mar,
mais terríveis que a tormenta
que prenuncia o naufrágio.
Talvez o vício
do farol, demasiada confiança
nos botes, nas bússolas.
De sua testa à sua glande
e desta às falanges,
aquele cobre solar e uniforme,
como os pelos em suas pernas
distribuíam-se
feito um milharal
querendo esconder o milho.
A proporção entre seu nariz
e outros membros do império
em seu mapa de côncavos
e convexos era minha última
porção de simetria, Bauhaus
do meu lumpesinato físico.
Quando nascerá o comunismo
do proletariado amoroso?,
era o que simulavam murmurar,
revolucionárias, minhas mucosas,
estas cavidades hipócritas
em seus mal-dissimulados
delírios napoleônicos.
Eu queria ser seu dono e seu dog,
parceiro majoritário
do monopólio
que ele presidia.
Um feudo de fluidos,
de corpos. Suas fotos
ainda me coçam.
Ele era um conjunto de carpos
e cilindros, e, se aos dezenove
fazia-me de vaso, aos vinte
e cinco era eu dejeto,
despejo.
Ele era uma alegria difícil,
um improviso de rês pública.
Queria tudo,
a mim inclusive,
mas sem contrato exclusivo.
Redigia todas as cláusulas,
eu as aceitava, do sim tácito
ao silêncio tático,
qualquer manobra
que mantivesse seu corpo
aberto ao meu tato.
Quem jamais viveu o momento
que faz de migalhas
um banquete
que atire o primeiro tomate.
Ele, em minha boca,
foi o nascer-do-sal.
Quem me dera o tivesse
discernido a tempo
como o analgésico exato
para as minhas ilusões
de pertencer a alguma espécie
em extinção,
quando hoje sei ser eu praga.
Contudo, não me arrependo
de permitir aos meus dedos
aquela orgia típica
de gafanhotos
nos campos férteis
dos seus cabelos,
e, mesmo daninho,
dedico a ele hoje
este honorário
por seus extermínios.


Ricardo Domeneck. Berlim, 2008/2010.

§

Christopher (centro), fotografado por Walter Pfeiffer (2007),
sessão para a qual servi de assistente



.
.
.

Nenhum comentário:

Arquivo do blog